NONIUS
nš5 ISSN 0870-7669 Maio 1987
Folha Informativa do Projecto "Computação no Ensino da Matemática"

OS COMPUTADORES E A EDUCAÇÃO.
ASPECTOS GERAIS
A. S. ALVES

Conferência pronunciada na Esc. Sec. da Quinta das Flores (Coimbra)
durante uma tarde de Matemática da SPM.

 

Talvez eu deva desculpar-me por esta insistência em falar de generalidades. Alguns Colegas, porventura mais apressados, poderão pensar que a questão do uso dos micro-computadores na Educação, na Matemática em particular, está resolvida, salvo a oposição de uma minoria retrógrada. E que, assim, é tempo de passar a situações concretas, discutir técnicas, dar exemplos práticos bem sucedidos de utilização do computador na sala de aula.

Não me ocorre negar a importância das discussões desta natureza prática. Que, para terem valor científico terão que ser relatos de experiências em que o expositor participou e cujo resultado tem que ser sujeito a testes conclusivos- e não expresso nas palavras de Pedro ou Paula. E, de resto, é um facto que uma teoria geral sobre o tema desta tarde, o computador na educação, tem que ser a síntese de trabalhos parcelares. Formar uma opinião sobre o assunto, que não seja ideológica, exige de resto um vasto trabalho prévio de análise científica de casos práticos.

Doutra forma, é a ideologia que dirige, são as frases desconexas repetidas sem crítica, mas repetidas tantas vezes que acabam por se tornar aceites colectivamente.

Uma dessas "verdades", que tem actualmente honra de telenovela é: "... que o futuro está nos computadores !..." É um típico enunciado ideológico: relaciona as noções vagas de "futuro" e "computadores", através de um verbo inadequado. Cada um atribui a esta frase o significado que mais lhe convém. Por mim, lembro- me de tê-la ouvido em três situações típicas: na boca de um Professor de Faculdade tentando obter verbas para o seu sector; numa loja de electrodomésticos, o vendedor tentando convencer o cliente a comprar um "Spectrum"; da parte de uma Senhora verberando o Professor de Matemática pelas notas baixas dadas ao seu filho. Neste último caso, era posta em evidência a seguinte contradição: um moço que era um campeão diante do seu micro-computador... como era possível ter ele má nota a Matemática, não sendo culpa do Sistema ou culpa do Professor ?

Os que estamos aqui reunidos, somos profissionais da Lógica. Dificilmente aceitamos enunciados tão imprecisos como aquele a que aludi. Mas isso é secundário para o que diz respeito ao assunto que estamos a tratar.

Porque, se ouvimos repetir com insistência que o "futuro está nos computadores", por entre histórias de amor e contrabando, não é porque a televisão tenha decidido converter-nos agora a um novo credo. Pelo contrário, a frase aparece na telenovela porque já correu mundo, para dar um ar realista aos diálogos.

Ora, isto interessa aos Colegas, e muito. É absolutamente necessário que os Colegas, que ainda não o fizeram, comecem a familiarizar-se com os computadores, e quanto mais cedo melhor. Esta necessidade é criada pela irresistível convergência de factores de duas categorias. E, destes dois, um deles não tem uma grandeza moral de primeira água. Mas, sendo irresistivéis, não quer significar que sejam incompreensíveis. E penso que há toda a vantagem em compreendê-los para melhor lhes poder resistir, se necessário.

A Escola será obrigada a acertar o passo pelo computador, quer isso represente um avanço, quer um retrocesso; ou , alternativamente, sofrer a concorrência desvantajosa de outros tipos de instituição escolar. A convicção popular mencionada acima, junta ao embaratecimento permanente dos micros domésticos, leva a que os alunos possuam individualmente esses pequenos aparelhos. Na ausência de uma orientação, que uso lhes darão os jovens ? Em primeiro lugar, jogar. Possivelmente, acabarão por fazer pequenos programas, ou praticar jogos que lhes exijam conhecimentos de programação. Não discuto aqui se os jogos são bons ou maus; as opiniões divergem. Serão nocivos se afastarem o jovem, em pleno desenvolvimento, do exercício físico contribuindo assim para aumentar a percentagem de ombros descaídos.

