6 Hilbert: “Sobre o Infinito ”

(Tradução: Walter A. Carnielli)

 

 

                        A estranheza dos resultados acerca dos infinitos distintos e a confusão engendrada pelo paradoxo de Russel levaram muitos matemáticos do começo do século XX a questionar a legitimidade do uso de coleções infinitas em matemática.

Uma situação similar havia ocorrido no século anterior quando Bolyai e Lobachevsky desenvolveram as geometrias não-euclideanas. Basicamente, eles mostraram que se podia juntar aos demais axiomas da geometria a negação do Axioma das paralelas de Euclides, obtendo-se uma nova geometria, que embora parecesse estranha e contraditória com a realidade, devia ter uma consistência interna.

                        Mais tarde foi mostrado por Beltrami, Klein e Poincaré que, se a geometria euclideana fosse livre de contradições, então também o seriam as de Bolyai e Lobachevsky. Isso se conseguia exibindo-se um modelo das novas geometrias dentro da geometria euclideana. Portanto as novas geometrias eram pelo menos tão seguras quanto a geometria euclideana, cuja consistência não estava em questão.

                        David Hilbert teve um papel fundamental na formalização dessas geometrias. No seu livro Grundlagen der Geometrie de 1899 (traduzido para o inglês como Foundations of Geometry), ele apresenta uma axiomatização da geometria plana que contém um núcleo de axiomas aos quais se pode adicionar o axioma das paralelas de Euclides ou sua negação, na forma dada por Riemann. Ele então provou um número suficiente de teoremas no seu sistema formal para mostrar que os dois tipos de geometria poderiam ser completamente caracterizados pelas suas axiomatizações.

                        Mais tarde Hilbert pensou em prosseguir nessa direção com a finalidade de justificar o uso do infinito em matemática. Havia diversas axiomáticas disponíveis para a teoria dos conjuntos por volta de 1920. A dificuldade era mostrar que pelo menos uma delas era livre de contradições. Na sua famosa conferência, apresentada aqui, Hilbert proclama que não há nenhuma razão, a partir das teorias físicas do universo, para se acreditar que exista alguma coisa no mundo que corresponda a uma coleção infinita. Portanto, não há possibilidade de justificar uma axiomática envolvendo infinito por um modelo físico. Como poderia então Hilbert justificar o infinito em matemática?

                        O texto a seguir, que pode ser considerado como um manifesto ao chamado “Programa de Hilbert”, é bastante longo e de difícil compreensão numa primeira leitura. Recomendamos uma releitura após termos estudado como o Programa de Hilbert foi formalizado e se ele pode ou não ser bem sucedido. Não obstante, o leitor deve ser capaz de responder aos exercícios no final do capítulo.

 

 

 “Sobre o Infinito “ por David Hilbert [1]

 

                                 Weierstrass, através de sua crítica penetrante, conseguiu uma sólida fundamentação para a análise matemática. Elucidando, entre outros, os conceitos de mínimo, função e quociente diferencial, ele removeu as falhas que ainda persistiam no cálculo infinitesimal, livrou-o de todas as noções vagas a respeito do infinitesimal e desse modo resolveu definitivamente as dificuldades advindas desse conceito.

                                 Se em análise, hoje, existe harmonia e segurança no emprego dos métodos dedutivos baseados nos conceitos de número irracional e limite e se mesmo nas questões mais complexas da teoria das equações diferenciais e integrais, não obstante o uso das mais variadas e engenhosas combinações de diferentes tipos de limite, existe unanimidade com respeito aos resultados obtidos, isso ocorre substancialmente devido ao trabalho científico de Weierstrass.

                                 Contudo, a despeito da fundamentação que Weierstrass obteve para o cálculo infinitesimal, as disputas a respeito dos fundamentos da análise ainda não tiveram fim.

                                 A razão dessas disputas consiste no fato de que o significado do infinito para a matemática ainda não foi completamente clarificado. De fato, a análise de Weierstrass eliminou o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, reduzindo as proposições correspondentes a relações entre magnitudes finitas. Contudo o infinito ainda aparece nas séries numéricas infinitas que definem os números reais e no conceito de sistema de números reais, o qual é concebido como uma totalidade completa e terminada.

                                 Em sua fundamentação da análise, Weierstrass recorreu livre e reiteradamente às formas de dedução lógica envolvendo o infinito, como por exemplo, quando se trata de todos os números reais com uma certa propriedade, ou quando se argumenta que existem números reais com uma certa propriedade.

                                 Portanto, o infinito pode reaparecer disfarçado na teoria de Weierstrass, escapando da sua aguda crítica e daí segue que o problema do infinito, no sentido indicado, é o que nós temos que resolver de uma vez por todas. Tal como nos processos limite do cálculo infinitesimal, onde o infinito no sentido do infinitamente grande e do infinitamente pequeno acabou se mostrando uma mera figura de linguagem, também o infinito na forma de totalidade, ainda utilizado nos métodos dedutivos, deve ser entendido como uma ilusão. Do mesmo modo em que operações com o infinitamente pequeno foram substituídas por operações com o finito que apresentam exatamente os mesmos resultados e as mesmas elegantes relações formais, os métodos dedutivos baseados no infinito devem ser substituídos por procedimentos finitos que produzam exatamente os mesmos resultados, isto é, que tornem possível as mesmas cadeias de provas e os mesmos métodos de obtenção de fórmulas e teoremas.

                                 Esta é a intenção da minha teoria. Ela tem por objetivo estabelecer de uma vez por todas a confiabilidade definitiva dos métodos matemáticos, o que o período crítico do cálculo infinitesimal ainda não conseguiu; essa teoria deveria portanto completar o que Weierstrass aspirou conseguir com sua fundamentação da análise e para a qual ele deu um passo essencial e necessário.

                                 Mas a questão da clarificação do conceito de infinito leva em consideração uma perspectiva ainda mais geral. Um leitor atento encontrará a literatura matemática repleta de disparates e absurdos que têm sua raiz no infinito. Assim, por exemplo, quando se afirma, à guisa de condição restritiva, que em matemática rigorosa somente um número finito de deduções é admissível numa prova – como se alguém houvesse obtido uma prova com infinitas deduções!

