A S Alves

As Longitudes e o nascimento da Ciência moderna

 
 

 

O problema das longitudes ocupou durante séculos os saberes e as imaginações. Viria a ser estudado intensamente como um problema astronómico entre 1600 e 1800. Os esforços que mobilizou levaram ao enorme desenvolvimento da Matemática no século XVIII e lançaram os fundamentos da ciência moderna.

O problema da determinação da longitudes estava no cerne dos problemas da navegação no alto mar e, em consequência, era um problema cuja solução seria decisiva para o desenvolvimento do comércio internacional. A essência de qualquer economia que não seja recolectora está na especialização da produção de bens e na troca destes e o instrumento desta actividade é o comércio. O comércio necessita de comunicações rápidas e seguras quer para as mercadorias quer para a informação. A base do crescimento da riqueza da Europa desde a Idade Média até aos nossos dias foi o comércio ultramarino e este era extraordinariamente dificultado pela inexistência de um método para a determinação da longitude. Sem a riqueza acumulada na Europa, graças à navegação e ao comércio, não teria havido a base material que permitiu não somente libertar a Humanidade da pobreza e da doença, mas também da ignorância. 

Neste sentido, o problema das longitudes terá sido o problema tecnológico mais importante de todos os tempos, não somente pelo seu impacto económico como, também, pelo tempo que resistiu à solução. 

O crescimento da ciência no século XVIII é consequência de investimentos muito importantes feitos pelos estados e por grandes companhias. Porém, este facto seria engnador se conduzisse à ideia redutora de um cientista trabalhando para a solução de um problema tecnológico no estrito cumprimento de uma encomenda. Os grandes problema tecnológicos são, genericamente falando, enunciados de forma imprecisa e são desafios ao engenho e à imaginação humanos. Os meios postos à disposição dos cientistas e destinados à sua resolução são por estes usados para ir além dos objectivos práticos. O cientista guia-se mais pela sua imaginação criativa do que pela satisfação de uma encomenda; em contrapartida, se não houvesse um problema prático a resolver não haveria os meios necessários. 

A medição das coordenadas geográficas

Qualquer que seja a perspectiva histórica que se adopte, é indubitável que os Portugueses estiveram entre os primeiros navegadores no mar alto. As primeiras expedições seguiram o curso da costa africana mas as correntes e os ventos depressa impuseram a navegação para Oeste, longe da costa e das referências seguras. Ora, a navegação atlântica, ao contrário da navegação mediterrânica praticada pelos Fenícios, Gregos, Romanos, Árabes, etc. necessitava de meios de localização geográfica. 

O problema da latitude foi resolvido com a ajuda do astrolábio náutico que, em conjunto com uma tabela de declinações calculada dia a dia, permitia achar a latitude com a ajuda do Sol. Basicamente, o astrolábio é um instrumento que mede a distância zenital z do Sol ao meio-dia solar ou verdadeiro, ou seja, quando o Sol passa pelo meridiano do lugar. A latitude é a soma de z com a declinação d, valor este lido na tábua de declinações: 

j = z + d

(Vd. o artigo Astrolábios e Sextantes neste jornal). A navegação atlântica era baseada no conhecimento da latitude, em cartas geográficas muito pormenorizadas e na experiência profunda dos pilotos. Em consequência, o número de rotas possíveis era muito limitado, havendo um conjunto de ilhas que eram escala obrigatória dos navios mercantes. Este facto representava uma importante oportunidade para a pirataria bastando aos navios pirata esperar, emboscados, em ilhas certas a passagem dos navios mercantes. 

A partir do século XV o comércio ultramarino começou a desempenhar um papel muitíssimo importante na economia europeia, papel este que se reforçou poderosamente daí em diante e que permanece hoje em dia. O comércio africano e as especiarias da Índia foram dois percursores de uma actividade que com o tempo haveria de expandir-se para o Mundo inteiro. Assim, em breve, o método de navegação atlântica se revelou inoperante no Pacífico, um oceano mais vasto, menos balizado por ilhas do que o Atlântico e menos conhecido. Tornava-se cada vez mais evidente a necessidade de um método para determinar a longitude no mar, permitindo aos pilotos determinar a sua posição exacta e planear a rota a seguir. Em reconhecimento deste facto os reis da maior potência marítima da época, a Espanha, criaram prémios avultados para estimular a descoberta de um método de determinação da longitude: Filipe II em 1567, Filipe III em 1598. O mesmo fez uma outra potência marítima, a Holanda, que criou um prémio em 1600. Estes anúncios suscitaram toda uma corrente de tentativas, algumas fundamentadas, outras fantasistas, de criação de um método para o cálculo das longitudes. 