 Evidentemente que programar é uma actividade lógica que se parece muito com a forma matemática de pensar. Mas que, por outro lado, está muito longe da riqueza de categorias mentais da verdadeira matemática. Mas o que conta, para o que nos interessa, é que o aluno e os pais têm a ilusão de dominar um instrumento matemático. E vejam a contradição flagrante que ocorre se este a] uno é cotado com um dois por um professor que não domina (ou tem mesmo horror) ao mesmo "instrumento matemático". A tentação é grande em acreditar que se trata da luta de um "jovem dotado" contra um "sistema obsoleto". E que este jovem dotado até sabe mais que o respectivo professor naquela matéria que é decisiva para o futuro - o qual "futuro está nos computadores".

Ora esta é uma pressão exercída genericamente sobre a Escola, sobre os professores de matemática em particular. É uma pressão exercida a jusante; mas há as pressões a montante - aquelas que vêm de cima.

 

A montante, na origem de tudo, está o Ministério de Educação, orgão essencialmente político, sujeito à caução do eleitorado e que tem que ter em conta a opinião pública. Está na ordem natural das coisas que o Ministério queira corresponder aos sentimentos da opinião e que isso se reflicta na introdução generalizada dos computadores nas Escolas. O que é bom, decerto. Mas, se tal generalização se faz apenas como eco às crenças do eleitorado, é de temer que se faça também de uma forma descurada, sem estudar antecipadamente os efeitos, positivos ou negativos; sem formar seriamente os professores, sem explicitar os objectivos.

Por uma preversão, serão os professores individualmente a sofrer as críticas da mesma opinião pública. O Ministro e os altos funcionários do Ministério estão longe, em Lisboa, protegidos destas pequenas críticas, enquanto que a Escola é uma entidade acessível para censurar. Os professores de matemática terão que estar prontos para receber e manipular os computadores que forem chegando às Escolas. Desta forma estarão igualmente aptos a responder a críticas irracionais, estarão aptos a corrigir as directoras erradas que vêm do alto, estarão aptos a orientar actividades extra-escolares como clubes informática dando- lhes um sentido útil.

Decerto que a opinião pública influencia a Educação, mas apenas nos aspectos mais aparentes. É que nenhum país, por mais democrático que seja, é governado pela massa. Moldando esta, existe uma elite que também tem crenças irracionais. E, condicionando tudo, está a inexorável economia.

Ora, a Educação é cara e os investimentos feitos só são reembolsados a muito longo prazo, se é que o são alguma vez. Para quem tem que governar por curto espaço de tempo, a Educação é uma pura fonte de despesas. É exactamente o contrário das Finanças; estas, com meios relativamente escassos, são uma pura fonte de receitas.

Não é preciso ser um tecnocrata convicto para desejar todo o tempo reduzir as despesas com a Educação. Mas, para além de ser cara, a Educação apresenta um quebra-cabeças insolúvel - o seu aspecto humano. Comparemos, ainda, com as Finanças. Aqui, é possível prescrever de cima todos os actos de um funcionário, espartilhados em impressos, regulamentos, normas, circulares. Mas, na Educação a situação é completamente diferente. Fechada a porta da sala, a única relação que permanece dá-se entre o professor e turma , cessa o poder da Administração.

Para quem sonhe em moldar um país segundo um qualquer critério de perfeição, esta situação cria uma dificuldade. Para alguns, talvez poucos mas poderosos, o ideal está num centro dirigido por um pequeno núcleo de perl&itos e que fariam chegar a sua mensagem às mais distantes regiões. Para isso, o computador representaria a perfeição se fosse possível tornar o professor num simples monitor. Tanto quanto sei , ainda estamos muito longe disso mas, para alguns, enquanto há vida, há esperança...

Não vamos contudo ao extremo de pensar que toda a gente que está envolvida em computadores no ensino alimenta este projecto sinistro. Mesmo no que respeita às mais altas instâncias da Educação Nacional. Normalmente, estas ideias nascem em centros restritos internacionais e, depois, espalham-se livremente ou artificialmente numa forma que pode diferir ou, mesmo, contradizer a original.