                                 Velhas objeções, que já se supunham há muito abandonadas, ainda reaparecem em novas formas. Por exemplo, apareceu recentemente a seguinte: embora possa ser possível introduzir um conceito sem perigo, isto é, sem obter contradições e mesmo que isso possa ser demonstrado, não está com isso a introdução do conceito ainda justificada. Não é essa precisamente a objeção que havia sido levantada contra os números complexos-imaginários quando se dizia: “De fato, seu uso não leva a nenhuma contradição. No entanto, sua introdução não está justificada, pois magnitudes imaginárias não existem”? Não; se, além da prova de consistência, a questão da justificação de uma medida tiver algum sentido, isso só pode consistir de seu grau de sucesso. Em qualquer atividade o sucesso é essencial; também aqui o sucesso é a suprema corte perante a qual todos se curvam.

                                 Outros autores enxergam contradições – como fantasmas – mesmo onde nenhuma asserção foi proferida, a saber, no próprio mundo concreto das sensações, cujo “funcionamento consistente” é tomado como uma premissa essencial. Eu tenho sempre acreditado, contudo, que somente asserções e hipóteses na medida que estas conduzem a asserções por meio de deduções, podem contradizer-se umas às outras; a opinião de que fatos e eventos possam  contradizer-se uns aos  outros me parece um exemplo primoroso de pensamento descuidado.

                                 Através destas observações quero apenas mostrar que o esclarecimento definitivo da natureza do infinito, muito mais do que interessar ao conhecimento científico especializado, é necessário para a própria dignidade do intelecto humano.

                                 O infinito, como nenhuma outra questão, abala tão profundamente as emoções humanas; o infinito, como nenhuma outra idéia, tão frutiferamente tem estimulado a mente; o infinito, como nenhum outro conceito, necessita ser esclarecido.

                                 Se quisermos nos voltar a esta tarefa de clarificar a natureza do infinito, devemos primeiramente notar de maneira breve o sentido que na realidade é dado ao infinito. Vamos analisar primeiramente o que podemos aprender da física. A primeira impressão ingênua dos eventos naturais e da matéria é a de estabilidade e continuidade. Se considerarmos uma peça de metal ou um volume de um fluído, temos a impressão de que podemos dividi-los indefinidamente, que mesmo o pedaço menor deles ainda conservará as mesmas propriedades do todo. Porém, em todas as direções em que os métodos de investigação da física da matéria foram suficientemente refinados, chega-se às fronteiras da indivisibilidade, que não depende do fracasso de nossos esforços, mas da natureza própria das coisas. De tal modo que se pode considerar a tendência da física moderna como de emancipação do infinitamente pequeno; em lugar do antigo princípio natura non facit saltus poderíamos mesmo afirmar o oposto, “a natureza dá saltos”.

                                 É sabido que toda matéria é composta de pequenas partículas, os átomos, cujas combinações e ligações produzem toda a variedade de objetos macroscópicos. Mas a física não ficou só no atomismo da matéria. No fim do século passado apareceu o atomismo da eletricidade, que parecia ainda mais estranho à primeira vista. Conquanto até aquele momento fosse vista como um fluído e considerada um agente contínuo, a eletricidade mostrou-se constituída de elétrons positivos e negativos.

                                 Fora do domínio da matéria e da eletricidade existe ainda na física uma entidade onde vale a lei da conservação, a saber, a energia. Foi mostrado que nem mesmo a energia admite incondicionalmente infinita divisibilidade. Planck descobriu os quanta de energia.

                                 Portanto, um contínuo homogêneo que admita o tipo de divisibilidade de forma a tornar real o infinito através do  pequeno não se encontra em nenhum lugar da realidade. A infinita divisibilidade do contínuo é uma operação que existe somente em pensamento, uma mera idéia que de fato é rejeitada por nossas observações e nossas experiências da física e da química.

                                 O segundo lugar onde nos deparamos com o problema de encontrar o infinito na natureza é na consideração do universo como um todo. Temos aqui que investigar a expansão do universo para determinar se ele contém algo infinitamente grande.

                                 A opinião sobre a infinidade do mundo foi vigente durante muito tempo. Até Kant, e ainda mais adiante, não se punha em dúvida a infinidade do espaço.

                                 Aqui de novo a ciência moderna, em particular a astronomia, reabriu a questão e tenta resolvê-la sem qualquer auxílio da defeituosa especulação metafísica, mas por raciocínios baseados em experimentos e na aplicação das leis da natureza. Severas objeções contra o infinito foram levantadas. A aceitação da infinitude do espaço segue necessariamente da geometria euclideana. Embora a geometria euclideana seja um sistema conceitual consistente, não segue daí que tenha existência real. Se o espaço é ou não euclideano só pode ser decidido através de observação e experimentação. Na tentativa de se provar a infinidade do espaço por pura especulação froam cometidos erros grosseiros. Do fato de que além de uma certa porção de espaço existe sempre mais espaço, segue somente que o espaço é ilimitado, mas não que seja infinito. Ilimitabilidade e finitude não se excluem. A pesquisa matemática oferece na chamada geometria elíptica um modelo natural para um universo finito. O abandono da geometria euclideana não é mais hoje em dia mera especulação matemática ou filosófica, mas é sustentado por considerações que originalmente não tinham nenhuma relação com a questão da finitude do universo. Einstein mostrou a necessidade de se abandonar a geometria euclideana. Com base em sua teoria gravitacional, ele retoma as questões cosmológicas e mostra que um universo finito é possível e todos os resultados da astronomia são compatíveis com a hipótese de um universo elíptico.

