A educação e os demónios

(sobre o papel do ensino secundário na
cultura científica dos jovens)

Gostaria de vos falar de professores de Ciências que me tivessem estimulado na escola primária ou no liceu. Mas, quando recordo esses tempos, vejo que não existiu nenhum. Havia a memorização maquinal da tabela periódica dos elementos, alavancas e planos inclinados, a fotossíntese das plantas verdes e a diferença entre a antracite e a hulha. Mas não havia um sentimento de exultação e deslumbramento, o menor vestígio de perspectiva evolucionista e nada sobre ideias erradas em que toda a gente em tempos acreditara. Nas aulas laboratoriais do liceu havia uma resposta que devíamos dar e, se não o conseguíamos, tínhamos nota negativa. Não havia estímulo para nos debruçarmos sobre os nossos interesses, palpites ou erros conceptuais. No final dos manuais havia material que se podia considerar interessante, mas o ano acabava sempre antes de lá chegarmos. Encontravam-se livros maravilhosos sobre astronomia nas bibliotecas, por exemplo, mas não na sala de aula. As contas de dividir eram ensinadas como um conjunto de regras de um livro de cozinha, sem qualquer explicação sobre o modo como esta sequência particular de pequenas divisões, multiplicações e subtracções nos dava a resposta certa. No liceu a extracção de raízes quadradas era-nos apresentada com veneração, como se fosse um método sagrado. Tudo o que tínhamos a fazer era recordar o que nos tinham mandado fazer. Dá a resposta certa e não te rales se não percebes o que estás a fazer. (...) O meu interesse pelas ciências manteve-se todos esses anos por ler livros e revistas científicos e de ficção científica.
Carl Sagan, Um mundo infestado de demónios

Quantos de nós não temos recordações semelhantes? Numa crítica genérica aos programas dos anos 60, José Sebastião e Silva afirmou:

O que é preciso é não confundir cultura com erudição e sobretudo com o enciclopedismo desconexo, imensa manta de retalhos mal cerzidos, que vão desde as guerras púnicas até ao sistema nervoso da mosca. É esse, a bem dizer, o tipo de cultura que tende a produzir o ensino tradicional, baseado num sistema de exames que só permite apreciar memorizações e automatismos superficiais, mais ou menos próximos do psitacismo [in Guia para a utilização do compêndio de Matemática, 2(o)/3(o) vol, pg 10.].

Eu próprio, apesar de ter tido alguns bons professores de Ciências da Natureza, Físico-Químicas e Matemática, não foi nas aulas que o meu interesse pela Ciência foi despertado e mantido. Foi no Clube de Ciências em que dissequei rãs, em que observei, no terreno, fósseis (as blemnites muito me fascinaram e durante certo tempo até fiz colecção de fósseis), em que eu próprio revelei fotografias de animais (do Jardim Zoológico de Lisboa) incluindo até ampliações. E foi ainda na leitura de dois livros de divulgação matemática, quase os únicos que então existiam em língua portuguesa, O Encanto da Matemática de W.W.Sawyer e Curiosidades da Matemática de E.P.Northrop infelizmente ambos os livros estão esgotados há muito tempo!. Com estes livros pude dar largas à imaginação o que deveras me fascinou: havia a possibilidade de construir mundos, abstractos mas assombrosamente próximos da realidade, com a linguagem matemática: aí aprendi, por exemplo, os logaritmos sem saber muito bem o que eram, apenas seguindo a exposição deveras interessante do primeiro livro (e, que eu saiba, original) e depois experimentando eu próprio com os dados que me eram fornecidos. Os logaritmos são aí apresentados como algo com história e desenvolvidos com um determinado fim em mente (Briggs e Napier são referidos); em seguida os logaritmos são definidos através de uma analogia em que se pretende segurar cavalos enrolando cordas em torno de uma árvore. Logaritmo é o número de voltas necessário para obter qualquer número considerado. E depois constrói-se (eu construí!) uma régua de cálculo; já experimentei fazer o mesmo com um grupo de alunos do 9(o) num curso para jovens promovido pela SPM/Centro e foi um sucesso. No mesmo livro são referidos vários esquemas de cálculo de diferenças finitas; nesse livro está a origem da minha mania de coleccionar gráficos (Vale a pena coleccionar gráficos respeitantes a qualquer assunto em que estejamos interessados, pg 126). No segundo livro li coisas espantosas sobre paradoxos de ursos, de cadeias de cartas, de divisões por zero e contactei pela primeira vez com os paradoxos do infinito e das probabilidades (sei tudo isto porque fiz anotações nos livros, algumas vezes com datas).

