NONIUS
nº10 ISSN 0870-7669 Março de 1988
Folha Informativa do Projecto "Computação no Ensino da Matemática"

REFORMA DO SISTEMA EDUCATIVO

O Centro de Matemática da Universidade de Coimbra (INIC) através da sua linha nº6 (História e Metodologia da Matemática), aonde se integra o Projecto "Computação no Ensino da Matemática, tem vindo a promover uma série de debates sobre o futuro do ensino da matemática nos diversos graus de ensino, tendo como pano de fundo a reforma do sistema educativo. O debate tem tomado como ponto de partida os diversos documentos que a Comissão de Reforma do Sistema Educativo tem divulgado publicamente. Cada um dos debates, moderado pelo responsável da linha nº6, Prof. Dr. Jaime Carvalho e Silva, é introduzido por um orador convidado, e o conteúdo desta interven-ção juntamente com um resumo dos debates será enviado à referida Comissão e publicado no "nonius".

O primeiro debate teve lugar no dia 10/3/1988, e teve como tema

Avaliação e Manuais Escolares

É relativo a esse debate que publicamos a intervenção inicial do Dr. Manuel Rolão Candeias, assim como um resumo do que foi dito no debate. Este resumo não representa de modo nenhum uma conclusão do debate, pretende apenas divulgar as posições expressas pelos diversos participantes.

Intervenção inicial do Dr Manuel Rolão Candeias

Da rubrica "Fundamentos das opções relativas às escalas de classificação" constantes do Anexo II, pg 135 a 138 do Documento Preparatório, 1º volume, da Comis-são de Reforma do Sistema Educativo, passamos a transcrever (pg 137) o seguinte:

"A escala 0 a 20, consagrada pela nossa tradição escolar não encontra hoje defensores fundamentados. Com efeito se "classificar" é colocar em classes, estas devem ser definidas e caracterizadas, com fronteiras nítidas entre si, de modo a que um elemento pertencente a uma não possa pertencer a outra. Além disso devem constituir um contínuo, embora os intervalos possam ser ou não iguais. Ora, quanto maior for o número de clas-ses, mais difícil será conseguir o carácter de identidade para cada uma delas. Estas reflexões apontam para o abandono da escala de 0 a 20 e para a procura de uma escala com um número mais reduzido de ter-mos. Escalas deste tipo são já usadas no Ensino Básico e Secundário Unificado. Com esta base de trabalho e aproveitando a experiência adquirida com o uso destas últimas escalas, desenvolvemos um conjunto de reflexões que nos levou a adoptar a escala numérica de cinco termos, já apresentada em 4.5" (sublinhados nossos).

Passamos a fazer alguns comentários ao que acabaram de ver e ouvir.

1- Que a escala de 0 a 20 não encontra hoje defensores fundamentados parece-nos um dogma de fé, e não podemos deixar de pensar naquelas Universidades Inglesas e Americanas que ainda usam a escala de 0 a 100.

2- Quanto à experiência adquirida com o uso da escala cinco, qualquer professor do ensino unificado, já ouviu, com certeza, queixas dos alunos quanto à injustiça da nota 3 em que se metem no mesmo saco alunos cujas percentagens vão de 51% a 74%, ou seja, aproximadamente, na escala de 0 a 20, as notas de 10 a 15.

3- O raciocínio de que quanto maior for o número de classes mais difícil será conseguir o carácter de identidade de cada uma delas, leva-nos, se levado a extremos, a duas classes. E quem não se lembra do apto e do inapto adoptado logo a seguir ao 25 de Abril? E já agora, porque não uma só classe: apto?! Se os biólogos descobrem esta solução, rapidamente deixamos de ter os mamíferos divididos em primatas, carnívoros, artiodactilos, proboscídeos, etc. e passamos a ter apenas MAMIFEROS. E porque não apenas ANIMAIS?

