OURO E MATEMÁTICA

João Filipe Queiró
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra

Diário de Coimbra, 26 de Março de 2004, p.9


No passado dia 11 de Março, publicou o Diário de Coimbra a notícia, com o título «Ouro reconhecido», de uma visita da Senhora Directora Regional de Educação do Centro à Escola Secundária de José Falcão.

O motivo da visita foi a apresentação de felicitações a um estudante da Escola José Falcão, que se tem distinguido pelos bons resultados obtidos em competições de Matemática, em Portugal e no estrangeiro.

As felicitações e a notícia são perfeitamente justificadas. O jovem, João Casalta, tem obtido excelentes resultados nas Olimpíadas Nacionais de Matemática, e tem representado dignamente Portugal em várias Olimpíadas internacionais.

O que me leva a escrever este artigo são duas passagens da notícia, contendo declarações da Professora de Matemática do jovem em causa e da Directora Regional de Educação.

A primeira diz que [estes jovens] «não têm qualquer incentivo nem ajuda, seja nas Olimpíadas nacionais ou internacionais».

Um pouco mais adiante a Professora explica que está a pensar em possíveis contingentes especiais para a entrada na universidade, o que é uma preocupação legítima, sobretudo em comparação com certos outros regimes especiais de acesso.

Em todo o caso, creio que se justifica informar os leitores do Diário de Coimbra das actividades intensas e continuadas que há muito tempo docentes do Departamento de Matemática da FCTUC vêm desenvolvendo junto de jovens com interesse pela Matemática.

Foi por iniciativa de docentes deste Departamento que foram criadas, em 1980, as Olimpíadas de Matemática em Portugal, primeiro com âmbito regional e depois em todo o país. Estas Olimpíadas são a iniciativa científica regular que mais jovens movimenta em todo o país (dezenas de milhar) e iniciaram-se, repito, há 24 anos.

Foi por iniciativa de docentes deste Departamento, em ligação com a Sociedade Portuguesa de Matemática, que, em 1989, Portugal passou a estar representado em Olimpíadas internacionais de Matemática, o que aconteceu sem interrupção até hoje.

São ainda docentes deste Departamento que organizam múltiplas actividades matemáticas regulares com jovens de Escolas Básicas e Secundárias de todo o país, geralmente aos fins de semana. Estas actividades incluem programas específicos de preparação das equipas que representam Portugal nas competições internacionais. O jovem referido na notícia conhece bem, há vários anos, as salas e corredores do Departamento.

Quanto à Directora Regional de Educação, é-lhe atribuída, no final da notícia, quando se afirma que o jovem ainda não decidiu se há-de seguir Medicina ou a paixão Matemática, a seguinte declaração/aviso: «Veja lá, pense bem porque temos excesso de professores de Matemática».

É sempre difícil saber se uma declaração transcrita num jornal foi proferida exactamente assim. Assim, não vou criticar a Directora Regional de Educação. Prefiro analisar a declaração em si.

Esta declaração é surpreendente a vários títulos. Em primeiro lugar, seria surpreendente que um responsável político na área da educação tentasse influenciar um jovem na escolha do seu futuro, e sugerir-lhe que contrarie o que o próprio jornal afirma ser a «paixão» do jovem. Como é evidente, a sugestão estender-se-ia a todos os jovens que gostem de Matemática e leiam a notícia do Diário de Coimbra.

Em segundo lugar, seria ainda mais surpreendente ver essa tentativa apoiada numa percepção errada do que é um curso de Matemática, em particular o curso de Matemática que existe na Universidade de Coimbra.

A licenciatura em Matemática de Coimbra tem de facto, a partir do 4º ano, um ramo de especialização para quem pretenda obter a qualificação profissional de professor de Matemática dos ensinos Básico e Secundário. Mas permite também seguir outras vias, conforme o gosto e o interesse dos estudantes, desde tópicos de Matemática mais teórica (nas áreas da Geometria, da Álgebra e da Análise) até temas mais próximos das aplicações (Estatística, Simulação Numérica em Biologia e Engenharia, Optimização, Matemática Financeira, Computação). Essa escolha só precisa de ser feita no fim do 3º ano.

Muitos licenciados em Matemática têm saídas profissionais em actividades ligadas à banca, aos seguros, à informática, aos estudos estatísticos, à carreira académica e de investigação.

Finalmente, a questão de haver ou não excesso de professores de Matemática em Portugal. Os responsáveis políticos deveriam ser os últimos a falar no assunto. Isto porque a situação que momentaneamente se vive é consequência directa de que, desde 1998, o Ministério da Educação permite o acesso à profissão de docente de Matemática de diplomados por mais de uma centena de cursos que não são de Matemática. O actual governo, surpreendentemente, ainda não corrigiu a situação. Estão por avaliar os efeitos que estas políticas tiveram e têm na qualidade do ensino.

Como muita gente pensa que os cursos de Matemática são exclusivamente cursos de formação de professores (e de facto alguns são, mas não o de Coimbra), a procura desses cursos tem vindo a diminuir. Daqui a quatro ou cinco anos, Portugal pode vir a ter falta de professores de Matemática, como acontece com muitos países em que os licenciados em Matemática ou são poucos ou, beneficiando da sua formação, vão para outras profissões.