A formação de professores em novas tecnologias da informação e comunicação no contexto dos novos programas de Matemática do Ensino Secundário

Jaime Carvalho e Silva

Departamento de Matemática, Universidade de Coimbra

Apartado 3008, 3000 Coimbra

email: jaimecs@mat.uc.pt WWW: http://www.mat.uc.pt/~jaimecs










A evolução tecnológica põe à disposição dos professores novas ferramentas de que poderão (ou não) tirar partido. Os programas oficiais das diversas disciplinas fazem algumas referências à utilização dessas ferramentas se entendem que a sua utilização pode ser útil à concretização dos objectivos gerais ou específicos da disciplina. Há uma natural tendência para não ir atrás das últimas modas ou em não sugerir a utilização de recursos cuja divulgação ou sofisticação não são de molde a antever uma utilização útil e generalizada em todas as escolas. Mas as novas tecnologias da informação e comunicação já ultrapassaram ambos os critérios (estão já bastante divulgadas e a sua utilização aprofundada requer muito poucos conhecimentos de índole técnica) pelo que não devem existir receios a priori no tocante à sua possível utilização educativa.

Tendo estado ligado à elaboração dos novos programas de Matemática, primeiro como consultor e formador e, desde 1995, como membro da equipa técnica que procedeu ao ajustamento e à coordenação da aplicação dos programas, pretendo mostrar como a utilização das novas tecnologias da informação e comunicaçãoé recomendada pelos programas de Matemática e que novos desafios tal facto coloca à formação inicial e contínua de professores de Matemática.
 
 

Objectivos gerais e específicos da disciplina de Matemática

Os novos programas de Matemática para o ensino secundário (Ministério-da-Educação, 1997) estabelecem como finalidades da disciplina:
 
 

ï Desenvolver a capacidade de usar a Matemática como instrumento de interpretação e intervenção no real.

ï Desenvolver as capacidades de formular e resolver problemas, de comunicar, assim como a memória , o rigor, o espírito crítico e a criatividade.

ï Promover o aprofundamento de uma cultura científica, técnica e humanística que constituam suporte cognitivo e metodológico tanto para o prosseguimento de estudos como para a inserção na vida activa.

ï Contribuir para uma atitude positiva face à Ciência.

ï Promover a realização pessoal mediante o desenvolvimento de atitudes de autonomia e solidariedade

Num mundo em que cada vez mais a máquina estará presente para efectuar trabalhos rotineiros mais ou menos ligados a tarefas de cálculo intensivo, os desafios que se porão na "interpretação e intervenção no real" e na resolução de problemas concretos, quer sejam ligados ou não a uma profissão específica, incluirão certamente a ferramenta computacional. Obviamente que a "cultura científica, técnica e humanística" não poderá deixar de incluir o conhecimento das capacidades e limites da máquina (por exemplo, o teorema de Turing), e o significado da contribuição de áreas como a inteligência artificial, o cálculo intensivo e os sistemas algébricos computacionais.

Os programas referidos exemplificam como as suas finalidades poderão ser concretizadas, estabelecendo como objectivos gerais, entre outros, os seguintes:
 
 

Desenvolver a capacidade de utilizar a Matemática na interpretação e intervenção no real:

ï Analisar situações da vida real identificando modelos matemáticos que permitam a sua interpretação e resolução.

ï Seleccionar estratégias de resolução de problemas.

ï Formular hipóteses e prever resultados.

ï Interpretar e criticar resultados no contexto do problema.

ï Resolver problemas nos domínios da Matemática, da Física, da Economia, das Ciências Humanas, Ö

Desenvolver o raciocínio e o pensamento científico:

ï Descobrir relações entre conceitos de Matemática.

ï Formular generalizações a partir de experiências.

ï Validar conjecturas.

ï Fazer raciocínios demonstrativos usando métodos adequados.

ï Compreender a relação entre o avanço científico e o progresso da humanidade.

Desenvolver a capacidade de comunicar:

ï Comunicar conceitos, raciocínios e ideias, oralmente e por escrito, com clareza e progressivo rigor lógico.

ï Interpretar textos de Matemática.

ï Exprimir o mesmo conceito em diversas formas ou linguagens.

ï Usar correctamente o vocabulário específico da Matemática.

ï Usar a simbologia da Matemática.

ï Apresentar os textos de forma clara e organizada.
 