Muitas pessoas, cientistas, filósofos, educadores, têm chamado a atenção não só para a importância do ensino das Ciências em geral mas também para a importância do seu ensino a um nível para além do ensino básico. Mas essa importância esbarra com uma realidade desanimadora. Carlos Fiolhais afirma Estamos roídos pela doença da ignorância científica, que nos pode ser fatal [in Educação científica: os males e os remédios, Público, 5 de Outubro de 1997.]. João Filipe Queiró é também radical: O único destino que resta a Portugal é, provavelmente, o da cultura e o da inteligência dos seus cidadãos [in A Universidade Portuguesa: uma reflexão, Gradiva, 1995.].
Como bem acentua Carl Sagan no livro citado, sem cultura científica uma sociedade está pronta a acreditar na primeira interpretação com aparência consistente que lhe seja apresentada para explicar um fenómeno novo, e quanto menor for a capacidade de análise crítica, maior será a tendência para acreditar nas interpretações mais esotéricas e aterradoras, por exemplo para acreditar em demónios e no fim do mundo; a criação e desenvolvimento de seitas de implantação internacional e sua difusão, por exemplo via televisão e Internet, é um dos espectros do nosso tempo.
A cultura científica não se adquire num curto espaço de tempo, nem pode ser considerada adquirida só porque determinado programa oficial refere uma certa teoria científica. Hoje, como ontem, não se cumprem programas, para desespero dos alunos mais interessados, que normalmente o sistema ignora, e gáudio daqueles, infelizmente muitos, que pretendem singrar na vida pela lei do menor esforço. É importante notar que não se podem formar apenas especialistas, é preciso também saber formar cidadãos esclarecidos que saibam apreciar o saber de terceiros e sejam capazes de aprender pela vida fora. O saber apreciar deve ser cultivado, não só pela prática (já lá voltarei), mas também pelo conhecimento suficiente das áreas; isto não apenas para poder determinar a importância dessas áreas na cadeia do conhecimento, mas sobretudo para saber quando se deve apelar a elas para resolver um problema. Infelizmente a cultura científica não é considerada entre nós parte integrante da cultura. Cultura é só cultura literária e artística. Porquê? Em parte porque a cultura científica tem dificuldades próprias que o sistema algo populista que temos autoriza que sejam evitadas pelos alunos. A nível do ensino secundário, muitas vocações são decididas não pela positiva, mas pela negativa, para fugir à matemática, à física O mesmo acontecendo com as línguas estrangeiras.. Isto é inadmissível. Por um lado, é natural que o conhecimento algo superficial que os alunos têm das ciências no ensino básico (aqui também haveria muito a dizer...) não lhes dê a capacidade de escolha pela positiva de uma determinada área. Mas, por outro lado, é pena que disciplinas fundamentais como a Matemática Os Métodos Quantitativos não podem em rigor ser considerados uma formação matemática pois, por um lado apenas funcionam um ano e, por outro, o próprio Ministério da Educação admite que professores de outros grupos a leccionem. e as Físico-Químicas estejam ausentes da formação secundária de uma parcela substancial de alunos. Com isto não quero de modo nenhum dizer que sugiro a eliminação da formação humanística, tão importante como a formação científica, e também não estou a dizer que todos os alunos devam ter o mesmo programa. A ciência é tão vasta que há lugar para muitos tipos de abordagens e aprofundamentos. Mas o conhecimento científico que uma parte dos alunos do ensino secundário adquire actualmente não é consentâneo com as exigências do mundo actual.
Mesmo os alunos do agrupamento de ciências aprendem pouco. A praga do não cumprimento dos programas oficiais (e não só no ensino secundário), que baralha todos os planeamentos quanto à formação científica dos jovens, deve ser combatida sem descanso. Por um lado é preciso reflectir, seriamente, sobre a exequibilidade prática de um programa oficial, quando ele é preparado e não depois. Por outro lado, é preciso equilibrar os aspectos informativo e formativo do programa. Mais vale um programa curto que seja efectivamente executado do que um programa enciclopédico a que ninguém liga e a cujo incumprimento o Ministério da Educação fecha os olhos. Não creio que seja impossível mudar este estado de coisas. Logo, pelo contrário, acho que deve ser feito.
Não se trata só de um conjunto de conhecimentos que deve ser adquirido mas também do modo como esse conhecimento é adquirido, interiorizado e aplicado. Um conhecimento memorizado mecanicamente, repetido sem interiorização, é rapidamente eliminado e esquecido. Quantas vezes os alunos dizem vou só decorar esta tabela e no fim do teste já esqueço tudo? E quão frequentes são os testes com eliminação de matéria. A ciência não se pode dividir em fatias, tudo está relacionado com tudo, embora em cada momento a ênfase possa ser feita nalgum tópico particular. Isto está relacionado com o facto de o ensino das ciências dever ser não só informativo mas também dever transmitir uma postura, fundada na dúvida e no método Carlos Fiolhais, [in Educação científica: os males e os remédios, Público, 5 de Outubro de 1997.]. Este ensino, tendo em conta o método próprio da ciência, não é compatível com a afirmação que por vezes se ouve na aula isso pode estar certo, mas eu quero que faças assim.
Carl Sagan, no extracto acima reproduzido, refere-se à falta de sentimento de exultação e deslumbramento. A ciência não pode ser apresentada de uma forma exaustiva, em que se pretendem apresentar todas técnicas, todos os aspectos e todos os casos particulares. Esse esmiuçamento tantas vezes desnecessário (que muitas vezes é levado até muito para além do próprio programa oficial) mata qualquer despertar de sentimentos estéticos no aluno, sentimentos esses que são a essência do espírito científico. Já Sebastião e Silva alertava para

