CORRENTES E CADEADOS – UM TEXTO DE 2001

Eduardo Marques de Sá e João Filipe Queiró
Professores da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra

Diário de Coimbra, 19 de Novembro de 2003, p.10


O texto que se segue, da responsabilidade dos signatários, foi adoptado como posição oficial do Departamento de Matemática da FCTUC em Março de 2001, após mais um encerramento das Faculdades com correntes e cadeados.

Tal prática tem-se tornado um hábito na Universidade de Coimbra, perante a passividade de autoridades académicas (não todas!) e de muitos que trabalham na Universidade, professores, funcionários e estudantes, que assim vêem enclausurados os seus locais de trabalho e manietadas as possibilidades de discussão livre dos problemas que afectam o futuro de todos. Não podemos deixar que alastre o atentado grave de alguns contra os direitos de todos. Quem põe cadeados nas portas sequestra o diálogo, impede a participação na vida comunitária, exerce violência inadmissível num país democrático.

O legítimo protesto dos universitários por melhores condições de acesso e de trabalho, e de estudo, e de exercício profissional por parte de todos, deve exercer-se de modo exemplar. Mas tem sido manchado e desacreditado, ao longo de muitos anos, pelo uso de acções violentas que justificam a presente publicação do texto de 2001.

«No passado dia 19 de Março de 2001, a entrada do Departamento de Matemática voltou a ser bloqueada por correntes e cadeados, no contexto de um protesto de estudantes relativo à situação genérica da Universidade em Portugal.
 
Há uns anos, a Comissão Científica do Departamento aprovou uma resolução no sentido de não aceitar tais procedimentos. Face a esta última recente situação, reiteramos a reflexão sobre o problema e a posição do Departamento sobre ele. Interessa explicitar com cuidado os fundamentos da anterior resolução. Porque é que o Departamento não deve aceitar o seu encerramento nas circunstâncias descritas, ou parecidas?

A primeira razão é óbvia. O edifício do Departamento é um edifício público, cujo acesso não pode ser impedido pela força por iniciativa de particulares, sejam eles estudantes, funcionários ou professores. O edifício pertence em última análise ao Estado, estando a sua gestão entregue ao Departamento. Só os órgãos directivos deste – e as autoridades hierarquicamente superiores – podem decidir sobre o seu funcionamento, e em particular sobre o seu acesso. O bloqueio desse acesso pela força, por iniciativa de particulares, é um acto ilegítimo que viola a liberdade de circulação num espaço público.

Mais grave do que as razões de legitimidade legal e de hierarquia é o facto de que, nessas situações, foram postos em causa diversos e importantes valores de cidadania. O encerramento a cadeado de um edifício desta natureza tem uma carga simbólica muito negativa, por enclausurar, por impedir a livre circulação num espaço que devia ser por todos partilhado, estudantes, professores e funcionários. Tal acto viola o direito individual de cada um dos cidadãos envolvidos. Em particular, aos estudantes que não concordem com paralisações aprovadas por outros, não é dado o direito de manifestar a sua discordância, vindo às aulas, entrando no edifício e discutindo as questões em causa.

Concorde-se ou não com posições de protesto por crises instaladas no sistema educativo, com os reflexos que têm nas universidades, sentimos terem estas o dever de actuar pedagogicamente, em defesa do respeito pela diferença de opiniões e pela liberdade de as exprimir.

O cadeado e as correntes atentam contra esses valores. A passividade perante este tipo de atitudes seria um erro nosso, como cidadãos e como educadores. Jovens, dirigentes de um amanhã muito próximo, formados neste tipo de acções, praticando-as ou condescendendo com elas, poderão conduzir a uma sociedade futura do convencimento pela força.

Por outro lado, ninguém imaginaria que um acto semelhante fosse praticado, por exemplo, num hospital. Porquê? Porque num hospital se desenvolvem actividades muito sérias e importantes. Logo, se aceitarmos o mesmo acto num edifício universitário, estamos objectivamente a aceitar a desvalorização das actividades aqui desenvolvidas: o estudo, o ensino, a investigação, a formação de cidadãos. A nossa atitude tem, portanto, mais esta importante componente no plano simbólico e axiológico: o Departamento recusa colaborar com a degradação e a desvalorização das actividades universitárias.

E não pode ainda esquecer-se que estes actos se praticam num país livre, numa sociedade aberta e, destaque-se, numa Universidade em que os estudantes ocupam um lugar como cidadãos especialmente responsáveis.

Resumindo, o Departamento de Matemática não deve aceitar o seu encerramento ilegítimo pela força, em circunstâncias análogas às acima descritas, porque tal acto constitui violação de valores da democracia, desvaloriza a actividade universitária, fecha portas em vez de as abrir ao diálogo.

Esta resolução deve ser comunicada às autoridades universitárias competentes, acompanhada da indicação de que o Departamento vê como urgentes todas as medidas que façam parar este tipo de atitudes.»