Natureza do problema das longitudes

Geometricamente falando existe uma diferença fundamental entre a latitude e a longitude. O eixo de rotação da Terra é, em primeira aproximação, fixo a respeito da crosta terrestre, o que permite definir sem ambiguidade dois pontos privilegiados (os pólos) e um círculo máximo, o Equador, a partir do qual se mede a latitude. Com a longitude é diferente, é a distância angular entre dois meridianos e, não havendo um meridiano privilegiado, fixa-se convencionalmente um meridiano de referência ou meridiano-zero, nos dias de hoje, o meridiano de Greenwich. 

Fixado este, a partir daí nada existe que se assemelhe à determinação da latitude. Porém, existe um outro fenómeno, a rotação da Terra, extremamente regular, ou seja, a velocidade angular da Terra é razoavelmente constante para o problema em questão: 

w = 7,29 x 10-5 radianos por segundo

uma volta por cada dia sideral (23h 56m 4s). Neste ponto impõe-se uma distinção entre tempo solar e tempo sideral. 

Para um observador situado na Terra esta está imóvel; consideremos os astros projectados sobre uma esfera de raio muito grande chamada esfera celeste. A esfera celeste realiza um movimento diurno de rotação em torno do eixo de rotação da Terra e os astros que nela se situam (melhor dito as projecções respectivas) ou estão fixos, as chamadas estrelas fixas, ou movem-se com movimentos complexos para o observador terrestre, são os planetas, palavra de que vem do grego onde significava astro errante, como a Lua ou Marte. Numa situação à parte teríamos a considerar o Sol que não está fixo sobre a esfera celeste mas que executa um movimento muito regular percorrendo num ano um círculo máximo desta, a eclíptica. Posto isto, define-se dia solar como o intervalo de tempo que decorre entre duas passagens do Sol no meridiano do lugar. E define-se dia sideral como o intervalo de tempo que decorre entre duas passagens de uma estrela fixa no meridiano do lugar. 

Ora, dado que o Sol se move sobre a eclíptica ao longo do ano e a estrela está fixa, compreende-se que o dia solar não pode ter a mesma duração dia sideral; seria mais curto se o Sol se movesse contra a rotação da Terra, mais comprido no caso contrário que é o que ocorre. 

Como sabemos uma hora de diferença de tempo solar corresponde a 15º de diferença de longitude, Leste ou Oeste segundo o lugar que tem a hora mais tardia. Assim, a diferença horária entre dois lugares é igual à diferença de longitudes, como explica Monteiro da Rocha [1]. 
 
 
É sabido que a diferença de longitude entre dois lugares será conhecida, todas vezes que neles se observar qualquer fenómeno instantâneo, e se marcarem exactamente os tempos respectivos das duas observações, porque a diferença deles será a dos meridianos. Se os lugares não forem muito distantes, e de cada um deles se avistasse um ponto intermédio, nele se poderiam mandar fazer sinais instantâneos, quantas vezes se quizesse, e pela observação deles se acertaria a diferença de longitude dos ditos lugares. Mas em lugares distantes, é necessário esperar, que no céu sucedam tais sinais: e tais são os eclipses, como já fizemos menção. Como porém uns são pouco frequentes, e outros não podem observar-se no mar, em vez deles servem as distâncias da Lua ao Sol, ou às estrelas, porque uma dada distância verdadeira é um fenómeno, que se sucede no mesmo instante físico para todos os lugares da Terra.

Foram formuladas duas ideias basilares assentes neste facto: o método de Galileu baseado na ocultação das luas de Júpiter e o método das distâncias da Lua a estrelas; e o método de Huygens baseado num relógio mecânico. 

Por observação, Galileu verificou que ocorriam eclipses nas luas de Júpiter cerca de 1000 vezes por ano, ou seja, quase 3 vezes por dia. Seja o observador M que observa um eclipse às 2h da madrugada e que dispõe de uma tabela que o informa de que esse eclipse é observado em Londres às 23h 30m do dia anterior. Ele sabe que, em termos horários a sua diferença em relação a Londres é +2h 30 m, logo a sua longitude é 37º,5 W (Oeste). Resta o problema da determinação do tempo local que poderia fazer-se astronomicamente. 

