Diferencial, Jornal da Ass. dos Estudantes do IST, 20, p. 12, Março 1997.
É quando a onda está no auge, por entre ruído ensurdecedor e instabilidade perturbante, que o surfista mais tem de se esforçar por ter a cabeça fria e os pés bem assentes. O centro do pipe não é o local apropriado para hesitações, estados de alma e vontade de recuar, muito menos para substituir a estratégia adoptada por outra pior.
A melhor maneira de ver claro no actual panorama do Ensino
      Superior em Portugal é adoptar uma perspectiva histórica. Se
      olharmos para os últimos 100 anos da vida portuguesa, ou mesmo só
      para os últimos 30, observamos uma mudança vertiginosa. Não se
      trata do cliché da sociedade de informação, Internet para
      aqui e para acolá, mas de realidades mais "pesadas" e
      estruturantes. Os indicadores numéricos, uns crescentes outros
      decrescentes, em vários domínios fundamentais dariam bons exemplos
      de funções exponenciais: a diminuição da população agrícola, o
      crescimento do número de estudantes em todos os níveis de ensino,
      a baixa do analfabetismo, o aumento da percentagem de portugueses
      com qualificações de nível superior. Portugal está no meio de uma
      alteração social muito marcada, e única na sua história no que se
      refere a importantes características da população. 
    
 Uma tão rápida mudança na sociedade portuguesa não se faz sem
      problemas, dúvidas e perplexidades. Mas nunca se deve perder de
      vista o sentido dessa alteração, de onde se vem e para onde se
      vai. No campo do que habitualmente se designa por "educação",
      Portugal está a tentar levar a cabo em poucas décadas o que
      noutros países, sobretudo do norte da Europa, se fez em séculos:
      generalizar a escolaridade e a alfabetização, aumentar
      drasticamente o nível médio de cultura e qualificações da
      população. O pior agora seria o país facilitar, simular, desistir.
      Pode haver divergências sobre a forma de gerir problemas
      temporários de percurso, mas não deveria havê-las sobre o rumo
      essencial. É quando a onda está no auge, por entre ruído
      ensurdecedor e instabilidade perturbante, que o surfista mais tem
      de se esforçar por ter a cabeça fria e os pés bem assentes. O
      centro do pipe não é o local apropriado para hesitações,
      estados de alma e vontade de recuar, muito menos para substituir a
      estratégia adoptada por outra pior. 
    
 No momento presente, é de desconfiar, por exemplo, de inflexões
      de fundo no sistema educativo propostas com base nos valores
      actuais de certos indicadores estatísticos, mesmo supondo estes
      fiáveis. Para usar linguagem matemática, uma estatística
      momentânea é o valor de uma função num ponto, e na situação que se
      vive interessa tanto o valor da função como o valor da derivada.
      Isto é: tanto como saber onde estamos, importa conhecer para onde
      estamos a ir e com que velocidade vamos. 
    
 Além de outras considerações, o essencial do rumo que se está a
      seguir tem que ver com a preservação de Portugal como entidade com
      um mínimo de identidade e autonomia. Quem ler o prefácio de
      Oliveira Martins à 3a. edição do seu Portugal Contemporâneo,
      publicada há 100 anos, perceberá talvez melhor o que está em
      causa. E concluirá com presteza que, hoje, Portugal não pode
      isoladamente procurar, fora das fronteiras ancestrais, soluções
      mais ou menos milagrosas para a sua permanência como comunidade
      autónoma, ainda que se admita que uma expressão como
      "independência nacional" não terá no futuro o mesmo significado
      que teve no passado. 
    
 Esgotados os ciclos imperiais, sucessivamente na Ásia, na
      América e em África, não são fáceis os exercícios prospectivos
      para este país pequeno, na periferia de um espaço continental ele
      próprio em processo de luta contra a diminuição histórica da sua
      relevância. Mas, seja qual for o nosso destino futuro, uma coisa
      parece clara. A subsistência de Portugal como comunidade de
      história, língua e cultura está decisivamente ligada ao nível de
      qualificação média da população portuguesa e à abundância e
      qualidade das nossas elites. 
    
 É neste quadro geral que, a meu ver, devem ser colocadas as
      questões sobre o Ensino Superior em Portugal. O Ensino Superior, e
      em particular a Universidade, cumpre uma função dupla: a formação
      de nível superior e, não menos importante, a manutenção e o
      desenvolvimento do capital cultural, científico e tecnológico do
      país. Tudo o que enfraqueça, desvalorize e degrade o Ensino
      Superior, e em particular a Universidade, causa grave prejuízo ao
      país e ao seu futuro.
    
De seguida farei alguns comentários, muito rápidos, sobre três aspectos importantes da actual situação do Ensino Superior em Portugal: a autonomia das instituições, o emprego dos licenciados e o Ensino Politécnico.
A atribuição de ampla autonomia às instituições de Ensino
      Superior reflecte uma atitude "liberal" do Estado, que, no quadro
      acima descrito, tem alguns perigos. (Outra manifestação desse
      "liberalismo" é o aumento rápido nos últimos anos do número de
      instituições com origem no sector privado.) As instituições de
      Ensino Superior gastam muito dinheiro público e, sobretudo, têm
      uma missão de extrema importância. Isto sugeriria a necessidade de
      cuidados por parte do Estado em relação a modas
      "independentistas". Mas a lei está feita e em prática. Agora há
      que ver como as coisas correm e combater por um bom uso das
      autonomias. 
    