4- Convém ainda recordar que a escala cinco actualmente usada no 7º, 8º e 9º anos de escolaridade anda ligada aos célebres parâmetros: AQUISIÇÃO DE CONHECIMENTOS, COMPREENSÃO e ADAPTAÇÃO A NOVAS SITUAÇÕES. Gostava de saber quantos professores, além dos encarregados dos estágios, ao elaborar os seus pontos, divide cada questão (item) de modo a poder atribuir-lhe uma percentagem relativa a cada um dos parâmetros referidos, pois só assim pode no final ter uma quantificação que lhe permita decidir-se, em cada parâmetro, pelos níveis reduzido, médio, elevado. O que na realidade se passa é o professor subverter (inverter) o sistema, isto é, atribuir ao ponto uma percentagem global e a partir daí, ou eventualmente baseado na opinião que tem ds alunos, inventar os parâmetros. E não se diga que a culpa é dos professores que não estão sensibilizados para esta forma de avaliação. Caso o colega tenha dúvidas ou insónias convido-o a elaborar um ponto desta forma e a decidir em cada uma das perguntas qual a parte, qual a percentagem, que deve atribuir à aquisição, qual a que deve atribuir à compreensão, qual a que deve atribuir à adaptação a novas situações. E depois dos alunos o terem feito, a decidir de novo que percentagen destas percentagens, cada aluno atingiu. Não se esqueça que se fosse professor do ensino secundário teria de fazer isto duas a três vezes por turma em cada período. Se for um dos felizardos que só tem quatro turmas, de Outubro ao Natal, terá elaborado 8 a 12 "pontos quebra-cabeças" e francamente lhe desejo tempo e boa disposição para preparar as suas aulas. Não me alongo mais nestas questõespois tenho verificado que os defensores desta escala e deste sisitema têm nela uma grande fé. E a fé respeita-se.

Vamos agora tecer algumas considerações sobre a "escolha de manuais realizada por uma autoridade central (realização de concursos) ou a escolha descentralizada (por escola)"-pg 278 dos Documentos Prepa-ratórios, vol II.

Apresentam-se variadíssimas razões para rejeitar o primeiro método, das quais transcrevemos as seguintes:

"b)Seria preciso prever pra-zos e mecanismos para recur-sos das decisões das Comissões de Avaliação, devendo os recursos ser apreciados por outras comissões.

e) A própria constituição das Comissões, por mais crite-riosa que fosse a escolha, estaria sempre aberta a críticas. Além disso, qualquer decisão errada de uma comissão iria produzir efeitos em todo o País e durante alguns anos." (sublinhados nossos)

Seguidamente apresentam-se diversas vantagens do segundo método entre as quais citaremos a seguinte:

"d) Os eventuais erros de escolha cometidos numa escola não terão repercussão noutras escolas."

Apresentam-se depois algumas correcções aos possíveis inconve-nientes deste método de que transcrevemos a seguinte (pg 281):

 

"b) Escolhas feitas com critérios mal definidos e/ou desconhecidos - pode evitar-se este problema determinando que a escolha dos manuais seja justificada por meio de tabelas de avaliação, publicitadas em simultâneo com as listas dos manuais adoptados, em que aparecem como critérios im-portantes o rigor científico, o rigor pedagógico, a adequação do aspecto gráfico e o preço. A escolha dos instrumentos de avaliação terá que ser da res-ponsabilidade do Ministério, sendo uniforme em todo o País, (...)"

Na pg 282, "Resumo da proposta para o ensino preparatório e secundário", pode ler-se:

"10- O Ministério da Educação será responsável pela criação de Comissões Especializadas que poderão aconselhar a não adopção de manuais que contenham erros científicos graves, competindo-lhe justificar as suas decisões e sem prejuízo do direito de recurso de autores e editores."

Depois de termos lido todos os textos citados ficamos com a impressão de que haverá algumas contradições, ou será impressão nossa?! Vejamos:

1- Os eventuais erros de escolha cometidos numa escola não terão repercussão nas outras escolas, mas terão nos alunos dessa escola. E quem nos garante que a maioria das escolas não erre?!

