Ser professor de Matemática em Portugal em 1994

ideias pessoais para um debate

As questões colocadas enchem quase duas páginas pelo que as minhas respostas pessoais apresentam obviamente um carácter muito sumário. Espero durante o debate esclarecer devidamente o que penso sobre o assunto.

O professor de Matemática e a Reforma Curricular

É incontestável que existem propostas de renovação de ensino interessantes contidas nos novos programas. Mas podemos questionar-nos se alguma delas se pode considerar de algum modo passada à prática, generalizada. Os professores que já praticavam inovações ter-se-ão sentido mais animados por verem algumas das suas propostas contempladas no "Diário da República". Mas é preciso não esquecer que a publicidade feita por um dos mais populares autores de manuais de Matemática afirmava que o seu manual era o mais próximo dos manuais antigos! Em termos globais, nada mudou: o Ensino da Matemática continua em termos gerais reduzido a uma lista de rotinas a memorizar (sendo até uma disciplina popular entre as pessoas que são "forçadas" a ensinar: pensam que basta fazer uns exercícios triviais para os quais "se sabe sempre a resposta!")

O Ministério tem tido práticas incongruentes e inconcebíveis desde a afirmação de que não é necessária formação científica pois basta ler os programas oficiais, até à recusa em fornecer bibliografia ou à incapacidade em distribuir material didáctico ou à ignorância ostensiva do parecer de especialistas ou das conclusões de experiências inovadoras.

Mas a generalidade dos professores também não se tem mostrado suficientemente activa para impôr alterações na prática escolar e apagar a imagem de "explicador profissional" e da imagem da Matemática como "disciplina de selecção". Já o disse várias vezes, e repito, que a APM e a SPM deveriam ser parceiros indispensáveis em qualquer reforma, mas lamentavelmente nem sequer se viu uma única posição pública conjunta da SPM e da APM. E assim o Ministério pode impor calmamente considerações economicistas como a da redução de carga horária no Ensino Secundário.

O professor de Matemática e a Escola

A minha experiência não é obviamente do ponto de vista do interior, mas de observador exterior (orientador científico de estágio e pai). Como em qualquer organização, as pessoas odeiam reuniões e a estratégia mais popular é "despachar" qualquer reunião o mais depressa possível. Quer-me parecer que muito há a fazer neste campo, desde a selecção de manuais escolares às relações entre professores das várias disciplinas (como o exige a "área-escola"), ou ao olhar o pai de um aluno como um "intruso" (sobretudo se o pai também é professor).

Mas a interacção entre professores não deve limitar-se à escola, surgindo os Encontros e Congressos como lugares privilegiados de troca de ideias e experiências.

O papel do professor de Matemática

É muito difícil estar a avançar com competências mais importantes do professor de matemática, pois todas são importantes. O professor de Matemática deve
 

i) saber matemática

ii) saber ensiná-la.


Se algo falha em i) ou ii) então o professor não é competente. Se não sabe geometria ou estatística não a pode ensinar; se não é capaz de discutir a resolução de um problema com um aluno, ou de discutir uma demonstração com um aluno, ou de elaborar uma prova de avaliação que seja coerente com o que foi ensinado, não sabe ensinar matemática.

Eu diria que há apenas três níveis de ensino essencialmente diferentes:
 

I) 1º ciclo (ensino primário),

II) 2º e 3º ciclos e ensino secundário

III) ensino superior


Há problemas apenas na transição entre estes três níveis, sendo os mais graves na transição ensino secundário/ensino superior. Infelizmente muito pouco se faz para aplanar as dificuldades, por exemplo no relacionamento entre as instituições (de envio e acolhimento).

Discordo da frase "exigências colocadas ao professor de matemática pelo movimento de renovação curricular iniciado nos anos 80". Nenhum movimento exige nada a nenhum professor. Hoje, como sempre, o professor de matemática deve manter-se atento ao que se passa à sua volta. Por um lado o ensino da Matemática é claramente ineficaz, gerador de incapacidades e traumas; por outro lado são avançadas propostas potencialmente interessantes para ultrapassar as dificuldades actuais. É a consciência profissional do professor que o obriga a analisar as propostas que vão aparecendo e enriquecendo a sua prática com o que observa, transmitindo ainda as conclusões a que vai chegando.

O professor e a formação

Talvez a característica mais interessante que posso retirar do meu percurso pessoal seja a diversidade das experiências que vivi. Assisti a aulas de grandes, pequenos e odiosos mestres, estudei assuntos muito variados, assisti a encontros e conferências de características imensamente díspares, dialoguei e discuti com pessoas com as mais diversas opiniões. A minha prática profissional assenta tanto nos bons exemplos que colhi com "os mestres", como nos exemplos a evitar, como nas discussões (orais, escritas e pelo correio electrónico) e nas novas perspectivas que me eram trazidas por mais um encontro com um ambiente diferente e na reflexão que esse encontro me impunha. Em suma: é inútil pretender ter opiniões definitivas sobre qualquer assunto, a matemática cada vez nos surpreende mais (se quisermos realmente estudá-la e conhecê-la).

Neste sentido entendo que aos nossos alunos devem ser proporcionadas actividades o mais diversificadas possível. É fundamental que os alunos olhem cada assunto de vários ângulos diferentes. Os reformadores americanos do Cálculo Diferencial e Integral propõem que cada conceito seja encarada sempre dos pontos de vista ANALÍTICO, NUMÉRICO e GRÁFICO.

Como já disse atrás é fundamental saber Matemática. Muita Matemática. E em todos os níveis de ensino (é uma ilusão pensar que o 1º e 2º ciclo precisam de "menos" Matemática; precisam é de Matemática diferente). E nunca se sabe a Matemática toda. Novas áreas aparecem, outras tomam "novas qualidades". A Estatística, os Grafos e a Teoria de Números têm actualmente uma importância insuspeitada há 40 anos atrás, os Sistemas Dinâmicos, o Caos e os Algoritmos inundaram a Matemática actual. A Matemática é uma componente "sine qua non" tanto na formação inicial como na formação contínua. Duas outras componentes indispensáveis na formação inicial são a Didáctica da Matemática e a preparação para a vida na escola (onde entram a Psicologia Educacional e a Observação de Aulas). A existência de um Estágio Pedagógico digno desse nome é algo de muito importante (os melhores exemplos actuais são os estágios dos ramos educacionais).

A formação contínua deve, além de manter o professor actualizado com os últimos desenvolvimentos na Matemática e na Didáctica, fornecer outros elementos que não "cabem" na formação inicial (Como outros temas de Matemática, História da Matemática e Didáctica da Matemática; ou outras áreas como a História da Educação, a Sociologia da Educação ou o Desenvolvimento Curricular)

Não devem existir modelos de formação contínua. Devem aceitar-se todos os tipos de formação contínua. Os melhores impor-se-ão sem ser necessário institui-los por decreto. O que é necessário é uma avaliação honesta e consequente das diversas formações.