                                 Pudemos estabelecer que o universo é finito em relação a dois aspectos: ao infinitamente grande e ao infinitamente pequeno. Porém pode perfeitamente acontecer que o infinito tenha um lugar justificado em nosso pensamento e que tenha aí o papel de um conceito indispensável. Vejamos como é a situação na matemática, interrogando primeiro a mais pura e ingênua criação do espírito humano, que é a teoria dos números. Consideremos um exemplo da rica variedade de fórmulas elementares da teoria de números:

                                  

Dado que podemos substituir n por qualquer inteiro, por exemplo, n=2 ou n=5; esta fórmula contém implicitamente infinitas proposições. Esta característica é essencial à fórmula e é por isso que ela represente a solução de um problema aritmético e precisa de uma prova, enquanto as equações numéricas particulares

podem ser verificadas através de cálculo simples e são portanto individualmente desprovidas de interesse especial.

                                 Uma outra concepção da noção de infinito completamente diferente e singular é encontrada no importante e frutífero método dos elementos ideais. Mesmo na geometria plana elementar este método encontra aplicação. Neste caso os pontos e retas do plano possuem existência real originária. Para eles vale, entre outros, o axioma da conectividade: por dois pontos passa sempre uma e somente uma reta. Segue daí que duas retas podem se interseccionar no máximo em um ponto. Não vale como teorema que duas retas se cortem sempre em um único ponto, pois duas retas podem ser paralelas. Contudo, sabe-se que através da introdução de elementos ideais, a saber, de retas infinitamente longas e pontos no infinito, podemos obter como teorema que duas retas sempre se interceptam em um e somente um ponto. Estes elementos “infinitamente distantes” têm a vantagem de tornar o sistema das leis de conexão tão simples e universal quanto possível. Ainda mais, por causa da simetria entre retas e pontas resulta o tão frutífero princípio da dualidade da geometria.

                                 Outro exemplo do uso dos elementos ideais ocorre nas conhecidas magnitudes complexo-imaginárias da álgebra, que simplificam os teoremas sobre a existência e quantidade de raízes de uma equação.

                                 Tal como em geometria infinitas retas paralelas entre si podem ser utilizadas na definição de um ponto ideal, também na aritmética certos sistemas infinitos de números podem ser considerados como ideais, e constituem o uso mais genial do princípio dos elementos ideais. Se isso é feito num corpo algébrico de números, recuperamos as propriedades simples e bem-conhecidas de divisibilidade, tais como valem para os números inteiros 1, 2, 3, 4, ... . Já chegamos aqui ao domínio da aritmética superior.

                                 Vamos agora nos voltar à análise matemática, este produto mais fino e elaborado da ciência matemática. Vocês já conhecem o papel preponderante que o infinito aí desempenha e como de certa forma a análise matemática pode ser considerada uma sinfonia do infinito.

                                 O enorme progresso realizado no cálculo infinitesimal resulta principalmente das operações com sistemas matemáticos com infinitos elementos. Como parece bastante plausível identificar infinito com “muito grande”, logo apareceram inconsistências, os chamados paradoxos do cálculo infinitesimal, em parte já conhecidos dos antigos sofistas. Constituiu progresso fundamental o reconhecimento de que muitos teoremas que valem para o finito (por exemplo, de que a parte é menor que o todo, existência de mínimo e máximo, intercâmbio da ordem dos termos entre soma e produto) não podem ser imediata e irrestritamente estendidos para o infinito. Afirmei no começo da minha conferência que estas questões tinham sido completamente elucidadas, notadamente como conseqüência da acuidade de Weierstrass e hoje a análise é não somente uma ferramenta infalível como um instrumento prático para uso do infinito.

                                 Mas a análise por si só não nos conduz à compreensão mais profunda da natureza do infinito. Esta nos é dada por uma disciplina que mais se  aproxima de um método filosófico geral e que foi engendrada para lançar nova luz sobre o grande complexo das questões sobre o infinito. Esta teoria, criada por Georg Cantor, é a teoria dos conjuntos e estamos aqui interessados somente naquela parte única e original da teoria que forma o núcleo central da doutrina de Cantor, a saber, a teoria dos números transfinitos. Esta teoria me parece o mais refinado produto do gênio matemático e uma das façanhas supremas da pura atividade intelectual humana. O que é, então, esta teoria?

                                 Alguém que desejasse caracterizar brevemente a nova concepção do infinito que Cantor introduziu, poderia afirmar que em análise lidamos com o infinitamente grande e o infinitamente pequeno somente como conceitos-limite, como algo a acontecer ou vir a ser, isto é, como infinito potencial. Mas este não é o verdadeiro infinito. Encontramos o verdadeiro infinito somente quando consideramos a totalidade dos números 1, 2, 3, 4, ... como uma unidade completa, ou quando tomamos os pontos de um intervalo como uma totalidade que existe, de uma só vez. Este tipo de infinito é conhecido como infinito atual ou completado.

                                 Frege e Dedekind, os dois mais célebres matemáticos por seu trabalho nos fundamentos da matemática, usaram o infinito atual─ independentemente um dou outro─ para prover fundamento para a aritmética que fosse independente da intuição e da experiência, somente  baseado pura lógica e deduzindo toda a aritmética a partir dela. Dedekind chegou mesmo ao ponto de evitar o uso intuitivo de número finito, derivando este conceito a partir da noção de conjunto infinito. Foi Cantor, porém, quem desenvolveu sistematicamente o conceito de infinito atual. Retomemos os dois exemplos de infinito citados:

1.            1, 2, 3, 4, ...

2.            Os pontos do intervalo entre 0 e 1, ou, o que é o mesmo, a totalidade dos números reais entre 0 e 1;

é bastante natural considerar estes exemplos do ponto de vista de sua magnitude, mas tal tratamento revela resultados surpreendentes, conhecidos de todo matemático hoje em dia. De fato, quando consideramos o conjunto de todos os números racionais, isto é, as frações

