E CONTUDO... (A Matemática na P.G.A.)
João Filipe Queiró, Departamento de Matemática, Universidade de Coimbra
Boletim da Sociedade Portuguesa de Matemática, nº 19, Fevereiro de 1991
 

Como a maioria dos leitores provavelmente já sabe, o teste da 2ª chamada da Prova Geral de Acesso ao Ensino Superior, realizada em 18 de Fevereiro passado, incluía um texto em que se fala abundantemente de Matemática. Esse facto é só por si interessante, pelo elevado número de estudantes que se submeteram ao teste e pela atenção que a Prova, para mal ou para bem, tem merecido da opinião pública.

A escolha dos autores do texto, no entanto, não foi muito feliz. Isto por duas razões diferentes. Primeiro, as opiniões expressas são bastante discutíveis. Depois, e para agravar a situação, a passagem escolhida foi claramente retirada do contexto. Desta forma, muitos dos que leram a prova poderão ter ficado com uma ideia objectivamente errada sobre a Matemática, o seu passado e sobretudo o seu presente.

Gostaria de fazer alguns comentários sobre o assunto. Antes disso, reproduzo o texto em causa, extraído do livro “Malicorne”, de Hubert Reeves (ed. Gradiva, 1990, trad. Jorge Branco):

    Desde os tempos mais recuados, a matemática tem sido a serva das ciências e das técnicas. Aos matemáticos pede-se que resolvam problemas concretos. Os cálculos astronómicos, a previsão dos eclipses, as operações de agrimensura, motivam e justificam o desenvolvimento das suas astuciosas técnicas. É a época do que chamamos hoje “matemática aplicada”.
    Depois, no século passado, a situação muda. Os matemáticos contestam a sua subordinação. Libertam-se. Inventam os seus próprios problemas. Entregam-se a jogos gratuitos de que compõem as regras. Comportam-se como jogadores de cartas que alterassem indefinidamente, sem no entanto admitir qualquer batota, as convenções da sua actividade favorita.
    É então que se faz uma descoberta espantosa. As questões postas pelas ciências e técnicas constituem somente uma parte ínfima do conjunto dos mais formidáveis problemas. A grande maioria das teorias matemáticas, inventadas e publicadas nas revistas especializadas, não tem qualquer aplicação prática. Não descrevem, em nada, o mundo que nos rodeia. Os seus axiomas não correspondem ao que conhecemos da natureza.
    A sua única razão de ser é o prazer dos matemáticos que as formularam.
    Só justificam a sua própria coerência interna.
    A matemática toma então uma nova dimensão: torna-se um jogo do espírito humano.
    Na linguagem corrente, “inventar” quer dizer produzir qualquer coisa que não existia anteriormente. Em nenhuma acepcão da palavra “existir” se pode dizer que a 9ª Sinfonia de Beethoven “existia” antes de Ludwig se sentar a mesa de trabalho. Do mesmo modo, referindo-nos ao matemático que, jogando com os axiomas, elabora uma variedade infinita de geometrias não euclidianas, parece mais acertado afirmar que, como o artista, ele “inventa”, “cria”.
    Nestas condições, poderemos ainda levar a sério a ideia de Platão e Descartes segundo a qual toda a matemática estaria inscrita, como uma “recordação”, no cérebro humano? Isso seria mais ou menos tão credível como afirmar que Joseph Haydn teria lido, em partituras previamente inscritas na sua cabeça, a música das suas 104 sinfonias...

Sobre o critério dos autores do teste, quase bastará dizer que as duas primeiras palavras do livro, imediatamente a seguir ao trecho reproduzido, são “E contudo...”. De facto, ao longo das páginas seguintes, o autor complementa as opiniões acima transcritas com a ideia de que a Matemática, embora (segundo ele) actualmente cultivada sem a motivação de responder a problemas da realidade concreta, vem frequentemente a ser utilizada mais tarde “na descrição do mundo real”. E dá vários exemplos: as Geometrias não-euclidianas e a Relatividade, a Teoria dos Operadores e a Mecânica Quântica, a teoria dos feixes de Cartan e as teorias de gauge em Física. Esta tese, já amplamente desenvolvida por muitos outros autores, pode resumir-se dizendo que a Matemática (ou muita dela) é uma ciência “aplicada”, só que as “aplicações” surgem muitas vezes depois da criação dos instrumentos matemáticos adequados. A solução antes do problema, se se quiser.

