Nos 10 anos dos Estatutos da UC

João Filipe Queiró

Rua Larga - Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra
nº 52-53, Fevereiro de 2019, p. 44-45.




Completaram-se recentemente dez anos de vigência dos actuais Estatutos da Universidade de Coimbra. Não será inútil recordar abreviadamente as circunstâncias em que foram elaborados e explicar algumas das opções que neles ficaram plasmadas.

 

Em 10 de Setembro de 2007 foi publicada em Diário da República a Lei n.º 62/2007, contendo o novo Regime jurídico das instituições de ensino superior (RJIES), que entrou em vigor 30 dias depois e consagrou mudanças profundas na organização do Ensino Superior em Portugal. De acordo com o RJIES, as instituições de Ensino Superior ficaram obrigadas a rever os seus estatutos, no prazo de oito meses contados a partir da data de entrada em vigor do diploma. A lei, aprovada na Assembleia da República em clima de alguma controvérsia, era clara nas disposições transitórias: “No caso de não aprovação injustificada dos estatutos no prazo fixado, considera-se, para todos os efeitos legais, que a instituição se encontra em situação de degradação institucional nos termos do artigo 153º.” A epígrafe deste último artigo é “Encerramento compulsivo”.

 

A lei prescrevia que o trabalho de revisão dos Estatutos seria levado a cabo por uma Assembleia Estatutária ad hoc, constituída por 21 membros: o Reitor, que presidia, 12 representantes dos docentes e investigadores doutorados, três representantes dos estudantes e cinco personalidades externas cooptadas pelos 16 membros anteriores.

 

Dada a extrema delicadeza do momento – a pressão do tempo e a responsabilidade que lhe cabia na condução do processo – o Reitor Fernando Seabra Santos tomou a iniciativa de promover a formação de uma lista de docentes e investigadores candidata à Assembleia Estatutária. Anunciou-o à comunidade universitária em diversas ocasiões, nomeadamente no discurso de Abertura Solene e em duas reuniões do Senado. Essa lista veio a constituir-se e a apresentar-se à Universidade em Novembro. Dela faziam parte os Presidentes dos Conselhos Científicos das oito Faculdades (que tinham sido eleitos para esses cargos por voto directo dos seus pares e eram portanto já portadores de especial legitimidade), o Presidente do Instituto de Investigação Interdisciplinar e três professores convidados pelo Reitor. A eleição teve lugar em 26 de Novembro, tendo votado cerca de 50% dos eleitores. Aos 12 professores juntaram-se três estudantes eleitos e mais tarde as cinco personalidades cooptadas: António Almeida Santos, Artur Santos Silva, Rui Vilar, Gonçalo Quadros e Manuel Carvalho da Silva. A primeira reunião da Assembleia Estatutária completa teve lugar em Janeiro de 2008. As principais informações sobre este processo encontram-se online, no endereço

 

http://www.uc.pt/assembleiaestatutaria

 

Os novos Estatutos foram enviados para homologação ministerial em Junho de 2008. Os cinco meses anteriores foram de trabalho intenso, com numerosas reuniões da Assembleia (a periodicidade chegou a ser semanal, e no fim quase diária) e várias audições na Universidade, destacando-se um encontro no Palácio de S. Marcos em finais de Fevereiro com mais de uma centena de pessoas, incluindo representantes de todas as unidades orgânicas.

 

O processo não foi fácil. Houve o auxílio precioso de uma comissão de redacção presidida pelo Vice-Reitor António Avelãs Nunes mas, como é óbvio, as opções “políticas” foram da responsabilidade da Assembleia.

 

Referir-me-ei apenas a duas questões da governação interna da Universidade que justificaram discussão acesa e expressão de fortes divergências.

 

O RJIES é muito prescritivo em matéria de governo universitário, nomeadamente introduzindo um órgão novo, o Conselho Geral, com vastas competências, incluindo a eleição do Reitor. A existência de um órgão do tipo do Senado era deixada como opção na lei mas foi consensual na Assembleia que devia ser consagrada nos Estatutos, nomeadamente para assegurar a representação orgânica das Faculdades na gestão académica da Universidade, assunto que não cabe nas competências do Conselho Geral. Houve alguma discussão em torno de saber se os dirigentes das Faculdades deviam ser nomeados pelo Reitor ou eleitos pelas escolas: apesar de estar razoavelmente claro para todos que a lógica da lei sugeria a nomeação, optou-se após breve discussão pelo figurino da eleição. Quem se interesse por estes assuntos poderá informar-se sobre o caminho seguido noutras universidades portuguesas.

 

Vamos então aos dois temas que propiciaram longa e interessante discussão. O primeiro foi o da direcção das Faculdades, em que um sector da Assembleia defendeu a manutenção de duas presidências separadas: a do Conselho Científico e outra com competências nos planos administrativo e financeiro. O debate chegou a ter uma dimensão “doutrinária”, sendo invocado o princípio da “separação de poderes”. No mesmo sentido, outro argumento apontava para a vantagem de ter, como presidente do Conselho Científico, alguém não directamente ligado às questões financeiras, potencialmente contaminantes de deliberações que deviam manter-se afastadas desse tipo de considerações. Em sentido oposto, afirmando-se em qualquer caso a prevalência, na arquitectura do governo das Faculdades, do Conselho Científico, foram sublinhadas as recorrentes disfunções do modelo de separação. Este ponto de vista teve vencimento, sendo criada nos Estatutos a figura de Director de Faculdade.

 

O segundo tema ainda hoje provoca alguma confusão. Trata-se da questão da duração dos mandatos dos Directores das Faculdades. Logo no início da discussão foi sugerido que essa duração devia ser de quatro anos, por dois motivos: o alinhamento com os mandatos reitorais e o reconhecimento de que dois anos é pouco para quem tenha projectos de fundo. A favor de mandatos de dois anos foi usado um argumento muito simples, que, após análise, veio a prevalecer: perante mandatos de quatro anos, o número de professores disponíveis para dirigir as Faculdades seria muitíssimo pequeno. A realidade das Faculdades nestes 10 anos veio a dar total razão a este argumento: apresentaram-se fortes candidatos a Director, que em geral cumpriram vários mandatos consecutivos de dois anos sem qualquer problema. Mas quantos deles não se teriam sequer candidatado se colocados à partida perante a perspectiva de um mandato de quatro anos? O caso do Reitor é diferente: ser Reitor resulta de uma opção mais profunda do que ser Director de Faculdade, e muitos professores potenciais candidatos a Director hesitariam perante mandatos longos. Uma vez eleitos e tendo cumprido dois anos, são naturalmente reeleitos se quiserem continuar o seu trabalho e não tiverem tido problemas graves.

 

O primeiro destes dois temas provocou quase uma cisão dentro da Assembleia, chegando ao ponto de levar à abstenção de três professores na votação final global exclusivamente por causa do assunto.

 

Como se disse, o modelo do Conselho Geral, que substituiu a multitudinária Assembleia da Universidade, é prescrito na lei nacional. As competências que estão atribuídas a este órgão colocam pesadas responsabilidades de integridade e independência sobre os seus membros, que devem sempre manter-se à altura delas.