notamos que do ponto de vista de seu tamanho este conjunto não é maior que o dos inteiros: dizemos que os racionais podem ser enumerados. O mesmo vale para o conjunto de todas as raízes de números inteiros e também para o conjunto de todos os números algébricos. O segundo exemplo é análogo: surpreendentemente, o conjunto dos pontos de um quadrado ou cubo não é maior do que o conjunto dos pontos no intervalo de 0 a 1. O mesmo vale para o conjunto de todas as funções contínuas. Quem vivencia estes fatos pela primeira vez, pode ser levado a pensar que do ponto de vista do tamanho existe um único infinito. Não. Os conjuntos em nossos exemplos (1) e (2) não são, como se diz, “equipotentes”; de fato, o conjunto (2) não pode ser enumerado, senão que é maior que o conjunto (1). [Veja o capítulo 5 para uma exposição detalhada destes resultados. N.A.]. Encontramos aqui o que é novo e característico da teoria de Cantor: os pontos do intervalo não podem ser enumerados da maneira usual, isto é, contando 1, 2, 3, ... . Mas já que admitimos o infinito atual, nada nos obriga a parar aí. Quando tivermos contado 1, 2, 3, ... , poderemos tomar os objetos assim enumerados como um conjunto infinito completado. Se, seguindo Cantor, chamarmos w a este tipo de ordem, então a contagem continua naturalmente como w+1, w+2, ... até w+w ou w.2 e daí de novo como w.2+1, w.2+2, w.2+3, ... w.2+ w=w.3 e novamente como w.2, w.3, w.4, ...,w.w = w2 , w2+1, até obter finalmente a seguinte tabela:

1, 2, 3, ...

w, w+1, w+2, ...

w.2, w.2+1, w.2+2, ...

w.3, w.3+1, w.3+2, ...

w2 , w2+1, ...

w2 + w , w2 + w.2, w2 + w.3, ...

w2.2, ...

w2.2+w, ...

w3, ...

w4, ...

´

ww, www, wwww,...

 

Estes são os primeiros números transfinitos de Cantor, chamados por ele de números da segunda classe. Obtemos estes números simplesmente estendendo o processo de contagem além da enumeração ordinária, isto é, através de uma continuação natural e unicamente determinada da contagem usual finita. Da mesma forma como, até agora, temos contado somente o primeiro, segundo, terceiro, ... elemento de um conjunto, contamos também o w-ésimo, (w+1)-ésimo, ww-ésimo elemento.

                                 A partir destes resultados pode-se perguntar se realmente podemos usar a contagem com respeito a tais conjuntos, que não são enumeráveis no sentido usual.

                                 Cantor desenvolveu com base nestes conceitos e com bastante sucesso, a teoria dos números transfinitos e formulou um cálculo para eles. Desta forma, graças ao esforço hercúleo de Frege, Dedekind e Cantor o infinito se fez rei e reinou em grande triunfo. Em vôo vertiginoso, o infinito atingiu o pináculo da glória.

                                 A reação, porém, não se fez esperar e veio de maneira realmente dramática. Ela aconteceu de forma perfeitamente análoga à reação que havia ocorrido contra o cálculo infinitesimal. No afã do descobrimento de resultados novos e importantes os matemáticos prestavam pouca atenção à validade de seus métodos dedutivos; então, simplesmente como resultado da mera aplicação de definições e métodos dedutivos que já pareciam costumeiros, contradições começaram gradualmente a aparecer. A princípio esporádicas, foram se tornando mais e mais agudas e sérias, até chegar aos paradoxos da teoria dos conjuntos. Em especial, uma contradição descoberta por Zermelo e Russell [Veja capítulo 1, N.A.] teve um efeito catastrófico quando se tornou conhecida no mundo da matemática. Confrontados com este paradoxo, Dedekind e Frege abandonaram completamente seu próprio ponto de vista e bateram em retirada. Dedekind hesitou longo tempo antes de permitir uma reedição de seu tratado que marcou época, Was sind und was sollen die Zahlen. Frege, num apêndice, teve que reconhecer que seu livro Grundgesetze der Mathematik estava no rumo errado. A doutrina de Cantor, também, foi atacada de todos os lados. A reação foi tão violenta que até os conceitos mais naturais e os métodos mais simples e importantes da matemática foram ameaçados e seu emprego esteve na iminência de ser considerado ilícito. Os defensores da antiga ordem, é claro, não faltaram, mas sua estratégia defensiva era muito débil e eles nunca puderam formar uma frente unida na defesa de seus pontos-chave. Os remédios contra os paradoxos eram demasiados e os métodos propostos variados demais. Deve-se admitir que o presente estado de coisas em relação aos paradoxos é intolerável. Pense nisso: as definições e métodos dedutivos que todos aprendem, ensinam e usam em matemática, o paradigma da verdade e certeza, levam a absurdos! Se o raciocínio matemático é defeituoso, onde encontraremos verdade e certeza?

                                 Existe, contudo, um caminho satisfatório para evitar os paradoxos sem trair nossa ciência. As atitudes que nos ajudarão a achar este caminho e a direção a tomar são as seguintes:

1.      Definições frutíferas e métodos dedutivos que tiverem uma esperança de salvamento serão cuidadosamente investi­ga­dos, nutridos e fortalecidos. Ninguém nos expulsará do paraíso que Cantor criou para nós.

2.      É necessário estabelecer para todas as deduções mate­má­ti­cas o mesmo grau de certeza das deduções da teoria elementar dos números, onde ninguém duvida e onde contradições e paradoxos só ocorrem devido a nosso descuido.

                                 O completamento desta tarefa só será possível quando tivermos elucidado completamente a natureza do infinito.

                                 Já vimos que o infinito não se acha em lugar algum da realidade, não importa a quais experimentos, observações e conhecimento lancemos mão. É possível que nosso pensamento a respeito da realidade seja tão distinto da própria realidade? Podem os processos de pensamento ser tão diferentes dos processos reais? Não parece claro, ao contrário, que quando pensamos haver encontrado o infinito em algum sentido real, tenhamos na verdade sido meramente iludidos pelo fato de que freqüentemente encontramos dimensões extremamente peque­nas e grandes na realidade?

