Guia da Colecção Astronómica

Dois Astrolábios

Helios

 

O astrolábio plano, concebido para usos civis como a determinação da hora, foi adaptado pelos navegadores portugueses para medir a distância zenital do Sol. Esta adaptação consiste, essencialmente, em reduzi-lo à roda e à medeclina.

Astrolábio Náutico

O astrolábio náutico destina-se a medir a distância zenital z ou a altura h de um astro, particularmente do Sol. Por regra, os astrolábios náuticos compõem-se de um disco fixo, o qual pode ser ou não inteiro, que recebe o nome de roda. Com eixo no centro na roda gira uma medeclina composta por uma alidade (régua de pontas afiadas destinadas a marcar os ângulos sobre a roda) e duas pínulas. Estas são pequenas placas perpendiculares aquela, com dois orifícios alinhados segundo as pontas afiadas da alidade. Os centros destes orifícios definem uma recta chamada linha de fé (figura 1).

Figura 1 – Astrolábio náutico.
Construtor e proveniência não identificados.
Data de fabrico: c. 1675. Material: bronze.
Diâmetro: 51 cm.
Inventário de
2000, n.º I-002.

A face anterior do Astrolábio náutico está representada na figura 1. O furo da pínula superior mede 10 mm de diâmetro e está munido com uma lente convergente biconvexa que projecta a imagem do Sol na pínula inferior sob a forma de um disco com aproximadamente 3 mm de diâmetro. Na pínula inferior existe um furo com 0,5 mm de diâmetro notando-se em torno deste um disco gravado onde se projecta a imagem após passar pela pínula superior. Deste modo, a linha de fé tanto pode ser posicionada na direcção do Sol através de uma visada directa do modo representado na figura 4, como através da centragem da imagem do Sol na pínula inferior.

Figura 2 – Medição da distância zenital. A linha de fé coincide com o raio luminoso proveniente do astro que atravessa os furos das pínulas e passa pelo centro da roda (os traços a grosso representam as pínulas). O aparelho está suspenso livremente de modo que a
vertical do lugar passe pelo centro da roda e pelas origens das graduações. A distância zenital é lida na graduação que se encontra no limbo (ou bordo) da roda.

Na face anterior do astrolábio existe um limbo graduado dividido em graus e munido com uma divisão complementar constituída por 15 círculos concêntricos a qual permite levar a leitura até aos quatro minutos segundo o processo descrito em Daumas [3]; vd. a figura 3. Não se trata, pois, do método proposto por Pedro Nunes [5].

Figura 3 – Representação esquemática da divisão do ângulo um grau através de uma sub-graduação constituída por 4 círculos concêntricos e equidistantes e uma curva "diagonal". A forma da equação exacta desta curva é, em coordenadas paramétricas,
x = r cos (a + b r)
y
= r sin (a + b r).

Determinação da latitude

O observador suspende livremente o astrolábio pela argola, numa cábrea, colocando-o na posição vertical. Orienta a roda e gira a medeclina de modo a que a luz do Sol passe pelos dois furos das pínulas (figura 4). A leitura, feita pela ponta afiada na graduação da roda, indica a distância zenital do Sol, ângulo designado por z ou z . Este é o ângulo formado pela vertical do lugar (dada pelo fio de prumo) com a linha de fé do astrolábio. A altura h do Sol é o ângulo do Sol acima do horizonte, isto é h = 90 – z .

Figura 4 - Marinheiros usando o astrolábio para medir a distância zenital do Sol, em terra. Aguarela da Colecção Astronómica.

O conhecimento da distância zenital medida quando o Sol passa pelo meridiano, ou seja ao meio dia solar, permite calcular a latitude do lugar desde que se possua uma tabela de declinações. O esquema desta operação está representado na figura 5.

Figura 5 – A latitude é o ângulo j formado pela vertical do lugar com o equador, medido sobre o meridiano do lugar. Como mostra figura, para latitudes superiores a 23º 33’ este ângulo é a soma da distância zenital do Sol z, com a declinação do Sol d quando este passa pelo meridiano do lugar. A fórmula adapta-se facilmente para outras latitudes.

