NONIUS
nº15 ISSN 0870-7669 Nov.-Dez. 1988 / Jan. 1989
Folha Informativa do Projecto "Computação no Ensino da Matemática"

A REFORMA DO SISTEMA EDUCATIVO

O secretariado da SPM-Sociedade Portuguesa de Matemeatica divulgou um documento com um certo número de posições de princípio sobre o lugar da Matemática na Reforma Educativa, com o objectivo de aprofundar e suscitar o debate sobre todas as questões, nomeadamente no IV Encontro Nacional da SPM que decorrerá no Porto de 3 a 5 de Abril próximo.

Transcrevemos neste número do "nonius" o comunicado do Secretariado da SPM, à semelhança do que já fizemos com parte de um texto da iniciativa da APM-Associação de Professores de Matemática

 

Posição da Sociedade Portuguesa de Matemática Sobre o lugar da
matemática na reforma educativa
(adoptada na reunião do Secretariado da SPM de 24/11/88)

Indice

0. Introdução

1. Atribuição de um papel secundário à matemática, limitando-a ao calculo; ausência grave da geometria.

2. Ignorância dos aspectos formativos da matemática

3. Ênfase Negativa na operacionalização

4. Deficiente formação de professores

5. Não referência aos modos de realizar uma reforma curricular

 

0. Introdução

A SPM acompanhou, na medida do possível, a publicação dos Documentos Preparatórios, produzidos pela Comissão de Reforma do Sistema Educativo (CRSE), e a recente publicação do relatório final. E, perante algumas afirmações neles feitas ou perante lacunas detectadas, está altamente preocupada com o futuro do ensino/aprendizagem da Matemática em Portugal, até porque desconhece o que conterá o relatório final relativo à Reforma Curricular. É dessas preocupações que vem dar-vos conhecimento, soli-citando que sobre elas haja reflexão, visto que o debate sobre a Reforma Educativa prosseguirá, na sequência aliás da publicação, que a SPM aplaude, de um livro sobre a Renovação do Currículo de Matemática, feita pela CRSE.

 

Esta posição da SPM vem na sequência de um debate organizado no III Encontro Nacional da SPM (Janeiro de 1988) em Coimbra, e veicula posições expressas nesse debate e em vários documentos de trabalho de grupos de sócios da SPM. A SPM espera que este documento sirva para o aprofundamento do debate nomeadamente no decorrer do IV Encontro Nacional da SPM a decorrer em Abril próximo no Porto.

 

1. Atribuição de um papel secundário à matemática, limitando-a ao calculo; ausência grave da geometria.

Embora a Matemática seja considerada nos "troncos curriculares fundamentais" (pg 170, 3(VI), na introdução da proposta de reorganização dos planos curriculares dos Ensinos Básico e Secundário, Documentos Preparatórios, vol. I), a verdade é que a palavra "Matemática" não figura no plano de estudos do 1º ciclo do Ensino Básico (o que representa um retrocesso em relação a programas anteriores para o Ensino Primário): ficará reduzida no 1º e 2º anos a uma "Iniciação à aprendizagem do cálculo", e no 3º e 4º anos a um "Desenvolvimento do Cálculo e Iniciação à Aritmética" (Quadro plano de estudos", pg 210, op. cit.).

Ora a Matemática não é só cálculo! Este aspecto da Matemática, importante sem dúvida quer como valor utilitário/prático quer como valor formativo, está longe de ser o único a considerar nas finalidades desta disciplina.

A ausência de uma "Estruturação do Espaço" e de uma "Geometria" -- indispensáveis para compreender, interpretar e apreciar o mundo que rodeia a criança, o adolescente, o jovem e o próprio adulto -- representa uma grave lacuna. O "domínio das competências básicas" (pg 211, op. cit.), não pode nem deve ficar restringido à velha trilogia do "ler, escrever e contar"! Uma aprendizagem da "Estruturação do Espaço" e da "Geometria" -- que é desejável comece o mais cedo possível, inclusivé, nos Jardins de Infância, -- é imprescindível para a formação do espírito de observação, da experimentação e da intuição espaciais. A terminologia geométrica que aparece nas questões de álgebra, de trigonometria, de análise, etc, mostra bem até que ponto a intuição geométrica penetra toda a Matemática.