O professor é que precisa de estar atento às diversas propostas para utilização do computador. Eventualmente, criticar ou rejeitar aquelas que pareçam contraproducentes, Será bom insistir no facto de que é o professor o eixo da Educação, é o professor que pode avaliar a forma como trabalhar com uma turma, o ritmo a impor, as revisões a fazer, os meios auxiliares a recorrer. O computador é um destes meios e não o centro do processo. Mas, se o professor desconhece a máquina, corre o risco de oscilar entre uma admiração beata e uma rejeição irracional.

Ainda não começamos a mencionar os aspectos respeitáveis do uso do computador. Antes de o fazer iremos ao último aspecto "imoral".  

O alargamento do Ensino secundário, praticamente, a toda a Juventude - com a simultânea liquidação do Ensino técnico-profissional - é uma medida apresentada como satisfazendo às necessidades da Economia e do desenvolvimento social. Por mim, penso que tenho razões para duvidar e creio que foi, antes do mais, uma medida de carácter ideológico. Mas de uma forma ou de outra, a verdade é que (a) os jovens entram tarde na vida activa; (b) o tempo que precede esta entrada não é visto como um tempo de efectiva preparação ao exercício de um oficio.

Desta forma, a Escola vê-se transformada num vasto parque de estacionamento para os jovens ou, se preferem, numa creche para adolescentes. Estando estes desmotivados para a aprendizagem, na convíção da inutilidade desta e à falta de uma pressão social e familiar , só suportam a Escola na medida em que esta possa não os aborreça demasiado.

Da constatação destes factos até ao nascimento de uma ultra-pedagogia, vai um pequeno passo. As noções de esforço de aprendizagem, de persistência; o simples sacrifício de um programa de televisão a favor de execução de um dever - tudo perde significado. O aluno deve aprender sem o mínimo esforço, possivelmente aprender mesmo quando julga que está a brincar.

Assim, cada insucesso escolar passa a ser o insucesso da política de educação. No mínimo, a culpa é do professor que não soube compreender a estrutura mental daquele aluno e, talvez, ensinar-lhe cálculo vectorial enquanto o aluno supunha estar a participar num concerto rock ...

 Onde entra o computador em tudo isto ? Na realidade, o computador parecer ser o elemento que faltava para animar as aulas e manter ocupados os irrequietos adolescentes. Ainda com a esperança de lhes ensinar coisas quando eles estão fixos diante do ecrã, interessados por aquele aparelho novo.

Sobre isto, eu queria dizer apenas uma palavra final: se o aluno não quiser aprender, não aprende mesmo; e quando ele quer aprender não há mau método que o detenha.

Mas, chega de apontar aspectos negativos e abordemos, primeiro, o seguinte aspecto: o computador trouxe inevitavelmente mudanças na forma como se desenrola o ensino da matemática, em todos os níveis. Uma parte muito importante da matemática, mas não todo, é a resposta mais abstracta às necessidades do Homem na sua luta para transformar a Natureza. Ora, na matemática há uma parte de cálculo e uma parte conceptual. Exemplifíquemos.

 

Os logaritmos. Pode estudar-se abstractamente a função logaritmo, a partir das suas propriedades definidoras, como, por exemplo

log (X Y) = log x + log y .

Esta função é particularmente adequada à descrição de certas leis naturais, como a lei psico-fisiológica de Fechner:

s = log I/I0

o que estabelece a relação entre a sensação recebida S e a intensidade de excitação I (I0 é uma constante).

 

É importante conhecer a função logaritmo por si mesma visto que as suas propriedades reflectem as relações entre 3 e 1 - pode dizer-se que 5 cresce mais lentamente do que 1 e, tanto mais lentamente quanto maior for 1.

 

Mesmo logaritmo tem a sua importância histórica como processo prático de cálculo. Ainda deve haver quem se lembre dos problemas de resolução de triângulos e das cadernetas dos topágrafas.  

Ora, como processo de cálculo, hoje em dia, os logaritmos não valem rigorosamente nada. Mas, a função logaritmo continua a prestar serviços relevantes na compreensão dos fen6menos naturais. O que provocou uma tal alteração? Precisamente, o aparecimento de meios de cálculo mais poderosos. Se formos ver bem, o tempo economizado com o cálculo logarítmico pode ser transferido para o estudo de temas que, antes, o programa tinha que deixar de fora.

