UNIDADES DE INVESTIGAÇÃO E DEPARTAMENTOS UNIVERSITÁRIOS

João Filipe Queiró
Departamento de Matemática
Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra

Actas do 2º Debate sobre a Investigação Matemática em Portugal
Centro Internacional de Matemática, Coimbra, 2000, p. 27-33.



            Começo por agradecer aos organizadores deste debate o convite para fazer uma intervenção.

            O primeiro problema que se me coloca é o de compreender qual é o tema desta sessão. O título é “Unidades de investigação e Departamentos Universitários”. Mas qual é exactamente o objectivo pretendido, qual é, por assim dizer, a pergunta por trás do título?

            A interpretação razoável é a de que se propõe para discussão o problema de saber se a investigação se deve organizar em centros especificamente para o efeito, ou se essa organização deve coincidir com os departamentos universitários mais ou menos correspondentes às respectivas áreas de estudo.

            Posta esta questão, presumirei que a investigação de que se trata aqui é a feita nas universidades e por universitários, o que, no caso da Matemática em Portugal, pouco ou nada deixa de fora.

            A questão é banal e porventura desinteressante. Já todos pensaram sobre isto, e provavelmente muitos acham que não vale mesmo a pena discutir o assunto, por este se encontrar ultrapassado.

            É, de facto, um pouco assim, mas talvez valha a pena recapitular algumas reflexões em torno do problema. Note-se que não sou de modo algum especialista nestas matérias, nem fiz longos estudos comparativos. Vou apoiar-me simplesmente em alguma experiência e observação, e em pontos de vista que tenho lido ou ouvido de outros.

            No que se segue, restrinjo-me à Matemática. Provavelmente as coisas não se passam exactamente da mesma maneira noutras áreas do conhecimento. Usarei também um traço muito grosso. Vários pontos que abordarei podem evidentemente ser objecto de uma análise mais fina.

            A questão também pode ser abordada pondo ênfase em vários pontos de vista. Por exemplo, o do legislador (ou, se se quiser, do país), o do director de instituição, o do investigador “de base”. Estes pontos de vista, sem serem contraditórios, não são necessariamente coincidentes. Aqui colocar-me-ei sobretudo no primeiro, porque é aí que o problema se põe com mais relevância e generalidade.

 

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            A origem da questão é simples de descrever. As actividades de investigação correntes necessitam hoje em dia de um financiamento específico, com os fins que todos conhecemos: bibliografia, equipamentos, deslocações. Um modelo de financiamento individual, que teria muitas vantagens e é praticado, com variantes, em alguns países, não seria suficiente para acorrer aos vários tipos de despesa. Um financiamento exclusivamente com base em projectos de curta duração criaria muita instabilidade e prejudicaria a continuidade (para já não falar da burocracia). Parece, portanto, fazer sentido um financiamento colectivo e continuado às actividades de investigação. No caso da Matemática, esse financiamento tem sido, como é natural, de origem predominantemente pública.

            Donde a pergunta, que se repete: deve esse financiamento dirigir-se a unidades de investigação, ou centros, especificamente organizados para o efeito, ou deve ele ser canalizado para os correspondentes departamentos universitários?

            Note-se que, em bom rigor, não há nesta matéria um modelo português uniforme. De facto, coexistem em Portugal situações muito variadas. Em várias universidades há praticamente sobreposição entre o departamento e o (único) centro. No outro extremo, há departamentos cujos docentes se dividem por vários centros, podendo estes mesmo possuir instalações próprias fisicamente afastadas dos departamentos. Situações intermédias incluem o caso de departamentos cujos docentes pertencem na maioria a um centro, estando os restantes dispersos por unidades ligadas a outras instituições, ou mesmo fora de qualquer unidade de investigação.

            Estes centros de investigação são financiados quase em exclusivo por dinheiros públicos, canalizados através do Ministério da Ciência e da Tecnologia. Quanto ao Ministério, tem tido uma posição “oficial” sobre o tema desta sessão, a favor do modelo das unidades de investigação formalmente separadas dos departamentos universitários. Essa posição tem sido assumida por duas formas: primeiro, a legislação produzida sobre unidades de investigação; depois, as teses defendidas publicamente em relatórios e declarações oficiais.

            Aqui vem talvez a propósito, até para confundir um pouco as coisas em matéria de posições “oficiais”, referir que também do Ministério da Educação (para além de vencimentos, bibliotecas, etc.) há financiamento específico às universidades consignado em princípio a actividades de investigação. Isto não ajuda muito a perceber a exacta posição do governo como um todo na questão dos financiamentos à investigação, mas adiante.

 

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            No passado recente assistimos à montagem de um sistema essencialmente novo de avaliação das unidades de investigação, com classificações públicas e imediata repercussão no financiamento.

            É necessário dizer que esta avaliação, globalmente considerada, e independentemente deste ou daquele problema prático, é uma coisa boa.