                                 A dedução da lógica material [2] já nos decepcionou ou nos deixou em posição difícil quando a aplicamos aos eventos ou coisas reais? Não – a dedução da lógica material é imprescindível! Ela nos decepcionou somente quando formamos definições abstratas, especialmente aquelas que envolvem objetos infinitários; nestes casos estivemos usando a lógica material de forma ilegítima, isto é, não atentamos suficientemente para os pré-requisitos necessários para seu uso correto. Ao reconhecer que existam tais pré-requisitos que devem ser levados em conta, encontramo-nos em pleno acordo com os filósofos, notadamente com Kant. Já Kant havia ensinado e isso é parte integral de sua doutrina, que a matemática trata de um tema independente da lógica, portanto a matemática não pode e nem poderá nunca ser fundamentada somente na lógica. Conseqüentemente, as tentativas de Frege e Dedekind nesse sentido estariam fadadas ao erro. Como outra pré-condição para o uso da dedução lógica e para as operações lógicas devem ser considerados objetos concretos extra-lógicos, que existem com base na experiência imediata previamente a todo  pensamento.

                                 Para que as deduções lógicas sejam seguras, devemos ser capazes de vislumbrar todos os aspectos destes objetos, e seu reconhecimento, distinção  e ordenação são dados, juntamente com os próprios objetos, como coisas que não podem ser reduzidas a outras ou requerer qualquer redução. Tal é a filosofia básica que eu acredito necessária, não só para a matemática, mas para toda comunicação, entendimento e pensamento científicos. Em especial na matemática, seu objeto deve consistir, desta forma, nos próprios símbolos concretos cuja estrutura é imediatamente clara e reconhecível.

                                 Tenhamos presente a natureza e os métodos da teoria elementar finitária dos números. Esta teoria pode certamente ser construída a partir de estruturas numéricas, através de considerações materiais intuitivas. Mas certamente a matemática não consiste somente de equações numéricas e certamente não pode a elas ser reduzida. Contudo pode-se argumentar que a matemática é um aparato que, quando aplicado aos inteiros, sempre produz equações numéricas corretas. Mesmo assim, ainda temos que investigar a estrutura deste aparato o suficiente para garantir que ele de fato sempre produzirá equações corretas. Para levar a efeito tal investigação dispomos somente dos mesmos métodos finitários, materiais concretos que servem para derivar equações numéricas na teoria dos números. Esta exigência científica pode ser de fato satisfeita, ou seja, é possível, de uma maneira puramente intuitiva e finitária - do mesmo modo como obtemos as proposições verdadeiras da teoria dos números – conseguir as intuições que garantam a confiabilidade do aparato matemático.

                                 Consideremos a teoria dos números mais de perto. Na teoria dos números temos os símbolos numéricos:

                                 1, 11, 111, 11111

onde cada símbolo é intuitivamente reconhecido pelo fato de que contém somente 1´s. Estes símbolos numéricos que são nosso objeto de estudo não têm em si mesmo nenhum significado. Adicionalmente a estes símbolos, mesmo na teoria elementar dos números, temos outros que possuem significado e que servem para facilitar a comunicação: por exemplo, o símbolo 2 é usado como uma abreviação para o símbolo numérico 11 e 3 como uma abreviação para 111. Usamos ainda símbolos como +, = e > para comunicar proposições. Já 2+3=3+2 pretende comunicar o fato de que 2+3 e 3+2, levando em conta as abreviações, são o mesmo e idêntico símbolo, a saber, o símbolo numérico 11111. Similarmente, 3 > 2 serve para comunicar o fato de que o símbolo 3, isto é, 111, é mais longo do que o símbolo 2, isto é, 11; ou, em outras palavras, que o último é parte própria do primeiro.

                                 Usamos também as letras a, b, c para comunicação[3]. Desta forma, b>a comunica o fato que o símbolo numérico b é mais longo do que o símbolo numérico a. Sob este ponto de vista, a+b=b+a comunica somente o fato de que o símbolo numérico a+b é o mesmo que b+a. O conteúdo material do que é comunicado pode também ser demonstrado através de regras da dedução material e de fato este tipo de tratamento pode nos levar bastante longe.

                                 Gostaria de dar um primeiro exemplo onde este método intuitivo é transcendido. O maior número primo conhecido é o seguinte: (39 dígitos)

p = 170 141 183 460 469 231 731 687 303 715 884 105 727

Pelo conhecido método de Euclides podemos dar uma demonstração, que cabe inteiramente dentro de nosso enfoque finitário, de que existe pelo menos um novo número primo entre p+1 e p!+1. A forma da proposição já é perfeitamente apropriada ao enfoque finitário, pois a expressão “existe” somente abrevia a expressão seguinte: é certo que p+1 ou p+2 ou p+3 ... ou p!+1 é primo. Mais ainda, desde que é a mesma coisa, nesse caso, dizer que existe um número primo tal que é:

1.      > p e simultaneamente,

2.      < =  p!+1,

podemos chegar à idéia de formular um teorema que expressa somente uma parte do teorema euclideano, isto é, podemos formular um teorema que afirma que existe um primo > p. Embora este último teorema seja muito mais fraco em termos de conteúdo, já que afirma apenas parte da proposição euclideana e embora a passagem do teorema euclideano a este seja praticamente inócua, esta passagem envolve um passo transfinito quando a proposição parcial é tomada fora de contexto e considerada de forma independente.

                                 Como pode ser isso? Porque temos uma proposição existencial! É verdade que tínhamos uma proposição similar no teorema euclideano, mas naquele caso o “existe”, como mencionado, é apenas uma abreviação para “p+1 ou p+2 ou p+3 ... ou p!+1 é um número primo”, exatamente como eu poderia dizer, ao invés de “ou este pedaço de giz, ou este pedaço, ... , ou este pedaço é vermelho” que “existe um objeto” com uma certa propriedade numa totalidade finita conforma-se perfeitamente a nosso enfoque finitário. Mas uma proposição da forma “ou p+1 ou p+2 ou p+3 ... ou (ad infinitum) ... satisfaz uma certa propriedade” consiste na verdade em um produto lógico infinito. Uma tal extensão na direção do infinito, a menos que se tomem precauções adicionais, não é mais lícita que a extensão do finito ao infinito no cálculo integral e diferencial; sem cuidado adicional, ela nem em significado.

                                 De nossa posição finitária, uma proposição existencial da forma “existe um número com uma certa propriedade” em geral só tem significado como uma proposição parcial, isto é, como parte de uma proposição melhor determinada. A formulação mais precisa, contudo, para muitos propósitos pode ser desnecessária.