Este método para a determinação da latitude só pôde ser usado eficazmente após a elaboração de uma tabela contendo a declinação solar em cada dia, ao longo do ano. Na época dos Descobrimentos, foram calculadas várias tabelas de declinações a partir das tabelas do lugar do Sol na eclíptica contidas no Almanaque de Zacuto [7]. O lugar do Sol na eclíptica é a sua longitude celeste l . Considerando o triângulo esférico respectivo, vê-se que a declinação está relacionada com a longitude através da fórmula:

sin d = sin l . sin e

em que e = 23º 33’ é a inclinação da eclíptica sobre o equador terrestre; vd. Albuquerque [1].

Pesar o Sol. Davam os nossos pilotos este nome à operação que consiste em determinar o meio dia solar no lugar considerado. Isto é, o instante em que o Sol passa no meridiano do lugar ou, ainda, o instante em que a sua altura é máxima. Para o efeito, pouco antes do meio-dia solar, o observador orienta o instrumento e gira a medeclina de modo a manter um raio de luz a passar pelos dois furos. Antes do meio-dia a extremidade superior da medeclina vai subindo, cada vez mais lentamente; e, atingido o seu máximo, começa a descer. A maior altura, que corresponde ao meio-dia solar, é o ângulo procurado. Assim, o astrolábio também indica o meio dia verdadeiro sem necessidade de recorrer a um relógio.

Resultados de observações

Os Autores efectuaram duas medições da distância zenital do Sol, ao meio dia solar, que constam da tabela seguinte onde são comparadas com a distância zenital aparente do Sol das efemérides, para o efeito calculada com o programa MICA15 do Observatório Naval de Washington.

Local: Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra.
Latitude geográfica: 40º 11’ 52",57 N.
Longitude
: 8º 26’ 37",11 W (Oeste).

Data e hora legal

Distância zenital (astrolábio)

Distância zenital (efemérides)

Erro do astrolábio

31-Out-2000 / 12h 17m

54º 32’

54º 29’ 54"

+ 2’ 6"

10-Nov-2000 / 12h 18m

57º 30’

57º 30’ 26"

– 26"

Os erros detectados estão abaixo da exactidão nominal do astrolábio, a que também podemos chamar resolução, cujo valor é 4’. Este valor corresponde a 0,00116 radianos. O raio da Terra vale R @ 6.300 km. Em consequência, estes 4’ conduzem a um erro, em distância sobre o meridiano do lugar, igual ao produto

0,00116 . R = 7,3 km

sob a hipótese de que a declinação tem um valor exacto o que não é verdadeiro.

Bibliografia

  1. Luís de Albuquerque – A Determinação da Declinação Solar na Náutica dos Descobrimentos, Revista da Faculdade de Ciências de Coimbra, volume XXXIX, 1966;
  2. A S Alves – Nónios e Sub-graduações, a publicar;
  3. Maurice Daumas – Les Instruments Scientifiques aux XVII et XVIII Siècles, Presses Universitaires de France, Paris, 1953;
  4. Luciano Pereira da Silva – O Astrolábio Náutico dos Portugueses, Obras Completas, Vol. II, Agência Geral das Colónias, Lisboa, 1943, pág. 49;
  5. Pedro Nunes – Obras, Vol. II, De Crepusculis, Imprensa Nacional, Lisboa, 1943;
  6. David Waters – The Sea- or Mariners’s Astrolabe, Revista da Faculdade de Ciências de Coimbra, volume XXXIX, 1966;
  7. Abraão Zacuto – Almanach Perpetuum, fac-simile, Imprensa Nacional, 1986.
Figura 6Astrolábio náutico de Bensaúde.
Construtor: Instituto Superior Técnico, Lisboa.
Data de fabrico: c. 1913.
Material: madeira de tola e latão.
Diâmetro: 50 cm.
Inventário de
2000, n.º I-221.
Existe um segundo exemplar com o n.º I-222.

Astrolábio Astronómico

O tipo de astrolábio que, no inventário do Observatório Astronómico, é designado por astrolábio astronómico cumpre funções muito diferentes e mais complexas do que o astrolábio náutico. É certo que, nele, também existe uma roda e uma medeclina, porém, existem muitas mais peças móveis, quer na face quer no dorso do astrolábio.

