II Seminário da série “Reflectir Bolonha: Reformar o Ensino Superior”
 
Aprender e aprender a ensinar (formação de professores)
13 de Maio de 2003 | Auditório da Reitoria da Universidade do Porto
 
Relatório do grupo de trabalho constituído por:
 
Adalberto Carvalho, Universidade do Porto
Manuela Rocha, Universidade de Lisboa
Maria do Céu Roldão, Instituto Politécnico de Santarém
Maria Irene Figueiredo, Instituto Politécnico do Porto
Maria José Correia, Instituto Politécnico de Viseu
Paula Botelho Gomes, Universidade do Porto
João Queiró, Universidade de Coimbra (relator)

"Reflectir Bolonha: Reformar o Ensino Superior", Universidade do Porto, 2003, p. 21-25.



1. Introdução

A primeira conclusão a que chegou o grupo de trabalho encarregado de acompanhar o seminário sobre a Declaração de Bolonha e a formação de professores, realizado na Universidade do Porto em 13 de Maio de 2003, é que se impõe uma explicação prévia de qual é exactamente o problema em análise.

A Declaração de Bolonha, no âmbito mais alargado do designado processo de construção do Espaço Europeu de Educação Superior, já de si levanta inúmeras questões, actualmente em discussão por toda a Europa, tanto no plano dos governos e administrações como no das instituições de ensino superior. Essas questões têm que ver com os possíveis modos de concretização dos princípios, objectivos e recomendações genéricas daquela Declaração, bem como doutras que se lhe seguiram.

Mas o tema deste seminário, o segundo do ciclo sobre Bolonha organizado pela Universidade do Porto, é a formação de professores. Donde a interrogação, que suscita a tal explicação, sobre o que é que está aqui em causa.

A necessidade de analisar separadamente os cursos de formação de professores decorre da própria especificidade desses cursos, por sua vez ligada à importância crescente atribuída à educação nas sociedades modernas.

É hoje generalizado o reconhecimento de que não deve, por via de regra, ter acesso à profissão de docente quem para isso não obteve uma qualificação específica. Não faz actualmente nenhum sentido, dada a grande responsabilidade inerente ao exercício da profissão de professor, pensar que pode ter acesso à actividade docente quem não for portador das necessárias competências académicas e profissionais.

Este ponto de vista tem sequência na ideia de que, no percurso da formação inicial de um professor, têm que estar presentes várias componentes, que podem sucintamente agrupar-se da seguinte forma:

2. Modelos de formação de professores

Tendo isto em mente, percebe-se que pode haver vários modelos de concretização de cursos, ou percursos formativos, que contenham e articulem aquelas componentes. Logo aqui se observa uma clara relação com as declarações europeias, nomeadamente no que se refere ao sistema de graus.

De facto, pode imediatamente conceber-se um modelo de formação inicial de professores em que a primeira componente, a componente “disciplinar”, corresponda ao conteúdo de um primeiro curso superior conferente de um grau, e as outras duas dêem corpo a uma pós-graduação ou especialização, na mesma ou noutra instituição de ensino superior.

Este modelo, por vezes chamado sequencial, já existiu e, de forma mais ou menos modificada, existe ainda nalguns casos em Portugal, nomeadamente para a formação de professores do Ensino Secundário nas áreas de Letras.

Como argumentos a seu favor podem apontar-se a simplicidade e clareza, o não forçar os estudantes a uma escolha prematura de um percurso estritamente profissionalizante (cursos de “banda larga”), facilitando-lhes a mobilidade entre cursos e instituições, e a possibilidade de adaptação flexível da frequência da especialização pós-graduada às necessidades do sistema educativo em matéria de pessoal docente.

Por outro lado, a lógica fortemente disciplinar e “modular” deste modelo faz com que ele seja em geral adoptado para a formação inicial de professores dos ciclos mais adiantados, designadamente os que correspondem aos grupos etários dos 12 aos 18 anos.