Para ajuizar com pleno conhecimento de causa sobre as possibilidades de um aluno é necessário colocá-lo em situação activa, e não receptiva, isto é, em que tenha necessidade de utilizar a sua iniciativa pessoal. Mas não parece que isto seja possível nas limitações de uma teoria "útil", ensinada dogmaticamente com vista às suas aplicações técnicas posteriores, como julgamos poder depreender-se, por exemplo, de um objectivo referido no "domínio das aquisições fundamentais para o desempenho de papéis socialmente úteis", a saber: "assegurar ... a utilização das técnicas principais do trabalho intelectual" (pg 239, (IX), em 2.4, op. cit.).

As únicas teorias que possuem um interesse pedagógico são aquelas em que intervém um elemento lúdico; de entre todos os jogos, a geometria, com as suas referências contínuas a uma intuição subjacente, é o menos gratuito e o mais rico de significado. Assim, a posição decorrente da proposta apresentada de substituir a geometria pelo cálculo, é totalmente nefasta de um ponto de vista pedagógico.

Por outro lado, a geometria será sempre um intermediário natural e imprescindível entre a linguagem habitual e a linguagem formalizada da Matemática. O estádio do pensamento geométrico é algo impossível de suprimir no desenvolvimento normal da actividade racional do homem, porquanto a passagem do pensamento usual ao pensamento formalizado se processa de modo natural através do pensamento geométrico. Será pois, um erro, no ponto de vista psicológico o corte que se pretende efectuar na geometria excluindo-a logo à partida (1º ciclo do Ensino Básico) do "Plano de estudo" proposto.

Por tudo isto -- e não só -- uma aprendizagem de geometria tem um lugar insubstituível desde os primeiros passos na Matemática.

 

2. Ignorância dos aspectos formativos da matemática

Na extensa lista de objectivos gerais e específicos para a Educação Básica, nomeadamente nos que respeitam à "dimensão das aquisições básicas e intelectuais fundamentais" não se vislumbra um só claramente referido à Matemática; será que não se reconhece a esta disciplina uma finalidade formativa capaz de "criar condições para o desenvolvimento global e harmonioso da personalidade" (pg 204, op. cit.) do "futuro cidadão comum, português, europeu" (pg 202, op. cit.)?

No 2º ciclo do Ensino Básico a preocupação dos autores da proposta é a de "iniciar a transição de abordagens globais para a introdução progressiva de áreas científicas mais específicas que consolidarão, aprofundarão e enriquecerão as aprendizagens básicas do ciclo anterior" (sublinhado nosso para vincar que nestas aprendizagens, no âmbito da Matemática, só existe cálculo; aliás os próprios autores da proposta esclarecem logo a seguir que "trata-se, assim, de áreas mais demarcadas no âmbito das competências... do cálculo..." (pg 215, op. cit.); e no 3º ciclo do Ensino Básico, além do que se referirá a propósito da conceptualização volta a insistir-se no aspecto utilitário/prático da Matemática descurando, a nosso ver, o aspecto formativo; assim, escreve-se "o conhecimento dos métodos informáticos, nesta como em outra disciplinas, deve restringir-se à sua utilização e exploração" (pg 229, op. cit.), o que, como referência à crescente utilização dos métodos informáticos no ensino, e ao trabalho desenvolvido através nomeadamente do Projecto Minerva, é muito pouco.

Aliás, se a Matemática ficasse reduzida a uma disciplina de cálculo na escolaridade obrigatória, não encontraríamos qualquer coerência com certos objectivos educacionais e certos princípios explicitados ao longo do texto desta proposta de reorganização dos planos curriculares dos Ensinos Básico e Secundário, que se revestem de uma preocupação formativa designadamente, por exemplo:

- "a aquisição de aptidões básicas que associem os saberes ao saber-fazer" (sublinhado nosso) (pg 182, op. cit.)

- " a formação de cidadãos dotados de capacidade crítica" (sublinhado nosso) (pg 183, op. cit.)

