Comentário ao documento
“Programa de Matemática do Ensino Básico”
colocado em discussão em 1/7/2007

(parecer enviado ao Ministério da Educação)

 João Filipe Queiró
Departamento de Matemática -Universidade de Coimbra

 I

As justificações apresentadas neste documento para a necessidade de um reajustamento do Programa de Matemática para o ensino básico são insuficientes. Como razão “mais flagrante” apresenta-se a publicação, em 2001, do texto Currículo nacional do ensino básico. Invoca-se a seguir “o desenvolvimento do conhecimento sobre o ensino e a aprendizagem da Matemática nos últimos quinze anos”, e a necessidade de “melhorar a articulação entre os programas dos três ciclos”.

Estas razões são de carácter formal e apriorístico, e não de carácter empírico. Não é feita – nem, que eu tenha visto, citada – nenhuma avaliação do programa anterior, dos seus conteúdos, da sua extensão, nem dos dados objectivos respeitantes aos resultados dos alunos em exames e testes nacionais e internacionais de Matemática.

Analogamente, não é feita nenhuma referência à articulação entre o 3º ciclo e o Secundário, nem aos graves problemas observados na crucial transição entre esses dois ciclos, e causadores de tanto insucesso e abandono.

Afirma-se “a necessidade de uma intervenção urgente”, que é ainda menos explicada e justificada.

 II

O documento é longuíssimo. São preferíveis programas curtos e meramente indicativos, investindo-se depois em bons manuais, e na correcta formação dos professores.

Recomenda-se a consulta do excelente estudo de Eduardo Marques de Sá, Isabel Reis, Miguel Ramos e Jorge Pato, Critérios de elaboração de Programas de Matemática do 7º ao 12º ano (relatório no âmbito do projecto Inovações nos Planos Curriculares dos Ensinos Básico e Secundário), Instituto de Inovação Educacional e Sociedade Portuguesa de Matemática, Setembro de 1998. Este estudo está disponível no endereço http://www.mat.uc.pt/~emsa/PMEnsino/programasIIE-SPM.pdf

Para uma análise abrangendo outros ciclos e outras áreas ver: Amália Bárrios, Eduardo Marques de Sá, Isabel Cunha, Joana Castro, Jorge Dias de Deus, José Vítor Adragão, Paulo Feytor Pinto, Teresa Peña, Inovações nos Planos Curriculares dos Ensinos Básico e Secundário. Reflexões sobre Programas de Língua Materna, Matemática e Ciências, Instituto de Inovação Educacional, Dezembro de 1999. (disponível em http://www.mat.uc.pt/~emsa/PMEnsino/programasPortMatCi.doc)

III

Não entrarei na discussão de tópicos e conteúdos particulares. Concentro-me numa concepção enunciada desde o início e que atravessa e informa todo o documento. Trata-se da extraordinária ênfase em processos mentais superiores. Refiro-me à compreensão, à exploração, às “investigações”, à modelação, à constante problematização de conceitos, representações, resultados e algoritmos, à formulação de conjecturas, à aquisição de competências transversais, todos apresentados como finalidades e objectivos do ensino da Matemática no Ensino Básico.

Estes processos, com a abrangência e centralidade que o documento lhes confere, não são adequados aos escalões etários em causa, correspondentes aos ciclos escolares iniciais. A ênfase excessiva em tais objectivos tem como consequência inelutável a desvalorização relativa do conhecimento factual organizado e cumulativo.

A exploração, a problematização e as conjecturas são coisas boas em Matemática. O problema, repito, está em que são prematuras nestes níveis. Não é adequado esperar de crianças dos 6 aos 12 anos, e mesmo de jovens dos 13 aos 15 anos, sofisticadas atitudes e estratégias que muitas vezes não se encontram em alunos muito mais velhos.