É isto, grosso modo, o que se observa em países como a Espanha, a França, o Reino Unido e a Itália.

Um modelo quase exactamente oposto ao anterior faz coexistir as várias componentes de formação num mesmo curso, com interpenetração delas desde o início. Assim, pode haver módulos de introdução à prática profissional logo desde os primeiros anos do curso, com forte ligação à componente didáctica, que por sua vez não se vê como separável das componentes disciplinares.

A este modelo, que se pode chamar integrado, tem como característica definidora o forte pendor profissionalizante desde o início da formação, que se conclui com um único grau.

A sua estrutura integrada, em que as diferentes componentes surgem em permanente articulação, faz com ele seja adoptado sobretudo para a formação inicial de professores de ciclos em que os alunos são mais jovens, argumentando-se com a menor importância da lógica estritamente disciplinar nesses níveis.

Embora este tipo de cursos exista nalguns países europeus, noutros, como em França e no Reino Unido, é utilizado o modelo sequencial na formação de professores para este tipo de ciclos, mudando apenas a natureza da especialização pós-graduada.

Um modelo intermédio relativamente aos dois atrás descritos consiste na inclusão das várias componentes de formação num só curso, mas de forma sequencial. A este modelo costuma chamar-se “integrado sequencial”, e é bastante frequente no nosso país. É geralmente utilizado nas licenciaturas de formação de professores nas áreas de Ciências, onde por regra há um Tronco Comum a todos os cursos ou ramos numa mesma área. A este segue-se, para os estudantes que optam pela via de ensino, um período de formação pedagógica e didáctica específica, completando-se o curso com um ano de estágio supervisionado em ambiente escolar. Este tem sido o modelo geralmente adoptado para a formação de professores do 2º ciclo em diante.

O modelo integrado sequencial partilha com o sequencial “puro” a dupla vantagem de não encerrar prematuramente os estudantes num percurso que só tem uma saída profissional, e de valorizar o momento por excelência de formação na especialidade ou especialidades disciplinares, que habilitará o futuro professor a adaptar-se a mudanças de programas e outros desafios, não desvalorizando em simultâneo a componente de formação mais virada para a profissionalização, o que aconteceria com a inclusão prematura de pequenos módulos descontextualizados.

Não enquadrável em nenhum destes modelos é o recente sistema sueco, que tem a particularidade de as componentes não aparecerem pela ordem acima referida: os cursos de formação inicial de professores, para qualquer nível, começam com cerca de dois anos de formação “transversal”, incluindo pedagogia, sociologia, comunicação, etc.
 

3. Formação de professores e graus académicos

Se quisermos resumir e relacionar esta curta descrição com uma possível estrutura de graus decorrente das declarações europeias, parecem emergir duas possíveis situações:

A prática de vários países europeus vê a primeira situação, no caso do modelo não sequencial, como mais adaptada à formação inicial de professores dos primeiros ciclos, e as outras à formação inicial de professores de ciclos correspondentes a idades mais adiantadas. Os argumentos são os atrás expostos, e estão relacionados com a crescente lógica disciplinar dos sucessivos ciclos.

O caso da formação sequencial em que o segundo momento consiste num módulo profissionalizante de iniciação à prática observa-se nalgumas Faculdades de Letras, e pode levantar a objecção de que quem tenha o grau inicial mas não tenha possibilidades de completar o módulo profissionalizante fica com uma formação que não habilita ao exercício profissional como professor, embora não lhe estejam encerradas as portas do mercado de trabalho, eventualmente após reconversão obtida completando o 1º grau noutro ramo do curso da sua área científica.

O modelo integrado sequencial, por sua vez, poderia talvez ser incluído nas situações excepcionais (como os cursos de engenharia) em que o 1º ciclo de formação previsto nas declarações europeias pode ser mais longo do que a duração standard, chegando neste caso aos cinco anos.

Em alternativa, a adopção do modelo sequencial não integrado com dois graus implicaria uma formação inicial que poderia chegar aos seis anos, com ou sem a atribuição final do grau de mestre.