Concorde-se ou não com as posições de H. Reeves, não se deveria deixá-las a meio. A omissão do contexto é uma falta séria e, por exemplo, um estudante que se submete à P.G.A. é provavelmente penalizado se incorrer nela. O que se conseguiu com o excerto feito foi publicitar um texto que pode ter leituras pouco agradáveis para a Matemática e os matemáticos de hoje.

Adiante. Digamos algo sobre as opiniões de H. Reeves. Os assuntos tratados no texto são interessantes, e porventura já todos alguma vez reflectimos sobre eles: Qual é o objecto da Matemática? Qual é a verdadeira natureza do conhecimento matemático? Esta segunda questão é de ordem filosófica e sobre ela nada direi. Sobre a primeira, H. Reeves faz afirmações taxativas e radicais. Várias delas são incorrectas. Quase todas reflectem uma visão parcial, limitativa e antiquada da Matemática.

A acreditar em H. Reeves, no século passado houve uma alteração clara na Matemática e na maneira de os matemáticos encararem a sua actividade. Não nos explica quando, nem como, nem porquê, mas, segundo ele, em determinada altura os matemáticos começaram a contestar uma pretensa “subordinação” em que até aí teriam vivido. “Libertam-se” e começam a inventar jogos “gratuitos”, a que depois se dedicam por puro prazer. Antes desta mudança, parece, os matemáticos empregavam-se austeramente na resolução de problemas concretos de astronomia e agrimensura.

Esta visão não tem qualquer fundamento. Nem os factos nem nenhuma análise histórica permitem afirmar a ocorrência de uma tão substancial descontinuidade na actividade matemática, localize-se ela no século XIX ou noutra altura.

Não é verdade, em primeiro lugar, que até ao século passado a Matemática fosse uma ciência cultivada exclusivamente (ou mesmo só prioritariamente) em resposta a problemas concretos. Que “aplicações” estiveram na origem do esforço de organização patente nos “Elementos” de Euclides (que não são uma simples compilação de resultados úteis)? Que “descrição do mundo real” motivou Diofanto nas suas investigações em Teoria dos Números? E (para usar um exemplo do próprio H. Reeves) a que “questões postas pelas técnicas” queriam responder as dezenas de matemáticos que, ao longo de 2000 anos, tentaram deduzir o postulado das paralelas a partir dos outros postulados da geometria de Euclides? Os exemplos podiam continuar indefinidamente: se é verdade que a Matemática sempre foi usada nos mais diversos domínios científicos e tecnológicos (a Matemática – disse alguém lapidarmente – é a linguagem da Ciência), é impossível negar o carácter autónomo da actividade matemática ao longo dos tempos.

Por outro lado, também não é verdade que a grande maioria das teorias matemáticas criadas a partir do século passado (não se sabe exactamente desde que momento) não tenha qualquer aplicação prática. Posto nestes termos, este assunto exigiria uma análise cuidadosa. que incluísse uma definição do que se deve entender por “aplicação prática de uma teoria” e, além disso, um estudo estatístico (H. Reeves não cita nenhum, e ignoro se promoveu ele próprio algum). Eu não gostaria de ir por aí, e preferiria salientar a ideia de que a Matemática, apesar da sua vastidão e diversidade, continua a ser fundamentalmente una. Mas uma abordagem quantitativa talvez não fosse inútil. Em particular, talvez servisse para mostrar que uma grande parte do esforço de investigação levado a cabo hoje em dia, se não tem em vista aplicações clássicas como a descrição da “natureza” e do “mundo que nos rodeia” (expressões que são caras ao astrofísico H. Reeves), possui uma enorme relevância “prática” em domínios como a estatística, a informática, o controlo, a economia, o planeamento, as telecomunicações, as estruturas, a aerodinâmica, a medicina, etc. Seja como for, as várias áreas da Matemática não progridem independentemente umas das outras: não se pode cortar a Matemática ao meio e decretar que uma parte é boa porque é “aplicada” e o resto é mau porque se trata de “jogos gratuitos”. As coisas pura e simplesmente não se passam assim.

Em conclusão: Lutar pela imagem da Matemática (como da Ciência em geral) junto da opinião pública é uma tarefa difícil mas imprescindível. Fica-se a saber que em tal tarefa se podem encontrar os obstáculos mais inesperados, como o uso na P.G.A. de textos duvidosos e ainda por cima mutilados.