2- Afinal, no segundo método, também há Comissões embora "apenas" conselheiras. E a sua constituição, só porque conselheiras, não estará aberta a críticas?! E as decisões erradas dessa comissão não irão produzir efeitos em todo o País e durante alguns anos? (A menos que as escolas as ignorem!... e nesse caso nada se resolveu)

3- Os eventuais recursos dos autores e editores não são feitos a novas comissões conselheiras? Os prazos agora necessários não terão que ser previstos?

4- Será mais morosa e difícil a escolha de manuais possíveis de serem adoptados que a decisão dos manuais que não devem ser adoptados?

Espero que esta introdução possa motivar o debate.


Resumo das posições assumidas pelos participantes no debate
1ª parte - Avaliação

Os diversos participantes no debate consideraram que a escala de classificação não era por si só muito importante, embora as constantes alterações das escalas de classificação (e da legislação que as regulamenta) sejam um elemento perturbador do trabalho do professor, e o impeçam de se concentrar noutra tarefas mais importantes. Não só por isso, foram expressas inúmeras críticas ao exposto no documento sobre a avaliação; com efeito, foi julgado que as alterações propostas não só não estão suficientemente fundamentadas para justificarem mais uma "perturbação" do trabalho do professor, como foram omitidos importantes argumentos.

A escala de 1 a 5 foi considerada inadequada pelos presentes para os diversos graus de ensino, com a ressalva eventual do ensino primário, embora fosse reconhecido que uma das principais objecções à regulamentação da escala que vigora actualmente, nomeadamente de o escalão 3 ser demasiado grande, ficar parcialmente remediada com a alteração proposta.

Um dos participantes foi mesmo mais longe ao afirmar que se o insucesso escolar não é causado pela escala de 1 a 5, esta escala também influi sobre o insucesso escolar.

As principais objecções avançadas pelos participantes à escala de 1 a 5 foram as seguintes:

1- Muita dificuldade prática de utilização.

2- Esta escala é insuficientemente esclarecedora como se pode observar pelo facto de ter subjacente mais duas escalas: a satisfaz/não satisfaz e a percentual.

3- Esta escala diz muito pouco aos alunos.

4- A investigação em Ciências de Educação (que os autores dos Documentos Preparatórios não invocam) não justifica o uso preferencial de qualquer escala a nível da adolescência.

5- A caracterização das classes na escala de 1 a 5 é subjectiva (o que marca a separação dos escalões é a opinião do professor e, variando de professor para professor, pode criar injustiças).

6- A escala de 1 a 5 é mais permissiva, pois é mais fácil um professor aceitar "puxar" de 2 para 3 (fabricandose passagens de ano que se tornam especialmente gravosas no caso da matemática!).

7- Noutros países o uso da escala de 1 a 5 é modificado com a introdução de + e de - a partir do 2, o que a transforma na prática numa escala de 1 a 13.

8- Não é também suficientemente claro qual o novo estatuto proposto para o nível 2 pois no primeiro ciclo se admite a possibilidade de um aluno reprovar com nível 2.

9- O 3 é um "saco" demasiado grande: "um aluno mau fica satisfeito, um aluno razoável fica triste".

10- Não é estimulante para um aluno que tem o 3 "seguro" a escala de 1 a 5, pois dificilmente chegará ao 4, criando uma certa desmotivação.

Um certo número de razões foi avançado a favor da escala de 0 a 20:

1- Os erros de avaliação relativa dos alunos são menores na escala de 0 a 20.

2- A escala de 0 a 20 está já enraizada nos hábitos dos professores, e até do mercado de trabalho pelo
que uma mudança causa muitos problemas.

3- Os efeitos negativos de uma exagerada diferenciação estão em parte contemplados na legislação actual que prevê que as provas ao longo do ano sejam apenas classificadas publicamente com uma verdadeira escala de 1 a 5 (muito bom, bom, etc.).

