O triunfo da ignorância
João Filipe Queiró
Público, 17 de Julho de 2021, p. 14.



As mudanças anunciadas no ensino da Matemática vão no sentido do triunfo da ignorância dos jovens, pela desistência de lhes transmitir o conhecimento matemático acumulado e apurado durante séculos ou milénios.

A espécie humana é a única que transmite conhecimentos de geração em geração. Um cão ou um gato de hoje sabem o mesmo que um cão ou um gato de há mil anos. Um cão ou um gato aprendem alguma coisa durante a sua vida mas não há transmissão acumulada às gerações seguintes; estas recomeçam o mesmo processo sempre de novo.

A transmissão de conhecimentos é o que distingue os humanos e processa-se essencialmente no contexto da família e da escola.

Em matéria de acção governativa, uma política educativa consistente faz perder votos, não ganhá-los. Os resultados positivos de uma tal política só se vêem vários anos depois, o que faz desaparecer o seu valor nos cálculos eleitorais de muitos dirigentes partidários. Fica assim aberto o caminho para os erros.

Só se encontra genuína preocupação com as questões educativas entre alguns dos que estão na linha da frente – as famílias e os professores – e em quem pensa o país a prazo, incluindo os economistas, que bem observam nos seus estudos as consequências dos baixos níveis de qualificação da população.

Vem isto a propósito das mudanças anunciadas no ensino da Matemática em Portugal. Abrevie-se, já que os factos e as posições principais estão à vista de todos (artigos neste jornal, incluindo um da responsável pelas propostas de mudança, e parecer da Sociedade Portuguesa de Matemática): essas mudanças vão no sentido do triunfo da ignorância dos jovens, pela desistência de lhes transmitir o conhecimento matemático acumulado e apurado durante séculos ou milénios. A Matemática, a linguagem da ciência, é de resto quase única entre as áreas do conhecimento na sua permanência ao longo do tempo. A sua transmissão é agora substituída por pseudo-matemática supostamente mais próxima dos “problemas do quotidiano” e dos interesses dos alunos, na qual pouco ou nada se aprende e da qual pouco ou nada fica. A própria palavra “transmissão” passou a ser contestada.

Uma questão crucial é: porquê? Como pode haver quem proponha e defenda militantemente políticas educativas que vão traduzir-se no triunfo da ignorância dos jovens? Ao contrário do que podem afirmar os teóricos da conspiração, a razão não é uma vontade escondida de promover a ignorância da população para melhor a dominar.

Não, as razões são outras e muito simples. São essencialmente duas. Primeiro, a instalação do pós-modernismo há umas décadas fez nascer em alguns meios universitários ligados à educação e didáctica uma atitude de desvalorização do conhecimento (em todas as áreas), visto como parte das grandes narrativas passadas que se desmoronam.

A segunda razão tem que ver com o ambiente dominante nas escolas públicas portuguesas, um ambiente difícil, turbulento, com graves problemas de indisciplina. As escolas são institucionalmente fracas e não têm instrumentos que lhes permitam contrariar esse ambiente. Os professores ficam sozinhos perante as turmas, perante jovens desinteressados e agarrados aos telemóveis. Num tal contexto, que é tudo menos propício à concentração, ao estudo, à aprendizagem, são bem-vindas as doutrinas que racionalizem o falhanço, que desvalorizem o conhecimento, que aconselhem a “negociar” com os alunos o que eles querem aprender e como.



Sinal seguro da implantação dessas doutrinas são os slogans sobre “colocar o aluno no centro do processo de aprendizagem”, ver os professores como “facilitadores das aprendizagens”, “adaptar o ensino ao contexto e aos interesses do aluno” (como se, no coração da missão da escola, não estivesse, precisamente, levar o aluno a transcender o seu contexto). Um slogan novo diz que “A Matemática é um direito de todos”. Face ao que agora se propõe, isto é o mesmo que dizer que “A habitação é um direito de todos” e depois promover a construção de tendas esburacadas no meio do deserto. Pode haver correcções e melhorias a fazer nos objectivos, nos programas e nas metodologias activas mas não as que se anunciam.

Estas ideias não são de esquerda nem de direita, ao contrário do que pensam muitos jornalistas e observadores. As concepções acima referidas são tão fáceis e convenientes que encontram em todos os partidos terreno fértil para se expandirem.

Por ser um país ainda frágil em matéria de qualificações da população, Portugal deveria combater as doutrinas e as políticas que conduzem à ignorância. Daqui a 50 anos, se os indicadores educativos portugueses estiverem próximos dos do Norte da Europa, o país poderá baixar a guarda. Por enquanto, não.