            A constituição de painéis de avaliação com forte presença internacional de alto nível submete o trabalho dos investigadores portugueses a standards de qualidade que, juntamente com os habituais critérios ligados à publicação de trabalhos de investigação, só podem ter um efeito globalmente positivo.

            É claramente positivo que os investigadores em geral, e os universitários em particular, sejam um pouco “abanados” e interpelados a respeito do seu trabalho (ou da falta dele). Tudo o que aumente o grau de exigência dos universitários em relação a si próprios é bem-vindo.

            Por outro lado – e esta é uma ideia que não tenho visto suficientemente explicitada – parece-me que há interesse estratégico das universidades numa avaliação com estas características por outro motivo. Como Portugal é o país das ficções e das aparências – em Portugal uma escola superior, como há dias dizia o Doutor Graciano de Oliveira no Público, é um edifício com uma tabuleta à porta a dizer Escola Superior – é bom tudo o que permita ver as coisas com alguma distância e objectividade.[1]

            Mas a avaliação não são só rosas, e também há problemas associados a estes processos.

            Em primeiro lugar, e rapidamente, não estou convencido de que a “máquina” burocrática não possa ser aligeirada. Embora a disponibilização permanente de muitos documentos pela Internet seja um progresso interessante, já tenho dúvidas, por exemplo, sobre o processo escolhido para a actualização anual das fichas individuais dos investigadores, com um software um pouco rebarbativo e sobretudo não compatível com nenhum programa de base de dados do mercado. Ou seja, é preciso fazer tudo à mão, online. E ainda por cima o Observatório das Ciências e das Tecnologias, organismo do mesmo Ministério, pede periodicamente a mesmíssima informação (em dezenas de fichas) num outro formato electrónico não compatível com o da Fundação para a Ciência e a Tecnologia! Isto é difícil de aceitar.

            Outra questão prática é a própria periodicidade das avaliações. Eu começo a acreditar que três anos é pouco tempo entre avaliações. Três anos era o prazo de vigência de alguns projectos, mas um projecto é por natureza algo de muito limitado no tempo. Uma unidade de investigação é uma coisa mais permanente, de cuja essência faz parte o longo prazo e a continuidade. “Janelas” de três anos tornam a vida dos centros um pouco frenética e estimulam perspectivas de curto prazo. Talvez avaliações quinquenais fossem preferíveis.

            Uma crítica de fundo, mais subjectiva e delicada, é a seguinte. Nestes processos de avaliação, que são complexos e pesados, e envolvem muitos centros, corre-se sempre o risco de cair em análises quantitativas: número de artigos, citações, etc.[2] Disto eu diria, simplificando, que é uma coisa muito americana: a “cultura do paper”, com a concomitante valorização da hiper-especialização.

            Não gostaria de ser mal interpretado. Demasiadas vezes se ouve criticar a “cultura do paper”, dizendo que “Ter muitos artigos só por si não prova competência” – o que é sem dúvida verdade – para logo a seguir se ouvir, numa extraordinária entorse às regras da lógica elementar, que, portanto, “Ter poucos artigos prova competência” (presumindo-se, portanto, que o ideal é não ter nenhum).

            O problema, repito, é o exagero no uso das estatísticas para efeitos de avaliação da qualidade. Creio que todos estaremos de acordo em que não há correlação necessária e absoluta entre o número de artigos de uma pessoa e a qualidade do seu trabalho de investigação.

            Mas ter muitos artigos (independentemente agora de outra complicada questão, que é a da diferença das práticas de publicação entre áreas) tem pelo menos o mérito de revelar capacidade de trabalho. Isto não é despiciendo em Portugal, que além de ser o país das aparências é também o país da preguiça.

            Nos centros, portanto, assistiu-se e assiste-se a incisivos processos de avaliação, com repercussão no financiamento. Quanto aos departamentos, tal não se verificou: houve avaliações, mas sem influência no financiamento, e esta diferença tem contribuído, ou pode vir a contribuir, pela sua dinâmica própria, para algum afastamento entre os dois tipos de instituição.

 

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            A principal ideia que pretendo aqui defender é que este afastamento é muito mau: para o país, para as universidades, e em última análise para os próprios centros.

            O meu principal argumento é a visão que tenho sobre a natureza da profissão de professor universitário. Sobretudo na tradição europeia, um professor universitário é alguém que dedica a sua vida à investigação, ou mais latamente ao estudo, num ambiente de grande liberdade. Numa visão sofisticada das coisas, essa liberdade e independência é de resto vista como um bem, como algo de socialmente muito desejável.

            Ao longo da sua vida, a actividade científica de um professor pode assumir várias formas, por exemplo com a redacção de livros, o interesse pela História e pela divulgação, a coordenação e a avaliação de programas científicos, etc. Mas não deve nunca parar, nem deve surgir como totalmente separada da sua actividade docente.