Um ensino das ciências, que não seja acompanhado de uma boa educação estética e que não fale à imaginação dos alunos, está condenado a priori, pela sua própria aridez, a afastar muitos dos melhores talentos. [in Guia para a utilização do compêndio de Matemática, 1(o) vol, pg 46, 2(o)/3(o) vol, pg 125.]

Richard Courant afirmava que só se poderia compreender verdadeiramente a Matemática fazendo Matemática. Fazer matemática significa seguir frequentemente um percurso algo semelhante à evolução histórica em que o estabelecimento e testagem de conjecturas, a resolução de problemas, a análise de ferramentas diferentes, desempenham um papel não negligenciável. George Polya foi um dos primeiros matemáticos deste século a idealizar uma heurística que pretende ajudar a reflectir sobre o processo de resolução de um problema matemático. Já em 1943, o professor de Matemática do nosso ensino secundário José Silva Paulo, injustamente esquecido, escreveu aquela que me parece ser a primeira referência em Portugal aos trabalhos de Polya, reproduzindo um esquema deste na recensão de um livro dedicado ao ensino da Geometria. Na primeira parte do quadro pode ler-se:

1. Compreender a questão.
2. Achar um caminho que vá da incógnita aos dados - passando, se for preciso, por vários problemas intermediários (Análise).
3. Realizar. Efectuar as construções (Síntese)
4. Verificar e criticar.

Ainda hoje os trabalhos de Polya parecem surpreender muita gente. Como ensinar o método matemático sem passar por algo deste tipo?
Contudo, parece ter-se preferido a pedagogia simplista, subproduto do chamado ensino programado e da crença atrofiadora numa máquina hipotética que ensinaria tudo da maneira óptima. Cada raciocínio apenas pode fazer-se por um caminho e todos os alunos devem ser obrigados a trilhar o mesmo caminho! Oh ditadura! Curiosamente, Carl Sagan afirma peremptoriamente que os valores da democracia e da ciência são coincidentes.

Muitas razões podem ser avançadas para a importância do estudo das ciências. Esse estudo é particularmente importante no secundário, ponte entre o ensino básico e a vida que muitos têm dificuldade em atravessar. As dificuldades específicas do ensino secundário são consideráveis, atendendo ao nível de desenvolvimento psicológico, social e afectivo dos alunos. Atendendo à etapa de transição por que passam, Carl Sagan, conferencista habitual em escolas básicas e secundárias, lamentava-se dos alunos destas últimas escolas nos seguintes termos:

<<o prazer da descoberta, o que está para além desses factos [memorizados], perdeu-se. Preocupam-se em fazer perguntas "tolas"; são receptivos a perguntas incorrectas; não colocam questões problemáticas [in Cientificamente ignorantes, in "Grande Reportagem, n(o) 5, Jan/Mar 91, pg 167/172.].