(a)
Figura 7Astrolábio astronómico visto, respectivamente, de face (a) e de dorso (b). Este instrumento é formado por um disco circular, de onze centímetros e meio de diâmetro e dois milímetros de espessura, a que se chama disco-mãe. A peça de suspensão com sua argola fá-lo atingir uma altura total de 19 centímetros. O instrumento compreende várias peças móveis, girando todas em volta do mesmo centro, umas na face, outras no dorso. Na posição invertida, figura (b), o astrolábio é usado para determinar a hora nocturna. Neste caso é suspenso por um fio que passa pela argola pequena.
(b)
Astrolábio plano (séc. XVII).
Construção e proveniência desconhecidos.
Fabricado no séc. XVII. Material: latão.
Diâmetro: 11,5 cm.
Inventário de 2000, n.º I-204.

Na realidade, neste astrolábio existem instrumentos de medição de ângulos, tabelas e funções de cálculo semelhantes à de um computador analógico. Foi concebido para utilizações civis como a determinação da hora (solar) de noite ou de dia, eventualmente, para a determinação da latitude pelo mesmo método do astrolábio náutico e, ainda, para outras funções.

No dorso do astrolábio podemos encontrar graduações que indicam os dias do ano e os respectivos signos do Zodíaco. Uma graduação mais interior, em correspondência com estas, dá-nos o lugar do Sol no Zodíaco ou longitude celeste, dia a dia, assim como a declinação.

A determinação da hora nocturna baseia-se nas seguintes considerações cinemáticas. Durante o movimento de rotação diurno, um observador fixo vê as estrelas executarem um movimento de revolução em torno do eixo da Terra. A única excepção é a Estrela Polar ou Estrela do Norte por esta ficar praticamente no prolongamento deste eixo. Em consequência, a recta formada pela Polar e pela estrela b da Ursa Menor parece executar um movimento de rotação em torno da Polar. O ângulo formado por esta recta com uma direcção fixa vai variando ao longo da noite, hora a hora, exprimindo a hora sideral. Este valor é corrigido para a hora solar, tendo em conta o dia do ano, através do posicionamento de um disco móvel situado entre o ponteiro e o disco-mãe. Nesta operação usa-se o dorso do astrolábio suspendendo-o como se indica na figura 8(b). Cf. também a figura 9.

Figura 8 – Posição de leitura da hora nocturna. A Polar encontra-se no centro do furo e o ponteiro mais comprido está alinhado com uma das guardas, a b Ursa Minoris escolhida para o efeito.

Sabendo o lugar da Lua no Zodíaco é, também, possível determinar a sua idade (em dias a contar da última Lua nova) e a percentagem iluminada do disco lunar.

Na face do astrolábio (figura 8.a) existe uma alidade com a qual é possível tomar a altura e a distância zenital do Sol suspendendo-o da forma indicada. Determina-se a hora solar de dia a partir do conhecimento de três ângulos: (1) a altura do Sol, (2) a latitude do lugar, (3) o ponto da eclíptica em que ele está nessa data, sendo que esta última leitura é efectuada na escala respectiva no dorso do instrumento. O resultado obtém-se após a realização de uma sequência determinada de operações com o astrolábio.

O traço do princípio de Aries (equinócio da Primavera) fica sobre o dia 21 de Março o que mostra ser a construção posterior à data da correcção gregoriana, 15 de Outubro de 1582.

Este astrolábio foi minuciosamente descrito na obra de Luciano Pereira da Silva citada na bibliografia, onde se sugere uma origem flamenga.

Bibliografia

  1. Luciano Pereira da Silva – Um Astrolábio do Século XVII, Obras Completas, Vol. III, Agência Geral das Colónias, Lisboa, 1943, pág. 301.
Figura 9 – Astrolábio plano (séc. XVI).
Construção e proveniência desconhecidos.
Fabricado no séc. XVI. Material: latão. Diâmetro: 17,4 cm.
Inventário de 2000, n.º I-001. Incompleto.
A S Alves
Director do OAUC
E-mail: asalves@mat.uc.pt
Claudino Romeiro
Técnico de Observações Astronómicas
E-mail: romeiro@mat.uc.pt

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