Não será admissível que a análise de "situações da vida real identificando modelos matemáticos que permitam a sua interpretação e resolução" seja exequível sem o recurso a meios computacionais, pelo menos numa grande classe de problemas mais realistas. O contacto dos alunos com os modelos matemáticos não se poderá restringir à classe daqueles que "dão contas certas". A resolução de "problemas nos domínios da Matemática, da Física, da Economia, das Ciências Humanas" será em grande parte minimamente realista apenas se envolver o uso de um computador ou calculadora. Não é possível "compreender a relação entre o avanço científico e o progresso da humanidade" sem referir o papel das novas tecnologias da informação e comunicação e suas relações com as ciências básicas. A formulação de "generalizações a partir de experiências" será em grande parte exequível apenas com o auxílio das capacidades numéricas ou gráficas de uma calculadora científica ou gráfica ou de um computador.

Aliás, já nos anos 60, o presidente da Comissão de Estudos para a Modernização do Ensino da Matemática (criada em 1963), José Sebastião e Silva, escrevia:
 

(...) logo na primeira aula se deve [pôr] o aluno em contacto com o conceito de aproximação. (...) a ideia dos métodos de aproximação, que domina toda a análise numérica moderna, ligada ao uso de computadores. (Silva, 1965-66b), p. 49,56.

Os processos de recorrência (baseados no princípio da indução matemática (....)) constituem um dos muitos assuntos da matemática que têm sido postos na ordem do dia pelos computadores. (Silva, 1965-66b), p. 58.

Na verdade o uso dos computadores tem vindo a acentuar a importância do método experimental na investigação matemática, permitindo aperfeiçoar processos ou mesmo abrir caminhos inteiramente novos. (Silva, 1965-66b), p. 86.

E, numa antevisão do que será a ligação de todas as escolas portuguesas à Internet, escreveu:
 
 

O certo é que se começa desde já a desenhar entre nós a necessidade de um grande CENTRO NACIONAL DE CÁLCULO, munido de um computador de alta potência. Este não eliminaria a necessidade de computadores de pequena ou média potência, que poderiam ficar ligados telefonicamente ao primeiro, a fim de transferirem para este a resolução de problemas que não tivessem capacidade para resolver. (Silva, 1965-66a) , p. 241.

Não escondia contudo as dificuldades e, em 1969, reconhecia
 
 

Não nos é contudo ainda possível atingir o grau de desenvolvimento e de profundidade (...), nomeadamente no que se refere a computadores, programação, estatística, equações diferenciais e aplicações à física. (Silva, 1969) , p. 14.

 

Recursos para o ensino da Matemática

O programa de Matemática de 1997 indicam com algum detalhe quais os recursos necessários à concretização prática dos objectivos gerais da disciplina no ensino secundário. Além de materiais para o ensino da Geometria e de audio-visuais, indica:
 
 
 

ï Calculadoras gráficas com possibilidade de introdução de um ou dois pequenos programas;

ï Computador.

Em seguida indica que o uso destes recursos é indispensável na seguinte configuração mínima:
 
 

ï calculadoras gráficas que desempenham uma parte das funções antes apenas possíveis num computador e que apresentam uma sofisticação crescente e preços cada vez mais acessíveis (para demonstrações com todos os alunos, calculadora com "view-screen");

ï um computador ligado a um "data-show" para demonstrações, simulações ou trabalho na sala de aula com todos os alunos ao mesmo tempo.

E apontam a constituição de Laboratórios de Matemática nas Escolas Secundárias. O programa considera obrigatório o uso da calculadora gráfica visto que estão facilmente acessíveis, tendo tanto capacidades numéricas como gráficas. E sublinha a importância da dimensão gráfica, que "só é plenamente atingida quando os alunos traçam uma grande quantidade e variedade de gráficos com apoio de tecnologia adequada (calculadoras gráficas e computadores)".

O programa aponta alguns dos papeis a desempenhar pela tecnologia, indicando enfaticamente que "não se trata aqui de substituir o cálculo de papel e lápis pelo cálculo com apoio da tecnologia, mas, uma vez compreendidos os processos de cálculo envolvidos, os alunos devem saber tirar partido da tecnologia para os cálculos mais laboriosos" citando o matemático espanhol Miguel de Guzmán, que defende que os alunos devem ser preparados para um "diálogo inteligente com as ferramentas que já existem" (Guzmán, 1993).