Porque continua tudo como dantes, em Portugal (e em muitos outros países)?

Em geral preferem-se as soluções simples e rápidas. Em educação não há soluções simples e rápidas! Muito menos no ensino das ciências e muitíssimo menos no ensino secundário, altura em que os alunos se tentam afirmar como cidadãos de parte inteira que quase já são, e seres independentes que pensam já ser. Questões complicadas raramente têm respostas simples e nunca têm respostas rápidas. Por um lado os alunos devem já fazer alguma escolha com vista ao seu futuro profissional (mesmo que a sua formação termine no ensino secundário). E essa escolha exige o início da ênfase num grupo de disciplinas. Por outro lado há que assegurar uma formação genérica. A ciência desenvolveu-se tanto em tempos recentes, que hoje se defende com muito fundamento que aquilo que se estuda não deva ter o mesmo tipo de sabor, extensão ou aprofundamento, para todos os alunos. A diversidade pode ser aliada ao rigor. Estou convicto que tanto as Ciências Exactas como as Ciências Naturais são parcela fundamental da formação de todos os alunos do ensino secundário, embora possam ser transmitidas e recebidas de maneiras diferentes.

Muitas outras questões gostaria de referir, mas nesta curta intervenção não há espaço para discutir problemas como o dos manuais escolares (qualidade científica, respeito pelo programa, linguagem adequada ao nível dos alunos), o da formação dos professores (equilíbrio e coordenação entre a formação científica, pedagógica e didáctica), o da coordenação dos diversos ciclos de ensino, e o do modo algo milagroso como muitos professores conseguem formar excelentes alunos apesar das péssimas condições materiais e estruturais em que são compelidos a trabalhar.

Para terminar entendo que quatro ideias são fundamentais para que o ensino das ciências seja verdadeiramente útil e eficaz para todos os alunos do ensino secundário:

- o estudo da história da ciência antiga e moderna deve ser uma parte significativa do ensino secundário; não me refiro a um estudo enciclopédico nem exaustivo, mas a um estudo integrado no tema tratado em cada altura, de um modo que inclusivamente permita a que a vida ou a obra dos diversos cientistas possa ser apresentada como modelo a seguir pelos alunos (esta estratégia tem a vantagem adicional de aproximar as ciências exactas das ciências humanas);

- deve ser incluído o estudo da importância da ciência no mundo de hoje, em estreita colaboração com outras disciplinas, por exemplo a disciplina de filosofia, suscitando a reflexão dos alunos (e impedindo que a filosofia da ciência seja uma mera colecção de definições e enunciados de temas da moda intelectual!)

- os melhores alunos devem ser estimulados, acarinhados, apontados como exemplo; além disso deve ser solicitada a sua colaboração no acompanhamento dos alunos mais novos ou com mais dificuldades; as experiências de uns ajudam as experiências de outros (mais próximos deles do que os professores);

- qualquer renovação séria do ensino das ciências deve ser feita em colaboração com os cientistas, levando-os a conhecer e a colaborar com a escola secundária: Já em 1990, José Mariano Gago dizia no "Manifesto para a Ciência em Portugal": "Só as instituições de investigação e os cientistas têm a vivência prática da cultura científica suficiente para ajudar a construir modelos conviviais de aprendizagem; só eles têm a familiaridade honesta com a ignorância (eventualmente superável), com o erro e com a descoberta que pode, em situação escolar, fundar a humildade necessária para despertar os espíritos..." De pouco vale falar de ciência se não a houver.

Não me parece que o ensino secundário possa dar uma boa formação científica aos jovens sem estas e outras condições que atrás aflorei estarem minimamente cumpridas. Sem isso os alunos acreditarão mais depressa nos demónios do fim do mundo do que na possibilidade de uma sonda, lançada com a ajuda da Física, andar a passear em Marte ou um buraco negro, explicado com a ajuda da Matemática, poder absorver tudo o que apanha ao seu alcance.


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