Conceptualmente, a solução proposta por Huygens não é muito diferente. Trata-se de construir um relógio que conserve a hora do meridiano de referência. O observador determina a hora local e compara-a com a hora de, digamos, Greenwich e efectua o mesmo cálculo. No sentido de construir um tal relógio, Huygens foi levado a profundos estudos sobre o pêndulo que fazem dele um dos fundadores da Mecânica Racional. 

Até 1735 não foi possível construir relógios capazes de funcionar regularmente independentemente dos movimentos dos navios pelo que a solução astronómica parecia ser a mais evidente. 

Desenvolvimento da solução astronómica

Com a passagem da Espanha para um segundo plano entre as potências marítimas, dois países passaram a disputar a primazia da descoberta de um método astronómico para a determinação da longitude: a França e a Inglaterra. Os respectivosd monarcas fizeram construir observatórios, contrataram astrónomos e criaram organismos especializados na questão das longitudes. 

Em França funciona a partir de 1669 o Observatório Astronómico de Paris cujo primeiro director foi o italiano Cassini (1625 - 1712) e, mais de um século depois, é criado o Bureau des Longitudes (1795) que ainda existe. 

Em Inglaterra, é o Observatório de Greenwich fundado em 1675 cuja direcção é entregue a Flamsteed (1646 - 1719) nomeado Astrónomo Real, cargo criado na mesma ocasião. Em 1714 foi criado o Board of Longitudes e votado pelo Parlamento o Longitude Act que instituiu um prémio de 20.00 libras para quem inventasse um método capaz de determinar a longitude um lugar com um erro inferior a meio grau (ou seja 30 minutos de arco). O Board of Longitudes compunha-se do que havia de mais notável em termos de navegação, de Astronomia e Matemática na época: almirantes, astrónomo real, professores de Matemática de Oxford e Cambridge. O seu membro mais célebre foi Isaac Newton e é este que, ao enunciar a lei da gravitação universal, estabelece o elo de ligação entre o problema das longitudes e todo o esplendor da Matemática do século XVIII. 

Um aspecto relevante nesta matéria é que Portugal também teve, desde o Tratado de Tordesilhas, um problema de longitude. De facto, a fronteira oeste do Brasil era determinada pela linha do meridiano situado a 370 léguas a oeste de Cabo Verde [2]. Deverá ter sido a primeira vez que uma fronteira é definida sobre a carta geográfica e não no terreno. No Brasil, com o avanço da colonização portuguesa para oeste e o avanço da colonização espanhola para leste, somente a barreira dos Andes impediu que o problema das longitudes em terra se tornasse também aí uma questão crucial. 

A solução astronómica pressupunha um conhecimento exaustivo dos movimentos celestes para tirar vantagem da regularidade destes e construir as tabelas de efemérides que permitissem, por observação simples das estrelas, comparar o tempo local com o tempo de Londres. O trabalho exaustivo de Flamsteed é representativo deste objectivo. O seu catálogo de estrelas Historia Coelestis Britannica (1725), continha mais estrelas (3.000) e dava as suas posições com muito maior exactidão do que qualquer outra obra anterior. É um trabalho científico que reflecte uma paixão pelo conhecimento dos céus mas, por detrás existe um objectivo económico indiscutível: a solução do que foi o maior problema tecnológico de todos os tempos. 
 
 
John Flamsteed
(1646 - 1719)
De uma gravura pertencente à Colecção Astronómica

Após o falecimento de Flamsteed, em Greenwich (como noutros observatórios) os trabalhos continuaram sob a direcção dos astrónomos reais e o conhecimento dos movimentos celestes progrediu muito rapidamente. Para que a questão ganhe contornos mais precisos vamos descrever o método de determinação da longitude baseado na posição da Lua a respeito do sol ou de outra estrela. 

A longitude pela posição da Lua

A solução puramente astronómica do problema da longitude baseia-se na posição da Lua a respeito do Sol, ou de outra estrela e na posição destes astros a respeito da Terra, isto é, pela medição dos três ângulos representados na figura: a altura da estrela, a altura da Lua, a distância angular entre a estrela e a Lua. Para estas medições pode usar-se um sextante ou um dos antigos aparelhos de reflexão que antecederam este (vd. Astrolábios e Sextantes neste jornal). 
 
