O
Ensino Superior em Portugal
João Filipe Queiró
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 96 p., Lisboa 2017.
2.11. A integridade do
ensino
Falei
atrás da autonomia “sagrada” do saber e do ensino e também da
liberdade
académica. São valores inseparáveis da missão da universidade e
estão plasmados
nas leis. São valores, não são direitos. Muito menos traduzem um
qualquer
direito à licença para no ensino se dizer e fazer o que se
quiser e como se
quiser. A importância da missão da universidade implica e exige
enorme
responsabilidade, integridade e honestidade intelectual aos
professores. Estes
não são livres de, por exemplo, se dedicarem ao proselitismo
ideológico, se não
partidário, na relação com os seus estudantes.
Isto
não contradiz a visão da universidade como espaço de liberdade
de pensamento.
Pelo contrário, a politização do ensino trai os estudantes e
trai a própria
liberdade deles, ao privá-los da exposição equilibrada a
variados pontos de
vista, que eles possam estudar e discutir e assim construir o
seu pensamento
independente.
O
problema não se coloca com igual acuidade em todas os campos do
saber. Os
riscos maiores de vulgar proselitismo no ensino encontram-se,
naturalmente, em
áreas das Ciências Sociais e das Humanidades: Sociologia,
Ciência Política,
Economia, História Contemporânea, alguns Estudos Culturais.
Imagino que certos
praticantes dessas áreas comentem desdenhosamente que não há
conhecimento
neutro, que todo o conhecimento está ao serviço – precisamente –
de alguma
causa política ou ideológica. Outros, mais escrupulosos,
exprimirão o seu
cepticismo quanto à possibilidade de alguma forma de
“objectividade”. As
dúvidas provêm da dificuldade dessa objectividade, que nas áreas
referidas,
como é natural, se coloca de forma diferente da das “ciências
exactas”. Mas de
tal dificuldade, que é de constatação simples, trivial, parte-se
para a
afirmação de uma impossibilidade, e daí para a desistência.
Neste ponto é que
as coisas se degradam. Se a um intelectual for difícil ser
objectivo – os
humanos, afinal, nascem sujeitos, não objectos –, ele deve
tentar ser íntegro,
dentro das especificidades de cada área do saber. Esse esforço
faz toda a
diferença. Muitos desígnios e valores são de difícil
concretização, e não se
pode senão tentar, e continuar, e persistir, mesmo se com
resultados
imperfeitos. Invocar a dificuldade, a aparente impossibilidade,
para baixar os
braços e desistir, significa afirmar os valores opostos.
O
maior risco, ou tentação, para os professores das Ciências
Sociais e das
Humanidades de usar o ensino para exprimirem preferências
ideológicas
pré-fabricadas coloca sobre eles responsabilidades mais pesadas
do que aos
professores de outras áreas. Nestas, há “árbitros” independentes
na validação
do conhecimento: o rigor dedutivo, as próprias realidades da
natureza. Naquelas
outras, as metodologias devem passar pela argumentação
consistente, o contacto
com o melhor pensamento ou criação anterior, o respeito pelos
documentos e
factos. A honestidade e a integridade são imperativas para
todos, mas nas áreas
de maior risco são mais difíceis.
Muitos
professores universitários têm intervenção cívica e política, o
que não tem mal
nenhum. Pelo contrário. Mas há uma distinção crucial a fazer
entre o plano
dessa intervenção e o plano da actividade docente e científica.
Não as separar
firme e cuidadosamente, e consentir na transformação das
universidades em
escolas de doutrinação política de qualquer matiz, degrada a
profissão. E
significa o incumprimento da missão que o país confia às
universidades e o
incumprimento do dever de honestidade e rigor que os professores
têm com os
seus estudantes.
Devemos
combater a captura e a utilização das instituições de Ensino
Superior por
interesses contrários às suas missões. Devemos recusar a
concepção e a prática
do Ensino Superior como vulgar acção política por outros meios.