Não se vê bem como conceber a possibilidade de sub-degrees no caso dos cursos de formação de professores, a menos que se mantenha algo como o modelo acima designando como integrado sequencial. Neste modelo poderiam destacar-se, para esse efeito, os anos correspondentes à componente de formação disciplinar. Este “módulo disciplinar” seria comum, em geral, a outros cursos nessas áreas para além dos de formação de professores, e daria acesso ao prosseguimento de estudos em várias vias conducentes à obtenção do primeiro grau.

A questão dos modelos e a sua coexistência, nomeadamente consoante o tipo de professores ou educadores a formar, deve sempre ser vista em função de referenciais de qualidade explícitos, tanto quanto possível harmónicos com os dos restantes parceiros europeus.
 

4. A situação portuguesa em matéria de formação de professores

O que mais chama a atenção na situação portuguesa actual em matéria de cursos de formação inicial de professores é a confusão e a omissão no plano legal e regulamentar.

Em primeiro lugar, está obsoleta a legislação que regula o funcionamento dos cursos e a estrutura deles. Com o crescimento muito rápido do sistema, impõe-se uma legislação mais precisa e exigente sobre os cursos e as suas condições de funcionamento, incluindo os requisitos humanos e materiais a satisfazer pelas instituições de formação.

Em segundo lugar, e em conexão próxima com a questão da legislação, não existe nenhum mecanismo de controlo de qualidade dos cursos de formação inicial de professores e das instituições responsáveis por eles, nem sequer nenhuma concepção oficial do que pode constituir essa qualidade.

Houve uma tentativa, levada a cabo no fim dos anos 90, de construir um tal mecanismo, que era o Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores (INAFOP). Como o seu nome indica, o INAFOP dava corpo a um modelo de quality assurance do tipo da acreditação (em Portugal praticado para os cursos de Engenharia). Este instituto, que estava a iniciar a sua actividade, anteriormente sob tutela do Ministério da Educação, passou, na sequência da alteração da orgânica governamental de Abril de 2002, para a tutela do novo Ministério da Ciência e do Ensino Superior, que o extinguiu. No âmbito das actividades do INAFOP, foram produzidos e publicados em Diário da República documentos sobre padrões de qualidade da formação de professores e perfis de desempenho dos professores.

Hoje, como se disse, não existe em Portugal nenhum mecanismo, nem sequer no plano conceptual, de quality assurance para os cursos de formação de professores. Esta é uma grave omissão que urge corrigir, e dada a importância estratégica nacional destes cursos não seria necessário sequer invocar, para tal efeito, as declarações europeias, onde a questão das garantias de qualidade surge em plano proeminente.

Muitos modelos para estes mecanismos seriam possíveis, em alternativa ou, preferencialmente, em acumulação. Entre eles podemos citar a acreditação inicial e continuada, a avaliação das instituições e cursos, um melhor sistema de concursos e recrutamento (actualmente um elo muito fraco no sistema, e fonte de distorções e graves injustiças), a criação de exames nacionais de acesso à profissão, um sistema de inspecções por parte da tutela, etc.

Talvez a recente separação, pela primeira vez em Portugal, entre o Ministério “produtor” dos recursos humanos para a docência e o Ministério “consumidor” desses recursos introduza maior clareza nestas questões e propicie a criação dos necessários mecanismos de garantia da qualidade.

Finalmente, é totalmente inexistente em Portugal uma dimensão de planeamento do sistema, no que se refere às necessidades de pessoal docente e à lógica da rede de instituições de formação.

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O debate que decorre por toda a Europa a propósito das declarações sobre o ensino superior pode contribuir, no caso português, para um debate renovado, e aberto à sociedade, sobre as problemáticas da formação de professores. E, por essa via, conduzir à melhoria das políticas, a um melhor ordenamento do sistema, à correcção de erros e à introdução de mecanismos incisivos de garantia da qualidade numa área tão importante para o país.