                                 Encontramos o infinito analisando uma proposição existencial cujo conteúdo não pode ser expresso por uma disjunção finita. De modo similar, negando uma proposição geral, que se refere a símbolos numéricos arbitrários, obtemos uma proposição transfinita. Por exemplo, a proposição que se a é um símbolo numérico então a+1=1+a  vale sempre,  de nossa perspectiva finitária é incapaz de negação. Veremos melhor isso se considerarmos que este enunciado não pode ser interpretado como uma conjunção de infinitas equações numéricas conectadas através de “e” mas somente como um juízo hipotético que afirma algo no caso de ser dado um símbolo numérico.

                                 A partir de nossa posição finitária, portanto, não se pode sustentar que uma equação como aquela dada acima, onde ocorre um símbolo numérico arbitrário, ou é válida para todo símbolo ou é refutada por um contra-exemplo. Um tal argumento, sendo uma aplicação da lei do terceiro excluído, fundamenta-se na pressuposição de que a asserção da validade universal desta equação é passível de negação.

                                 De todo modo, constatamos o seguinte: se nos colocamos no domínio das asserções finitárias, como de resto deveríamos, temos em geral que conviver com leis lógicas muito complicadas. A complexidade torna-se insuportável quando as expressões “para todo” e “existe” são combinadas e involucradas. Em suma, as leis lógicas que Aristóteles professava e que a humanidade tem usado desde os primórdios do pensamento não mais valeriam. Podemos, é claro, desenvolver novas leis que valham especificamente para o domínio das proposições finitárias. Mas não nos traria nenhum proveito desenvolver tal lógica, pois não queremos nos livrar das leis simples da lógica de Aristóteles e ninguém, ainda que falasse a língua dos anjos, poderia impedir as pessoas de negar proposições gerais, ou de formar juízos parciais, ou de fazer uso do tertium non datur. Como devemos, então, proceder?

                                 Vamos lembrar que somos matemáticos e que como matemáticos temos estado muitas vezes em situação precária, da qual fomos resgatados pelo método genial dos elementos ideais. Alguns exemplos ilustrativos do uso deste método foram vistos no início desta conferência.  

                                 Da mesma forma que i= foi introduzido para preservar da forma mais simples as leis da álgebra (por exemplo, as leis sobre existência e quantidade de raízes numa equação); da mesma forma que os fatores ideais foram introduzidos para preservar as leis simples de divisibilidade para números algébricos (por exemplo um divisor comum ideal para os números 2 e 1+ pode ser introduzido, embora tal divisor na realidade não exista); similarmente, para preservar as regras formais simples da lógica de Aristóteles devemos suplementar as asserções finitárias com asserções ideais. É irônico que os métodos dedutivos que Kronecker tão veementemente atacava constituam a exata contraparte do que o próprio Kronecker tão entusiasticamente admirava no trabalho de Kummer na teoria dos números, e que ele apreciava mesmo como o mais alto feito da matemática.

                                 De que forma obtemos asserções ideais? É um fato notável e ao mesmo tempo favorável e promissor que, para obter elementos ideais, precisemos apenas continuar de maneira óbvia e natural o desenvolvimento que a teoria dos fundamentos da matemática já traçou. De fato, devemos ter claro que mesmo a matemática elementar vai além da teoria intuitiva dos números. Esta não inclui, por exemplo, os métodos de computação algébrica literal. As fórmulas da teoria intuitiva dos números têm sido sempre usadas exclusivamente com o propósito de comunicar. As letras representam símbolos numéricos e uma equação comunica o fato de que dois símbolos coincidem. Em álgebra, por outro lado, as expressões literais são estruturas que formalizam o conteúdo material da teoria dos números. Em lugar de asserções sobre símbolos numéricos temos fórmulas que são elas próprias o objeto concreto de estudo. No lugar de provas na teoria dos números temos derivações de fórmulas a partir de outras fórmulas, de acordo com certas regras determinadas.

                                 Ocorre, portanto, como vemos na álgebra, uma proliferação de objetos finitários. Até agora os únicos objetos eram símbolos numéricos como 1, 11, ..., 11111. Estes constituíam o único objeto do tratamento material. Mas a prática matemática vai mais longe, mesmo na álgebra. De fato, mesmo quando uma asserção é válida de acordo com seu significado e pressupondo nosso ponto de vista finitário, como, por exemplo, no caso do teorema que afirma que sempre

                                      a+b=b+a

onde a e b representam símbolos numéricos particulares, ainda nesse caso preferimos não usar esta forma de comunicação, mas substituí-la pela fórmula:

                                       a+b=b+a

Esta última não constitui de maneira nenhuma uma comunicação com significado imediato, mas uma certa estrutura formal cuja relação com as antigas asserções finitárias:

                                       2+3=3+2,

                                       5+7=7+5,

consiste no fato de que, quando a e b são substituídos na fórmula pelos símbolos numéricos 2, 3, 5, 7, obtêm-se proposições finitárias e este ato de substituição pode ser visto como um procedimento de prova, ainda que muito simples. Concluímos então que a,b,=,+ e também as fórmulas completas a+b=b+a não possuem significado próprio tanto quanto os símbolos numéricos. Contudo, podemos derivar outras fórmulas a partir destas, às quais podemos associar um significado, interpretando-as como comunicações a respeito de proposições finitárias. De maneira geral, podemos conceber a matemática como uma coleção de fórmulas de duas espécies: primeiramente, aquelas às quais correspondem as comunicações de asserções finitárias com sentido e, em segundo lugar, outras fórmulas sem significado e que são a estrutura ideal da nossa teoria.