As principais actividades a desenvolver com a tecnologia gráfica são sumariadas, no programa, com a classificação proposta por Bert Waits:

"Tal como indica Bert Waits no seu texto "The Power of Visualization in Calculus"(1992) e tendo em conta a investigação e as experiências realizadas até hoje, devem ser explorados com a calculadora gráfica os seguintes dez tipos de actividade matemática":

 
ï Abordagem numérica de problemas;

ï Uso de manipulações algébricas para resolver equações e inequações e posterior confirmação usando métodos gráficos;

ï Uso de métodos gráficos para resolver equações e inequações e posterior confirmação usando métodos algébricos;

ï Modelação, simulação e resolução de situações problemáticas;

ï Uso de cenários visuais gerados pela calculadora para ilustrar conceitos matemáticos;

ï Uso de métodos visuais para resolver equações e inequações que não podem ser resolvidas, ou cuja resolução é impraticável, com métodos algébricos;

ï Condução de experiências matemáticas, concepção e testagem de conjecturas;

ï Estudo e classificação do comportamento de diferentes classes de funções;

ï Antevisão de conceitos do cálculo diferencial;

ï Investigação e exploração de várias ligações entre diferentes representações para uma situação problemática.

Os alunos devem ter oportunidade de entender que aquilo que a calculadora apresenta no seu écran pode ser uma visão distorcida da realidade; além do mais, o trabalho feito com a máquina deve ser sempre confrontado com conhecimentos teóricos, assim como o trabalho teórico deve ser finalizado com uma verificação com a máquina. É importante que os alunos descrevam os procedimentos utilizados e aquilo que se lhes apresenta. O programa não admite que o uso da calculadora gráfica seja desligado de quaisquer considerações teóricas.

Especificamente no que diz respeito ao uso de computadores, o programa sublinha as suas potencialidades nas áreas da "representação gráfica de funções e da simulação" e indica que a sua utilização deve ser considerada "obrigatória neste programa". O programa indica ainda alguns dos programas de computador cujo uso é recomendado; indica programas de
 
 

a) Geometria como o Cabri-Géomètre

b) Cálculo Numérico e Estatístico como uma Folha de Cálculo

c) Gráficos e demonstração como o Funções (Vitor Teodoro - editado pelo ex-GEP) e o MicroCalc (Harley Flanders)

d) Álgebra Computacional como o DERIVE ou o Mathematica

e) simulação como os da série Soft-Ciências (editados pelas SPF, SPQ e SPM)

Nos anexos ao programa são ainda referidos explicitamente dois programas de computador portugueses: o GD-Geometria Descritiva que efectua simulações de Geometria a 3 dimensões e o Modelus que simula o comportamento de modelos matemáticos.

Apontando para uma cada vez maior utilização dos computadores no ensino da matemática, o programa afirma:
 

(...) recomenda-se enfaticamente o uso de computadores, tanto em salas onde os alunos poderão ir realizar trabalhos práticos, como em salas com condições para se dar uma aula em ambiente computacional, além do partido que o professor deve tirar como ferramenta de demonstração na sala de aula usando um "data-show" com retroprojector.

O trabalho com computadores deverá ainda ser explorado e desenvolvido em todos os trabalhos da Área Escola em que tal se proporcionar e ainda nas disciplinas de Informática constantes do currículo (como a Introdução às Tecnologias da Informação), em ligação com a disciplina de Matemática.

O programa fornece vários exemplos concretos onde a tecnologia deve ser usada. Na área das funções indica que devem ser estudadas famílias de funções e refere mesmo que "no estudo das famílias de funções os alunos podem realizar pequenas investigações".

O programa aponta repetidas vezes como se deve processar o trabalho com tecnologia gráfica, em que a resolução de um problema nunca deve depender apenas das tarefas executadas com a máquina. Indica que o espírito crítico do aluno deve ser mantido alerta e chama em particular a atenção para limitações gráficas intrínsecas como a necessidade de determinar um conjunto de duas ou mais representações gráficas para obter uma boa descrição do gráfico de uma função. Um exemplo onde é patente a colaboração entre o trabalho com a máquina e com "papel e lápis" é:
 

Um aluno deverá registar por escrito as observações que fizer ao usar a calculadora gráfica ou outro material, descrevendo com cuidado as propriedades constatadas e justificando devidamente as suas conclusões relativamente aos resultados esperados (para desenvolver o espírito crítico e a capacidade de comunicação matemática).

A formação de professores

Num estudo relativo aos novos programas de Matemática de 1991, João Pedro Ponte (Ponte, 1993) identifica algumas das dificuldades sentidas pelos professores. Entre elas contam-se:

a) os professores sentem falta de materiais com problemas que possam usar no seu ensino

b) alguns professores sentem dificuldades em conduzir as actividades de resolução de problemas na sala de aula, particularmente na fase de discussão.