- "a formação de cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social em que se integrem e de se empenharem na sua transformação progressiva", subentende, na óptica dos autores "a necessidade de, para além das aptidões básicas em diversos domínios, o processo de ensino-aprendizagem se preocupar essencialmente, com o saber-ser e o saber-fazer (pg 191/192, op. cit.). E logo mais à frente, entendem que os "alunos deverão, em particular:

- adquirir a capacidade de seleccionar o conhecimento e de o aplicar a novas situações;

- dominar métodos de pesquisa e auto-descoberta e construir novas possibilidades de resposta a problemas" (pg 192, op. cit.).

Mas, como atingir todos estes objectivos formativos, se a Matemática ficar apenas pelo cálculo, como mera disciplina de serviço?!

Um ensino/aprendizagem da Matemática dirigido exclusivamente para o cálculo, preocupado somente com o aspecto utilitário/prático da Matemática, privilegiando o operacional em detrimento de uma aquisição e uma interiorização progressiva dos conceitos e das estruturas matemáticas certamente que impedirá o desenvolvimento ao máximo, no espírito dos alunos, do poder de análise e do sentido crítico e não possibilitará o despertar de capacidades de intuição, de abstracção, de imaginação, de criatividade, todas elas com valiosos contributos para a formação intelectual dos estudantes portugueses designadamente no que respeita ao "saber pensar e saber exprimir-se matematicamente necessidade que se vai alargando a um número crescente de pessoas desde que a Ciência e a Técnica passaram a condicionar a vida e o curso dos acontecimentos, sobre a face da Terra" (Sebastião e Silva, em "Acerca do ensino dos logaritmos", in Gazeta de Matemática, nº 13, 1943).

 

3. ênfase Negativa na operacionalização

Como uma das principais alterações em relação ao regime actualmente vigente e respeitante ao 1º ciclo do Ensino Básico, refere-se: "valorização da operacionalização em detrimento do conceptual" (pg 254, CRSE, op. cit.). Aliás esta mesma ideia está explicitada também na "organização pedagógica curricular do 3º ciclo do Ensino Básico" quando se afirma que, relativamente à Matemática, "embora mantendo o mesmo número de horas semanais" (deve reportar-se à situação actual), "os conteudos deverão ser alterados no sentido de privilegiar a operacionalização de conceitos, incluindo Métodos Quantitativos, Estatística, Probabilidades e Métodos Gráficos" (pg 229, op. cit.). (Refira-se aqui também de passagem a mesma e única obsessão pelo cálculo; claro que não invalidamos a importância destes cálculos e destas matérias, queremos é reforçar que não pode ser, de forma alguma, o único aspecto a considerar).

É uma ilusão pensar que se pode utilizar a matemática sem uma clara e mais ou menos profunda compreensão dos diversos conceitos matemáticos, cujo ensino deverá decorrer gradualmente ao longo da escolaridade: "O verdadeiro matemático não é alguém que joga com os números mas sim com conceitos" (Ian Stewart, in Concepts of modern mathematics, 1975).

Porém, como diz Z. P. Dienes "os conceitos não se ensinam -- o que é preciso é criar as situações e as ocorrências dessas situações que levem as crianças, por si sós, a formá-los". Todavia, para isso é necessário haver quem saiba criar as situações e tenha condições para tal. Quando, por exemplo, se atribuem culpas exclusivas do fracasso em matemática, a uma visão demasiado "conjuntivista" e "estruturalista" havida na circunstancialmente chamada "Matemática Moderna" será bom não esquecer os factos: o que houve em Portugal, foi uma experiência de modernização do ensino da matemática conduzida por professores preparados e orientados pelo Prof. Sebastião e Silva em que estiveram envolvidos alunos dos antigos 6º e 7º anos do ensino liceal, e que, tudo o mais -- e aí esteve o erro -- foi um alargamento cego e precipitado de matérias e métodos a outros níveis de ensino, além do mais, sem uma adequada preparação dos professores.

Reforçando as nossas observações, basta comparar o que os Documentos que temos vindo a comentar referem, com os objectivos da educação tal como são referidos pela NCTM (uma das maiores associações de professores de matemática dos EUA); entre outros são: "... usar os conhecimentos e métodos matemáticos para resolver problemas; raciocinar logicamente; usar abstracções e símbolos com poder e à vontade; aplicar e compreender os conhecimentos e métodos científicos..."

Isto não significa que a SPM defenda a situação actual nem que propugne a preponderância de qualquer corrente pedagógica; significa tão só que considera ser negativa a ênfase quase exclusiva na operacionalização.