                                 Qual era então nosso objetivo? Em matemática, por um lado, encontramos proposições finitárias que contêm somente símbolos numéricos, por exemplo:

                                       3>2, 2+3=3+2, 2=3, 1¬1

que, de nosso enfoque finitário, são imediatamente intuídas e compreendidas, sem recurso adicional; estas proposições podem ser negadas, elas são  verdadeiras ou falsas e podemos aplicar a elas a lógica aristotélica de maneira irrestrita, sem precauções especiais. Para elas vale o princípio da não-contradição, isto é, uma proposição e sua negação não podem ser ambas verdadeiras. Vale também o tertium non datur, isto é, uma proposição, ou sua negação, é verdadeira. Afirmar que uma proposição é falsa equivale a afirmar que a sua negação é verdadeira. Por outro lado, além destas proposições elementares não problemáticas, encontramos outras asserções finitárias mais problemáticas, como aquelas que não podem ser divididas em asserções parciais. Finalmente introduzimos as proposições ideais com o intuito de que as leis usuais da lógica possam valer universalmente. Mas desde que estas proposições ideais, isto é, as fórmulas, não significam nada uma vez que não expressam proposições finitárias, as operações lógicas não podem ser materialmente aplicadas a elas do mesmo modo como o são para proposições finitárias.

                                 É, portanto, necessário formalizar as próprias operações lógicas e demonstrações matemáticas. Uma tal formalização requer transformar relações lógicas em fórmulas. Portanto, junto com os símbolos matemáticos, precisamos também introduzir símbolos lógicos tais como:

   /\ ,                     \/,                     =>,                   ~

(conjunção)   (disjunção)    (implicação)       (negação)

e, juntamente com as variáveis a, b, c, ... devemos também empregar variáveis lógicas, ou seja, as variáveis proposicionais A, B, C ... .

                                 Como isso pode ser feito? Felizmente, a mesma harmonia preestabelecida que tantas vezes encontramos vigente na história do desenvolvimento da ciência – a mesma que ajudou Einstein, dando a ele o cálculo geral de invariantes já previamente trabalhado para sua teoria gravitacional – vem também em nossa ajuda: encontramos o cálculo lógico já previamente trabalhado. Na verdade, este cálculo lógico foi desenvolvido originalmente de uma perspectiva completamente distinta. Os símbolos do cálculo lógico foram originalmente introduzidos para comunicar. Contudo, é consistente com nossa perspectiva finitária negar qualquer significado aos símbolos lógicos, como negamos significado aos símbolos matemáticos e declarar que as fórmulas do cálculo lógico são proposições ideais sem qualquer significado próprio. Possuímos, no cálculo lógico, uma linguagem simbólica capaz de transformar asserções matemáticas em fórmulas e capaz de expressar a dedução lógica por meio de procedimentos formais. Em exata analogia com a transição da teoria material dos números à álgebra formal, tratamos agora os sinais e símbolos de operação do cálculo lógico abstraindo do seu significado. Desta forma, finalmente, obtemos, ao invés do conhecimento matemático material que é comunicado através da linguagem comum, somente uma coleção de fórmulas envolvendo símbolos lógicos e matemáticos que são gerados sucessivamente, de acordo com regras determinadas. Algumas dessas fórmulas correspondem a axiomas matemáticos e as regras segundo as quais fórmulas são derivadas umas das outras correspondem à dedução material. A dedução material é então substituída por um procedimento formal governado por regras. A passagem rigorosa do tratamento ingênuo para o formal, portanto, é levada a efeito tanto pelos axiomas (os quais, embora originalmente vistos como verdades básicas têm sido tratados na axiomática moderna como meras relações entre conceitos), como pelo cálculo lógico (originalmente considerado como não mais que uma linguagem diferente).

                                 Vamos agora explicar brevemente como podemos formalizar as demonstrações matemáticas.

 

[Neste ponto Hilbert discute a formalização da dedução lógica, uma versão equivalente da qual é apresentada nos capítulos 18 e 20 do presente texto. N.A.].

 

                                 Estamos portanto em posição de levar adiante nossa teoria da prova e construir um sistema de fórmulas demonstráveis, ou seja, de toda a matemática.

                                 Mas em nosso regozijo pela conquista e em particular pela nossa alegria em encontrar um instrumento indispensável, o cálculo lógico, já pronto de antemão e sem nenhum esforço de nossa parte, não devemos esquecer a condição essencial de nosso trabalho. Há apenas uma condição, embora seja uma condição absolutamente necessária, ligada ao método dos elementos ideais: a prova de consistência, pois a extensão de um domínio através da adição de elementos ideais só é legitimada se a extensão não causa o aparecimento de contradições no domínio inicial, ou seja, somente se as relações válidas nas novas estruturas continuarem a ser  válidas no domínio anterior, quando os elementos ideais são canceladas.

                                 O problema da consistência nas presentes circunstâncias é passível de ser tratado. Ele se reduz, obviamente, a provar que a partir dos nossos axiomas e através das regras estabelecidas não podemos obter “1¬1” como a última fórmula numa demonstração, ou, em outros termos, que 1¬1 não é uma fórmula demonstrável. Esta é uma tarefa que cabe no domínio do tratamento intuitivo, tanto quanto, por exemplo, a tarefa de obter uma prova da irracionalidade de  na teoria dos números, isto é, uma prova de que é impossível encontrar dois símbolos numéricos a e b que satisfaçam a relação a2 = 2.b2, ou, em outras palavras, que não se pode neste caso produzir dois símbolos numéricos com uma certa propriedade. Similarmente, é nossa incumbência mostrar que um tal tipo de prova não se pode produzir. Uma prova formalizada, tal qual um símbolo numérico, é um objeto concreto e visível. Podemos descrevê-la completamente, do começo ao fim. Mais ainda, o requisito de que a última fórmula seja 1¬1 é uma propriedade concreta da prova. Podemos, de fato, demonstrar que  não é possível obter uma prova que termine com aquela fórmula, e justificamos assim nossa introdução das proposições ideais.