Da mesma forma, ninguém é contra a compreensão. O que se questiona e critica é a ênfase na compreensão como objectivo central em idades em que – dizem os estudos de neurociências – se deve investir na absorção e memorização dos factos e algoritmos fundamentais e estabelecidos. E convém dizer que um ensino rico em factos não se opõe a motivações e aplicações ao mundo real.

Não há portanto oposição à compreensão e à exploração. A crítica é à proposta de generalizar e normativizar as explorações, as problematizações e as tentativas de compreensão sofisticada, e às consequências que essa proposta teria no terreno difícil e imperfeito das escolas básicas portuguesas. Estas não vivem num mundo ideal onde todas as ideias aparentemente virtuosas e plausíveis sobre o ensino teriam aplicação serena e profícua.

Não sei se os programas actuais são demasiado extensos. Mas parece-me óbvio que os objectivos listados no documento – e as correspondentes propostas metodológicas – excedem o tempo disponível para a disciplina de Matemática. Na linguagem dos químicos, que “resíduo seco” ficaria depois de todas aquelas explorações, experimentações, problematizações e conjecturas?

IV

Nos ciclos iniciais deve ser dada prioridade à aquisição de competências calculatórias básicas, com recurso à memorização. É um erro a utilização de calculadoras pelos alunos nestes níveis.

Os principais riscos associados ao uso das calculadoras no ensino são: a ênfase nos sítios errados, a impreparação dos professores para a subtileza da distinção entre os vários papéis possíveis da calculadora, o risco de distracção mortal com o seu uso em turmas numerosas (pela sedução própria da tecnologia), o valor formativo duvidoso.

Pode sempre dizer-se que o problema não está nas calculadoras, mas sim no seu uso indevido: a questão está em que nestas idades (e mesmo mais tarde), o uso tende a ser sempre indevido.

É de resto interessante que uma abordagem que tanto privilegia a compreensão admita o uso de calculadoras, que inevitavelmente acabarão a substituir qualquer tipo de raciocínio.

V

Nos 1º e 2º ciclos, não se justifica a introdução de temas de História da Matemática no ensino. Os alunos desses níveis escolares estão numa fase muito imatura do seu desenvolvimento intelectual, e a concentração do ensino da Matemática nos correspondentes ciclos de escolaridade deve incidir na aquisição de conhecimentos e técnicas de base. A referência à origem e evolução histórica de algoritmos e resultados muito introdutórios – admitindo que tal origem é simples de deslindar – teria nestes níveis um sério efeito de distracção e confusão.

A partir do 3º ciclo, a situação muda um pouco, e já se justifica a referência – embora muito ocasional – a nomes e curtas biografias de matemáticos e a contextos históricos de aparição de resultados. Isto pode ser complementado com a reprodução de cálculos clássicos “no terreno”. Alguns exemplos no campo da Geometria são a determinação de áreas triangulares usando o Teorema de Herão, o cálculo de alturas de edifícios ou elevações com o Teorema de Tales, a determinação do perímetro da Terra com o método de Eratóstenes (por exemplo em colaboração com turmas de outras escolas do país).

Em nenhuma fase as referências históricas devem ser excessivas ao ponto de prejudicar o verdadeiro objectivo do estudo da Matemática, que é a aquisição de conhecimentos e técnicas importantes e úteis e o desenvolvimento progressivo de um espírito lógico e rigoroso.

A Matemática é uma actividade humana, em progresso e mudança como outra qualquer. Mas os critérios de verdade em Matemática são os mesmos há séculos, ou mesmo milénios, apenas sucessivamente mais afinados. Convém portanto não abusar de critérios de historicidade, nem usar vagas referências “históricas” como ilustrando uma alegada contingência temporal da actividade matemática. Se a História da Matemática é para servir para isso, mais vale deixá-la totalmente de lado no ensino: não só se transformaria numa perda de tempo, como prejudicaria seriamente o verdadeiro estudo e aprendizagem da Matemática.

Coimbra, 4 de Outubro de 2007