4- A escala de 1 a 20 é mais esclarecedora.

5- Quer queiramos quer não estamos inseridos numa sociedade altamente competitiva e a escola não pode ignorar esse facto.

Os diversos participantes concordaram em que não existe razão, em termos absolutos, e com os dados actuais sobre a questão, para preferir uma qualquer escala, pelo que as alterações propostas não têm cabimento, salvo num ou outro pormenor.

Em face da discussão resumida acima, os participantes estranharam que não constasse nenhuma questão sobre escalas de avaliação no inquérito elaboarado pela Comissão de Reforma do Sistema Educativo.

Gerou um certo consenso a proposta de um professor de manter a escala actual nos diversos níveis de escolaridade, excepto no 7º, 8º e 9º anos em que se deveria voltar à escala que se praticou até há alguns anos, a escala de 0 a 20.

No que diz respeito ao problema da avaliação, um dos intervenientes enunciou as principais dificuldades da avaliação em

i) fazer boas provas
ii) cotar correctamente
iii) corrigir adequadamente

Considerou ainda que deveria ser sobre questões como estas que os professores se deveriam debruçar em vez de perder inúmeras reuniões a discutir a escala de avaliação.

Sobre as restantes propostas no domínio da avaliação, as pessoas apontaram algumas contradições entre o Documento já referido e aquele que diz respeito à Reforma Curricular. Em qualquer deles estão contidas algumas regras que mereceram severas críticas dos participantes. Nomeadamente a intervenção das famílias no processo de avaliação (que deveria ser da exclusiva responsabilidade do professor), da hipótese de os alunos passarem apesar de reprovados (com consequências extremammente graves na disciplina de matemática), da criação de um dossier individual do aluno (que possa funcionar como uma espécie de "cadastro" com todas as implicações negativas de tal procedimento).

 

2ª parte - Manuais Escolares

O debate centrou-se mais no que deveria ser feito para se possuirem bons manuais escolares, do que propriamente em detectar ainda mais incongruências na "pseudo discussão" apresentada no documento da Comissão da Reforma Educativa. Apesar disso, os participantes não deixaram de estranhar que das duas alternativas propostas (e haverá só duas?) pela Comissão da Reforma, uma apresente apenas inconvenientes e a outra apresente apenas vantagens (embora à frente se refiram "possíveis inconvenientes"); e foram também criticadas expressões como "rigor pedagógico" (o que é?), "instrumentos de avaliação (...) da responsabilidade do Ministério (...) uniforme em todo o País" (já não há Comissões aqui?).

Os presentes pronunciaram-se contra a existência de um livro único e contra demasiadas intervenções da parte do Ministério. Vários participantes salientaram o facto de a selecção nas escolas não ser precedida de um verdadeiro debate. Um dos participantes considerou extremamente grave o facto de se publicarem, como tem acontecido, compêndios de matemática com graves erros científicos, embora outro participante considerasse que esses erros não passavam de falhas que os próprios professores têm possibilidade de emendar.

Da discussão sobre a forma de elaborar bons compêndios surgiram várias propostas nomeadamente a de o Ministério apoiar a formação de equipas de professores com dispensa total ou parcial de serviço. Esses livros, antes de serem publicados, deveriam ser testados com professores e alunos antes de serem publicados. Os presentes consideraram este último ponto extremamente relevante, pois só com uma reacção favorável dos alunos se pode concluir estar perante um bom livro. Foi ainda afirmado que se livros como estes entrassem na concorrência do mercado os outros livros teriam que apresentar iguais garantias de seriedade para poder competir, o que se traduziria numa melhoria da qualidade dos livros. Um dos pontos referido dizia respeito à necessidade de os programas serem conhecidos com antecedência de modo a os livros poderem ser alterados com tempo, até porque os livros são quase o único ponto de referência, por exemplo para os professores eventuais.

 

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