 

As três distâncias angulares fundamentais medidas para determinar a longitude pelo método lunar

Porém, dados os efeitos da atmosfera, as medições angulares tinham que ser acompanhadas da medição da temperatura e da pressão atmosféricas de forma a poderem corrigir-se as medições do efeito da refracção. Após as medições segue-se um processo de cálculo visando 3 objectivos distintos: 

  1. A correcção dos efeitos da atmosfera; 
  2. A correcção do efeito da paralaxe, isto é, passar a referir as medidas ao centro da Terra; 
  3. O cálculo da hora local e o cálculo da hora em Greenwich, a diferença das duas, após a conversão em graus de arco, dá o valor da longitude. 
Todo este cálculo é guiado por uma tabela onde se podem encontrar realizados os cálculos mais importantes e com leituras numa tabela de efemérides astronómicas, renovada anualmente. Instrumento e tabelas formam um conjunto indissociável. 

Todos os países marítimos publicaram tábuas para o cálculo das longitudes e efemérides astronómicas. Em Portugal, a primeira tábua de longitudes é devida a Monteiro da Rocha, publicada em 1799. Um discípulo deste, Francisco de Paula Travassos, lente da Academia Real da Marinha, publicou uma nova tábua seguindo a mesma orientação mas muito mais fina nos valores entrados. Desta tabela se retira o esboço o seguinte: 

  1. Parte-se da latitude, dos ângulos da figura 2 e das indicações do termómetro e do barómetro. 
  2. Calcula-se a hora verdadeira do lugar. 
  3. Numa etapa muito demorada fazem-se as reduções das observações. Consistem na correcção da refracção e do efeito da paralaxe. Esta última para garantir que a distância entre os astros é aquela que se observaria a partir do centro da Terra (que é a que consta nas efemérides). 
  4. Consultam-se as efemérides para ver a que hora em Greenwich a distância verdadeira entre a Lua e o Sol (ou outra estrela) é aquela que se mediu. Uma interpolação permite afinar o cálculo. 

Parte final de um exemplo retirado de
Taboas para o Calculo da Longitude Geografica, 
segundo o Methodo de José Monteiro da Rocha, 
publicadas por Francisco de Paula Travassos

Astronomia e Mecânica Celeste

Numa classificação aproximada, podemos dizer que a Astronomia se ocupa do estudo dos astros enquanto que a Mecânica Celeste se ocupa das leis que regem os seus movimentos. Estabelecido um quadro geral para o estudo do movimento e das forças, existe uma única lei que explica e permite calcular estes movimentos: a lei da atracção universal enunciada por Newton, um contemporâneo de Flamsteed e de Halley. Esta lei dá um processo superior para a determinação das posições futuras dos astros e a sua publicação nas efemérides, do que aquele que seria observar sistematicamente as posições etentar encontrar alguma regularidade nos movimentos. 

O conhecimento da lei da atracção permite teoricamente calcular o movimento da Lua, porém, na prática o problema continua a ser complexo. De facto, segundo a lei da atracção universal, a força que um astro 1 exerce sobre um astro 2 é igual a 

F12 = - G m1m2r -3 r

sendo m1, m2 as massas respectivas; G uma constante universal; r a distância entre eles; r o vector que nos une, orientado de 1 para 2, isto é, r = |r|. Exprime este enunciado, na forma vectorial, que a força tem a direcção da recta definida pelos astros, o sentido do astro 2 para o astro 1 e a grandeza directamente proporcional ao produto das massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância r. De facto, a grandeza de F12 é 

|F12| = G m1m2r -2

Pela lei da acção e reacção, da Mecânica Racional, o astro 2 exerce sobre 1 uma força com grandeza igual, a mesma direcção e sentido oposto: 