As dificuldades mantém-se actualmente. Para que o uso da tecnologia seja de forma a estimular a actividade e a profundidade do trabalho na sala de aula, deve estar envolvida a resolução de problemas, a análise crítica de resultados, a discussão dos mesmos. Sendo claro que os professores não têm experiência neste tipo de actividade, tanto em geral, como num contexto de uso da tecnologia, parece óbvio que a formação de professores é totalmente indispensável. Não pode dinamizar actividade na sala de aula quem não tem experiência dessa mesma actividade. Não poderá tirar partido da tecnologia quem não tiver trabalhado exemplos significativos onde a tecnologia representou um valor acrescido ou uma dimensão nova. Em particular o necessário diálogo entre os utilizadores da tecnologia nos diversos contextos em que ela pode ser utilizada, dentro dos diversos tipos de actividade matemática precisa de ser incentivado nos professores. Será bastante diferente trabalhar por exemplo em Geometria, em Funções, em Estatística ou em Modelos Matemáticos, com o apoio da Tecnologia. A simulação de objectos tridimensionais, a construção de objectos bidimensionais, a obtenção de diferentes tipos de gráficos estatísticos, a resolução simbólica de equações ou sistemas, a análise de sucessões definidas por recorrência ou a observação do comportamento de modelos matemáticos requer diferentes tipos de abordagem, trabalho, discussão. Finalmente, tal como é claro das considerações iniciais, o uso da tecnologia preconizado nos programas de Matemática do Ensino Secundário está intimamente ligado com os outros aspectos do programa, pelo que a sua prática não deverá em geral ser separada da prática dos outros aspectos recomendados no programa.

Beatriz DíAmbrosio (DíAmbrosio, 1996) defende que o professor deve ter uma postura de investigador e que para isso, na sua formação, deve ter tido experiências de investigação matemática. Em (Silva & Rosendo, 1995) descreve-se a experiência muito positiva que tem sido realizada no Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra em termos de formação inicial do uso de tecnolgia na sala de aula de matemática, onde uma componente muito prática do trabalho é uma parte essencial da formação.

Parece-me assim necessário desenvolver, por um lado, materiais que tirem partido do uso da tecnologia e, por outro, formar professores para o uso desses materiais e da tecnologia que requerem.

Em termos de materiais parece-me indispensável desenvolver:

a) "Software" adequado à realização de experiências matemáticas, adequado à simulação de objectos matemáticos, adequado à representação de propriedades ou relações entre objectos, entre outros.

b) Arquivos na Internet contendo materiais com sugestões de trabalho ou elementos para pesquisa pessoal;

c) A dinamização de contactos à distância entre professores para troca de experiências e materiais.

Em termos de formação de professores parece-me recomendável:

a) Incluir na formação inicial espaços de trabalho e reflexão sobre o uso da tecnologia no ensino de diversas áreas da matemática;

b) Elaborar cursos de formação contínua de professores, tanto para introdução genérica ao uso da tecnologia na sala de aula (tanto para calculadoras gráficas, como para computadores) como no aprofundamento, em cada uma das diversas áreas da matemática e do trabalho matemático, do uso de materiais e "software" específico;

c) Incentivar a auto-formação dos professores, tanto para introdução genérica ao uso da tecnologia na sala de aula, como no aprofundamento em áreas particulares da matemática e do trabalho matemático.

O modo como cada uma dessas acções deve ser desenvolvida na prática estará dependente do tipo de instituições interessadas e do enquadramento legal vigente. Parece-me contudo que nenhum dos condicionalismos conjunturais poderá servir de desculpa para não passar à prática, em larga escala, as acções mais prementes.
 
 
 
 

Referências

DíAmbrosio, Beatriz (1996). Mudanças no papel do professor de matemática diante de reformas de ensino. In António Roque & et al (Ed.), Profmat 96 (pp. 15-23). Almada: APM.

Guzmán, Miguel de (1993). Tendencias innovadoras en la educación matemática. Boletim da S.P.M., 25, 9-34.

Ministério-da-Educação (1997). Matemática - Programas: 10º, 11º e 12º anos. Porto: Departamento do Ensino Secundário.

Ponte, João Pedro (1993). Os novos programas: que desafios para o professor de Matemática? In Conceição Antunes et al. (Ed.), Profmat 93 (pp. 61-67). Ponta Delgada: APM.

Silva, Jaime Carvalho, & Rosendo, Ana Isabel (1995). Computers in Mathematics Education - an experience. In 7th ICTCM. Orlando: Electronic Proceedings of the ICTCM.

Silva, José Sebastião (1965-66a). Compêndio de Matemática, 2º vol. Lisboa: Min.Educação/OCDE.

Silva, José Sebastião (1965-66b). Guia para a utilização do Compêndio de Matemática (2º e 3º vol). Lisboa: Min.Educação/OCDE.

Silva, José Sebastião (1969). Projecto de Modernização do ensino da matemática no 3º Ciclo dos liceus portugueses. Palestra - Liceu Normal de Pedro Nunes, 6.