Ora, estamos perante a inevitável influência dos computadores nas currícula de matemática. Sempre que um processo é rotineiro, podemos pensar que pode ser executado por um computador e que o tempo economizado pode destinar-se a alargar o conjuntos dos conhecimentos de base. Esta mesma questão já está positivamente levantada com respeito às derivadas. São já banais os programas que calculam derivadas como, por exemplo o U-Math do IBM-PC. Ora, até certo ponto o facto de se fazerem problemas de cálculo de derivadas pode servir para melhorar a compreensão do conceito. Mas creio que, a partir de uma certa altura, essa compreensão estabiliza e é preferível aprender a usar as tabelas ou um processo computacional.

E estamos no interior dos problemas postos ao curriculo de matemática, com a o desenvolvimento e general ização dos computadores. É necessário responder a algumas questões: se economizamos tempo, como aproveitá-lo; quais as novas matérias a incluir; quais as novas formas de pensamento matemático que podem ser incluídas mais cedo nos programas. Ou, não seria antes mais adequado dar outro relevo às ciências naturais, na sua ligação com a matemática?

Além disso, derivar, com lápis e papel é um exercício diferente de derivar com o computador. Exige treino, também; como exige treino o uso de uma tabela. Para tudo isto é preciso um esforço real de actualização dos professores, mas eu creio que será da iniciativa individual dos Colegas que pode surgir alguma coisa de útil.

Não vou falar hoje de outros aspectos, como o computador na sua posição de auxiliar de ensino; ou no computador como instrumento do aluno. Neste último campo, há ideias novas de que as mais originais parecem ser de atribuir ao americano 3. Papert, inventor de linguagem LOGO. As ideias de Papert merecem, por si sós, uma discussão. Para falar claro, parecem - me justas , mas isso não depende estritamente da existência, ou não, do 1000. Parecem -me justas por serem bons princípios gerais sobre Educação.

Terminemos com um outro aspecto. O computador pode ser bom, pode ser péssimo. Ele é uma máquina e não tem discernimento, nem pode saber o que que convém a cada pessoa e a cada sociedade. Mas nós só podemos julgá-lo diante dos objectivos que lhe foram atribuídos.

Assim, se o computador é utilizado como meio de apoio à aprendizagem da leitura e se os alunos lêm melhor do que aqueles que não se serviram dele (e isto depois de uma análise científica desprovida de sofismas) então podemos dizer que o computador cumpriu o seu objectivo. Para mim, um problema magno na Educação nacional é que raramente os objectivos são claros. E hoje, fala-se muito de criação, alunos criativos, etc. Lembro-me logo do poeta Alexandre O'Neill, hoje infelizmente ausente dentre os vivos. Um dos seus versas:

...caro Colega, passe-me o quebra-palavras
encontrei uma que deve ter alguma coisa dentro.

A criatividade arrisca-se a ser mais uma noção ideológica que só serve para embaraçar as nossas ideias e impedir progressos reais. Da História tiramos a existência de mentes criativas, indivíduos que perante um problema difícil ,depois de o estudarem, exaustivamente, enveredam por vias originais para o resolver. Esse indivíduo tanto pode ser Galois diante das raízes dos polinómios, como NunoAlvares Pereira em Aljubarrota.

O que me custa a compreender é como um problema pode ser resolvido, criativamente ou rotineiramente, sem que seja bem estudado. Como é que, sem estudar o legado dos que nos antecederam, se pode saber sequer, que existem problemas e quais. Iria mais longe e perguntaria se alguém pode pensar que uma sociedade tão conformista como a sociedade portuguesa actual se vai tornar criativa. Mas isso é uma outra discussão... A não ser que a criatividade esteja em organizar festivais de gastronomia nas escolas ou actividades do mesmo tipo.

Em síntese, espero ter mostrado que a generalização do computador vem forçar a uma mudança de programas de matemática, que este mudança necessita de uma discussão cautelosa para que não venha a ser nociva. Que, por detrás da generalização do computador estão forças de índole muito diversa, mesmo forças destrutivas. Que o grande antídoto para as possíveis perversões, está em os professores se tornarem familiares com o computador.

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