 De resto, a autonomia também se merece (ou não). Os media
      fazem-se frequentemente eco de querelas e conflitos pelo poder em
      escolas superiores. Tenho para mim que existe uma forte correlação
      entre a composição do corpo docente de uma escola (e as suas
      prioridades) e a conflituosidade dentro dela. As instituições
      verdadeiramente científicas, em que o corpo docente possui uma
      elevada qualificação média, têm normalmente uma cultura de estudo,
      de serviço e de responsabilidade nacional. Os cargos de gestão são
      pouco desejados, e são ocupados de forma quase rotativa, porque o
      sentido e as prioridades da actividade dos docentes são outros. As
      instituições cujo corpo docente não foi, em geral, recrutado nem
      promovido com base em critérios exigentes de mérito têm pouca
      actividade científica séria, esquecem-se das suas missões e
      responsabilidades e exibem uma cultura de poder e luta por
      "lugares". Nesses conflitos estéreis e paroquiais consomem tempo,
      dinheiro e energias. Estas instituições, quando públicas, não
      merecem ser autónomas. A autonomia paga por outrem significa um
      enorme depósito de confiança. E a confiança, como se sabe, há que
      merecê-la.
    
Quanto à questão do emprego dos licenciados, as últimas décadas
      foram, também aqui, de mudança rápida. Longe começam a estar os
      tempos em que os licenciados eram raros e qualquer um podia ter
      por segura, no mínimo, uma posição ao serviço do Estado. Ainda há
      30 anos as escolas superiores eram muito poucas, sendo os cursos e
      os graus controlados de perto pelo Estado e, dentro de cada área e
      de cada nível, todos equiparáveis. Hoje a situação é muito
      diferente. O Estado tem ainda uma presença forte no mercado de
      emprego, do lado da "procura" de licenciados, mas essa presença é
      frequentemente irracional, o que perturba seriamente as
      instituições de Ensino Superior. O Estado, muitas vezes, é cego
      ante a questão da qualidade, igualando o desigual por processos
      puramente administrativos. (Uma situação em que isso é nítido é a
      dos professores do ensino não-superior, em que não existe nenhum
      mecanismo de concorrência.) Do lado da "oferta", a própria
      abundância e heterogeneidade das instituições públicas de Ensino
      Superior enfraquece e descredibiliza a posição do Estado como
      certificador de qualidade. O mercado de emprego dos licenciados
      funciona portanto mal no nosso país, e é isso que explica muitas
      das querelas que atravessam o Ensino Superior (bem como o
      fenómeno, à primeira vista estranho, da luta pelo "reconhecimento
      oficial" ou "autorização" deste ou daquele curso). Numa situação
      de concorrência perfeita, em que o "consumidor" possuisse
      informação completa sobre alternativas e integral possibilidade de
      escolha entre elas, decidindo então em plena racionalidade, até os
      clubes de futebol poderiam formar advogados, médicos, professores
      e engenheiros: o mercado se encarregaria da destrinça e da
      escolha. Mas não é essa a situação. Assim, é essencial a
      existência de mecanismos, independentes e credíveis, de aferição
      da qualidade dos licenciados e de acreditação para as actividades
      profissionais (mecanismos que aliás já existem para algumas
      profissões liberais). 
    
 De resto, o futuro do mercado de emprego (como o futuro tout
        court) é incerto. Mas pode dizer-se que parecem ter razão os
      que apelam a licenciaturas de espectro largo, em que se privilegie
      a boa formação de base e a adaptabilidade a novas situações. A boa
      qualidade da formação inicial é a melhor garantia para um futuro
      incerto e exigente.
    
Do Ensino Politécnico tem-se falado muito nos últimos tempos.
      Deixarei aqui apenas uma breve anotação sobre a defesa, que alguns
      fazem, da necessidade de levar a "convergir" o Ensino Politécnico
      e a Universidade. Essa convergência é realmente uma hipótese. O
      país pode vir a concluir que não se justifica um subsistema de
      Ensino Superior com vocação específica para a formação de
      técnicos, e deixar essa formação para as empresas e para a
      Universidade (onde ela, em ambos os casos, já existe). Mas, se for
      esse o rumo (questão que está longe de ser pacífica), a palavra a
      usar não é "transformação" das instituições politécnicas em
      universidades, mas sim "integração" daquelas nestas. 
    
O Ensino Politécnico tem em Portugal um problema estrutural grave, que é o da baixa qualificação média do seu corpo docente. A pretender-se qualquer "convergência" com as universidades, haveria que proceder a exame cuidadoso e individualizado das qualificações e graus dos docentes, distinguindo a categoria anterior de cada docente da sua efectiva graduação académica, numa espécie de aplicação retroactiva do Estatuto da Carreira Docente Universitária. Um Ensino Superior com objectivos de qualidade exige graus credíveis, e não pode tolerar qualquer tipo de graduação administrativa.
O balanço da actividade do presente responsável governamental pelas questões educativas é, a meu ver, positivo — com uma excepção, precisamente a medida que causou mais controvérsia* (embora a controvérsia só por si não demonstre o erro). Corrigido o lapso, só podemos fazer votos por que se insista pelo rumo certo, sem dúvidas, tergiversações ou cedências à retórica. É o interesse profundo do país e dos portugueses que o reclama. O surfista somos nós, claro. Em caso de asneira, o tombo será também nosso.
Coimbra, 12 de Fevereiro de 1997
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      * Refiro-me à alteração da Lei de Bases do Sistema Educativo.