F21 = - F12

As forças são iguais em grandeza mas, de acordo com a 2ª lei de Newton, as acelerações produzidas nos dois astros são diferentes e dependem das massas visto que 

m1 a1 = F21

m2 a2 = F12

Isto é, se m1<< m2 a aceleração do astro 2 será muito pequena. É o que sucede com a Terra e o Sol, visto que a massa deste é 232 mil vezes maior do que a massa da Terra. Escrevamos M para a massa do Sol e m para a massa da Terra, xi as coordenadas da Terra num referencial centrado no Sol. A lei da atracção universal origina um sistema diferencial ordinário não-linear de 2ª ordem: 

d2xi / dt2 = - G M r-3 xi

sendo r = (x12 + x22 + x32)1/2; i = 1, 2, 3. Graças a teoremas auxiliares, podemos integrar este sistema diferencial e mostrar que as órbitas são cónicas. O mesmo método pode usar-se para estudar o movimento do Sol a partir da Terra mas nesse caso teremos 

m d2yi / dt2 = - G M m r-3 yi

em que 

m = m M / (M+m)

(yi ) são as coordenadas do Sol e r é distância Terra-Sol. A solução é do mesmo tipo pois que a equação é a mesma. Ao problema descrito chama-se problema dos dois corpos

Porém, o problema do movimento da Lua envolve três corpos: o Sol, a Terra e a Lua e, para efeitos práticos, interessa que seja observado do centro da Terra. Mesmo tendo em conta que a massa da Lua é pequena, ainda temos equações muito complexas, nomeadamente:

O centro do referencial coincide com o centro de massa dos três astros e, em primeira aproximação, coincide com o centro do Sol visto que, tomando para unidade a massa da Lua, 
 
 
massa da Lua 1
massa da Terra 8,15 x 10
massa do Sol 2,71 x 10

Se o sistema fosse integrado, o que é impossível de fazer exactamente, a partir do movimento da Terra podemos reduzir as coordenadas ao centro da Terra. Não se conhece solução exacta para o problema dos 3 corpos. Este problema foi primeiro estudado, na busca de uma solução aproximada para o Sol a Terra e a Lua, por Newton e depois por d'Alembert (1717 - 1783) e Clairaut (1713 - 1763). As primeiras tábuas lunares com interesse para a navegação foram publicadas pelo alemão Mayer em 1747. O cálculo destas tábuas só foi possível graças a um método desenvolvido por Euler e ambos foram recompensados pelo Board of Longitudes

A Mecânica Celeste dá uma visão global e coerente do universo material que repousa sobre 4 axiomas da Mecânica Racional: 

  • universo formado por pontos materiais em número finito N;
  • princípio de Galileu: aditividade vectorial das forças; 
  • acção e reacção; 
  • 2ª lei de Newton: proporcionalidade entre a resultante das forças e a aceleração F = ma.
E mais um outro axioma específico que é a lei da gravitação universal. 

Assim, o universo é um sistema mecânico fechado cuja evolução é regida por um sistema de 3N equações diferenciais ordinárias. E, visto o teorema de existência e unicidade, conhecidas as posições e velocidades dos corpos celestes num determinado instante, seria possível a um ser omnisciente prever os estados futuros do universo. Temos enunciada a visão determinista do universo na sua forma mais perfeita. 

Todavia, mesmo na época mais gloriosa da Mecânica Celeste, as coisas não tinham esta simplicidade, mesmo conceptual. Embora a teoria assente numa lei exacta, existem obstáculos práticos e conceptuais impossíveis de ultrapassar. Já falamos na impossibilidade em resolver exactamente o problema dos três corpos o que leva a soluções numéricas que, por natureza, divergem da solução verdadeira. Mesmo conceptualmente, é preciso ter em conta que o modelo do espaço contínuo se apoia nos números reais mas se as coordenadas de um ponto forem irracionais somente podemos trabalhar com uma aproximação racional. 

Porém, se estes argumentos parecerem muito especiosos existem outros porventura mais fortes. Na realidade, a construção de um referencial pressupõe a existência de um corpo perfeitamente rígido a respeito do qual o observador terrestre mede as coordenadas. Ora, tanto a Terra como os corpos celestes estão sujeitos a pequenos movimentos seculares do tipo da precessão, nutação e movimento dos pólos que levam à necessidade de corrigir permanentemente, a partir das observações astronómicas, os parâmetros que entram nas equações do movimento. 

Poderíamos assim dizer que o universo material é, talvez, determinista nas suas grandes linhas mas indeterminista nos pormenores, pois que necessita de correcções cujos valores são impossíveis de prever. 