 

4. Deficiente formação de professores

Uma questão fundamental que é a da formação (inicial e contínua) dos professores, é perigosamente descurada. A prioridade das prioridades, em qualquer reforma do ensino deve ser: "preparar bons professores" e "construir boas Escolas" (como se escreve na pg 256, op. cit.). Vamos, porém, cingir-nos apenas à primeira destas duas prioridades, pois requer muito mais tempo, envolvimento de meios humanos, e produz apenas efeitos a médio e longo prazo. Quando "a Assembleia da República aprovar um orçamento suficientemente expressivo para o sector da Educação" (pg 256, op. cit.), será mais fácil construir as boas escolas do que preparar os bons professores, num curto prazo, e aquelas, sem estes, não funcionarão...; e bons professores, mesmo com escolas menos boas, serão capazes de realizar um ensino/aprendizagem melhor do que o actual.

Ainda por cima a situação actual não é animadora; a SPM está muito apreensiva com o que se tem passado na formação (primeiro em exercício, agora em serviço, e mesmo na inicial) dos professores para o ensino da matemática nos diversos níveis (as excepções apenas confirmam a regra). Não nos enganemos: os alunos na formação inicial do ensino primário e os docentes na formação em serviço no Ensino Básico e Secundário não estão, à partida, em condições de realizar respectivamente um curso e uma profissionalização em serviço ou em exercício, nas circunstâncias em que são feitas, que os habilitem a ficar bons professores em ou de Matemática!

A formação contínua dos professores é abordada muito ao de leve nos diversos documentos preparatórios da Reforma Educativa, e não nos parece que seja encarada com o alto grau de prioridade que deveria ter; por exemplo, ainda recentemente foi negada, pelo Ministério da Educação, dispensa de serviço aos professores que pretendiam assistir à "Escola de Outono de História da Matemática", organizada pela SPM em Novembro de 1988.

Toda a reforma deve supor a criação de um corpo de professores competentes. A SPM defende a preparação de nível universitário para todos os professores. Isso não significa, porém, por exemplo, que o professor que vai ter que realizar um ensino/aprendizagem de matemática no 1º ciclo do Ensino Básico seja licenciado em matemática mas sim que tem que possuir uma sólida visão superior da matemática elementar, além da restante preparação científica (língua portuguesa, meio físico e social, etc.) psicopedagógica e de didactica geral e específica, do mesmo nível superior. Essa visão superior da matemática elementar não pode ser subalternizada, como acontece nos curricula de várias Escolas Superiores de Educação, sob pena de não haver professores do 1º ciclo do Ensino Básico que saibam ensinar bem Matemática, ou seja, "não se podem fazer omeletes sem ovos".

 

5. Não referência aos modos de realizar uma reforma curricular

Por último, nenhuma referência é feita ao modo como será levada a cabo a reforma curricular que vier a ser aprovada. E isto não é menos importante, pois a melhor das reformas não passará de uma ilusão se for deficientemente aplicada. E, como em Portugal parece haver a ideia de que tudo (ou quase) em Educação pode ser feito de um dia para o outro, é preciso sublinhar que uma reforma curricular leva anos a implementar correctamente e os seus efeitos (benéficos ou nefastos) se farão sentir durante dezenas de anos sem possibilidade de serem alterados senão muitos anos depois.

Em Portugal temos um bom exemplo de como uma alteração curricular deve ser levada a cabo: a (impropriamente) chamada "reforma da matemática moderna" da responsabilidade do Prof. Sebastião e Silva.

A SPM entende que qualquer alteração curricular (de conteudos e de métodos de trabalho) terá obrigatoriamente que passar por um período experimental (devidamente preparado, nomeadamente com uma adequada formação dos professores envolvidos) num número limitado de escolas, por uma avaliação desse período experimental e consequente reformulação da reforma inicial, e por fim levada à prática de modo generalizado precedida naturalmente duma séria preparação de todos os professores. De outro modo duvidamos profundamente da seriedade da reforma.

Deste modo, não pode haver concessões, e a SPM denunciará publicamente, se isso se vier a verificar, desvios sobre questões como: programas divulgados à última da hora, inexistência de livros de texto adequados, deficiente informação dos professores, alterações no decurso do ano lectivo, etc, etc.

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