                                 É ainda uma agradável surpresa descobrir que, ao mesmo tempo, resolvemos um problema que tem estado ardente por longo tempo, a saber, o problema de provar a consistência dos axiomas da aritmética. Onde quer que o método axiomático esteja sendo usado surge a questão de provar a consistência. Nós seguramente não queremos na escolha, compreensão e uso das regras e axiomas, apoiar-nos somente na fé cega. Na geometria e nas teorias físicas o problema é resolvido reduzindo a consistência destas teorias à dos axiomas da aritmética, mas obviamente este método não basta para provar a consistência da própria aritmética. Já que nossa teoria da prova, baseada no método dos elementos ideais, nos permite dar este último importante passo, ele deve ser a pedra fundamental da construção doutrinária da axiomática. O que já vivenciamos por duas vezes, uma vez com os paradoxos do cálculo infinitesimal, e outra vez com os paradoxos da teoria dos conjuntos, não ocorrerá uma terceira vez, nem nunca mais.

                                 A teoria da prova que esboçamos não somente é capaz de prover uma base sólida para os fundamentos da matemática, mas também, acredito, pode prover um método geral para tratar questões matemáticas fundamentais, as quais os matemáticos até agora não foram capazes de manejar.

                                 A matemática tornou-se uma corte de arbitragem, um supremo tribunal para decidir questões fundamentais – em bases concretas com as quais todos podem concordar e onde toda asserção pode ser controlada.

                                 As alegações do assim chamado “Intuicionismo” [Ver capítulo 25.] – modestas como possam ser – devem, em minha opinião, primeiro receber seu certificado de validade deste tribunal.

                                 Um exemplo do tipo de questões fundamentais que podem ser tratadas deste modo é a tese de que todo problema matemático é solúvel. Estamos todos convencidos de que seja realmente assim. De fato, uma das motivações principais para nos ocuparmos de um problema matemático é que ouvimos sempre este grito dentro de nós: aí está o problema, ache a resposta; você pode encontrá-la através do pensamento puro, pois não há ignorabimus em matemática. Minha teoria da prova não é capaz de suprir um método geral para resolver qualquer problema matemático – simplesmente  tal método não existe; contudo, a prova de que a hipótese da solubilidade de todo problema matemático  não causa contradição cai no escopo da nossa teoria.

                                 Mas quero ainda jogar um último trunfo: para uma nova teoria, sua pedra-de-toque definitiva é a habilidade de resolver problemas que, mesmo conhecidos há longo tempo, a teoria mesma não tenha sido expressamente projetada para resolver. A máxima “por seus frutos deveis reconhecê-las” aplica-se também a teorias.

 

[Neste ponto Hilbert afirma ser capaz de resolver a Hipótese do Contínuo: existe alguma coleção infinita cujo cardinal seja maior que N e menor que R? Hilbert certamente estava enganado, pois Kurt Gödel provou, em 1938, que a Hipótese do Contínuo (Generalizada) não pode ser refutada na teoria dos conjuntos ZFC,  e Paul Cohen em 1963  provou  que a Hipótese do Contínuo não pode também ser demonstrada em ZFC. A Hipótese do Contínuo é portanto independente de ZFC, situação que aparentemente Hilbert não estaria levando em conta, como se depreende de seu texto. N.A.].

 

                                 Em resumo, vamos voltar ao nosso tema principal e tirar algumas conclusões a partir de nossas considerações sobre o infinito. Nosso resultado geral é que o infinito não se encontra em lugar algum na realidade. Não existe na natureza e nem oferece uma base legítima para o pensamento racional – uma notável harmonia entre existência e pensamento. Em contraste com os primeiros esforços de Frege e Dedekind, estamos convencidos de que certos conceitos e juízos preliminares são condições necessárias ao conhecimento científico, e que a lógica por si só não é suficiente. As operações com o infinito só podem ser tornadas seguras através do finitário.

                                 O papel que resta ao infinito é somente o de uma idéia – se entendemos por uma idéia, na terminologia de Kant, um conceito da razão que transcende toda experiência e que completa o concreto como uma totalidade – uma idéia em que podemos confiar sem hesitar graças ao quadro conceitual erigido por nossa teoria.

                                 Finalmente, quero agradecer a P. Bernays por sua inteligente colaboração e valiosa ajuda, tanto na parte técnica quanto editorial especialmente em relação à prova do teorema do contínuo.

               Exercícios­­­­­­­­­­­_________________________________________

1.      Por que um modelo para uma coleção de axiomas justifica que estes axiomas sejam livres de contradição?

2.    a. Qual é o motivo do discurso de Hilbert?

       b. O que Hilbert tanto admirava em Weierstrass?

       c. Você concorda com Hilbert quando ele afirma que “em matemática, como em tudo o mais, o sucesso é a suprema corte perante a qual todos se curvam”?

       d. Qual era o paraíso que Cantor criou?

       e. Por que Hilbert afirma que as leis lógicas de Aristóteles não valem: Qual é seu plano para resolver esta questão?

       f. Quais são os elementos ideais em aritmética?

       g. Quando se justifica o uso de proposições ideais?

       h. Por que Hilbert estava especialmente preocupado em demonstrar a consistência da aritmética?

       i.De acordo com Hilbert, quais são os objetos que a matemática estuda?

       j. O ponto de vista de Hilbert como mostrado aqui é chamado formalismo. Este nome é adequado?

       l. Qual é o papel da lógica no programa de Hilbert? Em que difere do papel da lógica no programa de Frege?

3. Um platonista discordaria de Hilbert em muitos pontos, mas fundamentalmente na justificação do uso do infinito em matemática. Explique.

4.    De que forma Goodstein, como um construtivista, poderia objetar ao uso que Hilbert propõe para os objetos ideais da matemática?

              Leitura Adicional

A biografia de Hilbert por Constance Reid oferece uma ótima oportunidade de aprofundar seus conhecimentos acerca da história da matemática e do programa de Hilbert.

 



[1]                 Texto de uma conferência proferida em 4 de junho de 1925 num congresso da Sociedade Matemática da Westfalia, em Münster, em homenagem a Karl Weierstrass. Traduzido por W.A.Carnielli a partir do original alemão publicado em Mathematische Annallen (Berlim) v. 95 (1926), pp. 161-190.

[2]                 Traduzimos o termo alemão “inhaltlich” como “material” (por exemplo, em “inhaltliche Logik”  como  “lógica material” no sentido de “concreta”).

[3]                 Utilizamos letras em negrito onde Hilbert utilizava letras góticas.