Os cronómetros

Desde muito cedo que o problema das longitudes tinha sido ligado ao problema da diferença entre o tempo local e o tempo no meridiano zero. Sendo fácil a determinação da hora local verdadeira, em particular, a determinação do meio dia solar, se houver o conhecimento da hora verdadeira no meridiano zero então está determinada a longitude, como vimos acima. Portanto, um programa possível para o problema das longitudes consistiu na invenção de uma máquina transportável capaz de conservar a hora do meridiano zero, um time-keeper como se diz em inglês mais apropriadamente, ou seja, um conservador do tempo. Esta máquina terá que ter um movimento regular e a capacidade de conservar esta regularidade mesmo durante o transporte no alto mar. 

A primeira invenção deste tipo deveu-se a Huygens, um cientista holandês que viveu entre 1629 e 1695 e que continuou os estudos de Galileu mas que é anterior a Newton (1642 - 1727) e à lei da gravitação e às fluxões. Huygens usou o pêndulo como marcador do fluxo contínuo do tempo mas o pêndulo simples suscita problemas devidos ao facto de, sendo a gravidade que provoca o seu movimento, no movimento do navio, a aceleração a que o pêndulo está sujeito pode ser muito variável. Apesar disso, estes problemas puderam ser atenuados com o uso do pêndulo triangular representado na figura. Contudo, a sua solução não convenceu os seus contemporâneos que continuavam determinados em solucionar o problema da longitude pela via astronómica. 
 
 
O pêndulo de Huygens

De alguma maneira esta atitude, que veio a tomar as características de um preconceito, manifestou-se quando, em 1735, foi apresentado um novo relógio construído por John Harrison (1695 - 1776). Este, durante vinte anos, construiu quatro relógios que apresentou como candidatura ao prémio de 20.000 libras criado pelo Longitude Act. O dito preconceito manifestou-se por várias vezes, mesmo quando as provas eram concludentes a favor desta solução. No fim, o relógio não somente provou ser mais fácil para a determinação da longitude, como foi possível fabricá-lo em termos economicamente aceitáveis. O cronómetro naval revelou-se a solução para a navegação até à construção de uma rede de radio-faróis, já no nosso século. 

Conclusão

Ficou demonstrado que o problema das longitudes suscitou o estudo dos movimentos dos astros, levando à criação de observatórios. Por sua vez, o estudo intenso dos movimentos celestes suscitou a formulação da lei geral destes movimentos, a lei da gravitação universal. Esta lei, passada para forma de equações diferenciais, fomentou o desenvolvimento de vastas áreas da análise infinitesimal. Em particular, o cálculo do movimento da Lua obrigou a uma investigação intensa sobre os desenvolvimentos em série. Todos os mateméticos importantes do século XVIII foram também astrónomos e mecânicos celestes, à excepção de Leibniz e Monge. 

O método matemático mostrou, de forma irrecusável,  a sua validade para explicar e calcular os movimentos celestes. A partir daí, a tendência natural foi aplicá-lo a todas as formas de conhecimento. 

Um ponto interessante é especular sobre o que teria acontecido ao desenvolvimento da ciência moderna se a ideia de Huygens tivesse sido aceite desde o início. Em vez de construir observatórios, os governos teriam organizado laboratórios de artes mecânicas em que se investigariam os metais e a sua maquinação de precisão, assim como a corrosão e outros tópicos que mais tarde se incorporaram na mecânica de precisão. Em vez da Mecânica Celeste, provavelmente, teria sido desenvolvida a Mecânica do Sólido e das suas deformações. É natural que o conceito de ponto material nunca tivesse aparecido pois que a mecânica prática trata é de sólidos contínuos. É natural que a Matemática tivesse tomado outra evolução completamente diferente. Se esta especulação está correcta, então a ciência moderna formou-se verdadeiramente a partir do problema das longitudes e de uma certa solução que lhe foi dada

Referências

[1] J. Monteiro da Rocha, in Ephemerides Astronomicas, Volume I para o anno de 1804, Coimbra, na Real Imprensa da Universidade, 1803 
[2] Luís de Albuquerque - O Tratado de Tordesilhas e as Dificuldades Técnicas da sua Aplicação Rigorosa, Junta de Investigações do Ultramar, 1973 
[3] William J. H. Andrewes (editor) - The Quest for Longitude, Harvard University
A S Alves
Director do OAUC
E-mail: asalves@mat.uc.pt