            Claro que nem todos podemos ser “Homens do Renascimento”, e ser simultaneamente bons e produtivos investigadores puros e aplicados, autores de bons livros, coordenadores de programas de pós-graduação, orientadores de estudantes, eficazes administradores científicos, e pessoas cultas, atentas ao mundo e intervenientes. Mas como ideal não está mal: para imperfeições já bem bastam as da realidade.

            Ao poder favorecer o investimento na publicação rápida e especializada, e a desvalorização da função docente – ou, mais geralmente, pedagógico-cultural – aparecendo os departamentos como meras organizações de ensino (quando não só de ensino de licenciatura), o afastamento dos centros em relação aos departamentos faz correr o risco de enfraquecimento das universidades, e isto não parece de todo desejável.

            Mas também para as unidades de investigação o processo pode ser perigoso. Eu tenho um pouco a ideia de que a investigação de carácter mais académico (isto é, não imediatamente “aplicável” ou “vendável”) – como é a investigação matemática em Portugal – não se sustenta por si no longo prazo. É o que a História parece mostrar, e é o que é lógico num país de economia própria débil. E, portanto, em caso de quebra no financiamento público da investigação, as unidades de investigação matemática afastadas da realidade estritamente universitária poderiam ter problemas de sobrevivência.[3]

            Parece portanto prudente não afastar as actividades de investigação de uma instituição, a universidade, cuja “utilidade social” visível, ou imediata, é menos problemática. Esta ideia incorpora talvez uma visão muito estática das coisas, mas eu estou persuadido de que é irrealista pensar na sobrevivência continuada da investigação matemática fora das universidades,[4] que, aliás, suportam os vencimentos da generalidade dos investigadores portugueses.

            Ligada com esta está a questão dos investigadores a tempo inteiro. Aqui estou de acordo com a ideia repetidamente expressa por várias personalidades do nosso meio científico, no sentido de que, salvo casos muito excepcionais, não faz sentido a ideia do investigador vitalício, em exclusividade, no campo da Matemática.

 

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            Apesar de tudo o que disse até agora, não defendo que deva ser abandonado e extinto, para já, o modelo dos centros distintos dos departamentos. As razões são várias.

            Em primeiro lugar, a situação da gestão universitária em Portugal neste momento não é famosa. A rigidez administrativa, para além do poder e a importância de órgãos, a vários níveis, com composição muito defeituosa, bastaria para concluir que seria errado entregar às universidades a gestão dos dinheiros da investigação.

            Depois, põe-se um problema um pouco intangível de “cultura”. A liberdade dos professores acima referida, que é desejável para a universidade e socialmente valiosa, tem que ser acompanhada por uma cultura de exigência permanente. A liberdade é uma das condições de funcionamento da instituição universitária, mas um pouco de insegurança é muito estimulante. E os centros, com o ambiente criado em torno deles, podem contribuir para essa “insegurança”, embora sem exageros.

            O grande problema é achar a medida justa para os professores universitários se sentirem interpelados, estimulados a estudar, a escrever, etc. Estamos aqui, repito, no domínio dos intangíveis: as instituições de grande sucesso científico são aquelas em que existe uma cultura, tantas vezes implícita, de estudo permanente, e uma consciência profunda de que essa é a missão à qual tudo o resto se deve subordinar.

            No outro sentido, os centros poderão receber da instituição universitária a ideia de que a estatística dos papers não é tudo, e de que o ensino e a cultura são essenciais para os próprios cientistas.

 

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            Logo, sem prejuízo de tudo o que disse, e devendo manter-se os mecanismos complementares de financiamento referidos no início, tudo aponta para alguma convergência, ou pelo menos para a recusa de um afastamento excessivo entre departamentos universitários e centros de investigação, no interesse de ambos. Os fins das unidades de investigação e dos departamentos não são exactamente os mesmos, mas também não são disjuntos, e muito menos contraditórios. Seja qual for o estatuto respectivo, é bom que haja um entendimento e uma colaboração próximos entre os dois tipos de instituição (nomeadamente com intervenção dos centros na organização universitária). A prazo, será de questionar um modelo de avaliação e financiamento que, nos seus pressupostos e na sua concretização, parece apontar em sentido contrário.





[1] Note-se que não estou a dizer que a cultura das aparências é a cultura do meio matemático português, mas não há dúvida de que ela passou a ser um problema do país em matéria de ensino superior.

[2] Não estou a dizer que essa é uma intenção declarada dos avaliadores. De resto, o “guião” da avaliação até é explícito na recusa disso. Afirmo apenas que é um risco que se corre.

[3] Recordo aqui as palavras do Ministro da Ciência e Tecnologia na sessão de hoje de manhã: a batalha pelo financiamento público continuado da investigação fundamental está longe de estar ganha na Europa. Ora a obrigação do universitário é pensar a prazo e para além das conjunturas.

[4] Isto é diferente noutras áreas, por exemplo Química, Bioquímica, Informática, etc.