A INTERNACIONALIZAÇÃO DA MATEMÁTICA E DOS MATEMÁTICOS PORTUGUESES

 

 

Ana Bela Cruzeiro

Grupo de Física Matemática da Universidade de Lisboa

Departamento de Matemática da FCUL

 

Quando, há uns tempos atrás, a organização do C.I.M. gentilmente me propôs o tema da Internacionalização para aqui vir falar em Coimbra, o meu pensamento imediato foi: mas haverá hoje ainda alguma coisa a dizer sobre o assunto? Não será um conceito óbvio, vivido quotidianamente, hoje que estamos na era da Internet, da globalização, hoje que vivemos num mundo onde viajar nunca foi tão fácil, hoje enfim que somos parceiros de parte inteira da Europa comunitária? Não o vimos mesmo tornado prioritário no programa do Governo, em particular do Ministério da Ciência e da Tecnologia? Que dizer mais, então?

Claro que poderemos entender o tema como sendo o da história da nossa internacionalização, longa história essa sobre o isolamento de um país, e consequentemente da sua comunidade científica. E a nenhum português escapará a ligação entre o isolamento e o atraso científico e tecnológico de que há muito padecemos. Nenhum outro argumento houvesse, bastaria este para demonstrar que a internacionalização é condição necessária do progresso. Mas não me pareceu ser de história que me era sugerido falar. Facilmente se teria encontrado alguém mais competente na matéria.

E ainda por cima Internacionalização da Matemática, linguagem universal por natureza, a cuja universalidade a Matemática deve precisamente o lugar de privilégio que ocupa entre as ciências! Demais ainda Internacionalização dos matemáticos portugueses, tão habituados que estão nestes últimos anos a ouvir falar dela, a vivê-la. Será que não me era possível falar sobre outro assunto? Um qualquer que por aí tivessem ainda por distribuir? Não. Este mesmo me calhava.

Um pouco mais de reflexão, juntamente com a ajuda de colegas cuja experiência nestas andanças dos debates, já para não falar no talento, são bem superiores aos meus, levou-me lentamente à conclusão que afinal a Internacionalização não era um assunto tão trivial assim.

Sendo a Matemática uma linguagem universal, em que medida ela é influenciada pela cultura e em particular pela estrutura linguística de cada nação ? Existe de facto uma matemática francesa, uma matemática inglesa, uma outra que denominamos matemática russa. Ou seja, existem estilos, tradições de pensamento, diferentes formas de encarar a Ciência nas escolas de Matemática dos diversos países. Mas eu entendo que, ao contrário de outras vertentes da cultura, na Matemática tal fenómeno não está ligado a questões de nacionalidade. Acredito que um matemático de origem chinesa, que faz os seus estudos superiores e se inicia à investigação num país como a França, por exemplo, sentirá, profissionalmente falando, mais afinidades com matemáticos saídos de escolas francesas do que com os seus compatriotas formados na própria China.

Acredito no fundo que o conceito relevante aqui é o de "Escola". E as Escolas criam-se em torno de um ou mais matemáticos com ideias originais para a sua época, a quem são dados os meios para desenvolver os seus pontos de vista, que deixam um marco na História da Ciência e produzem gerações de discípulos que desenvolvem o seu trabalho no sopro inspirador dos fundadores da referida Escola.

Pode parecer, a quem tenha estado no lº Debate organizado pelo C.I.M., que estou a repisar no assunto de que falei nessa altura (Escolas de Matemática). Mas por acaso não estou, acredito sinceramente que os dois assuntos são indissociáveis.

Existe, apesar de tudo, pelo menos uma característica nacional, que nunca encontrei em nenhum outro país dito desenvolvido. É esta nossa convicção, vinda vá se lá saber de que profundezas imemoriais, de que, no fundo, no fundo, não somos capazes. Ou por outra, não somos tão capazes como outros lá fora. Tem esta nossa desditosa característica dois tipos de manifestação exterior. Uma é o discurso que admite mais ou menos explicitamente a falta de capacidade e se é levado a concluir que, sendo assim, melhor será que nos fiquemos entre nós, com uma ou outra viagenzita ao estrangeiro (para arejar, ou talvez para melhor nos assegurarmos das convicções que entretanto se vão transformando em factos) e que afinal estamos bem por aqui, com a nossa mediana discente, os nossos ineficientes serviços, as nossas instituições obsoletas. A outra, face da mesma medalha, é a atitude que na recusa de admitir o que nos vai na alma, se esconde por detrás de um orgulho balofo, do género do dos nobres cavaleiros ainda muito jovens ("mostrem-me já os nossos inimigos"). Leva esta atitude a um discurso do tipo não precisamos do mundo exterior, nós somos auto-suficientes e levaremos sós e seguramente o país a um destino grandioso.

Dirão alguns que estas convicções nos vêm do tempo da ditadura. Por mim, estou crente que a ditadura se pôde instalar devido a este género de convicções.

Como fazer então para viver no mundo em que afinal vivemos, um mundo onde a Ciência poderá continuar a ser um sonho puro de procura da verdade mas a actividade científica é, fatalmente, uma actividade de competição?

A tradição das Escolas de Matemática remonta ao século XIX, em Paris, graças à constituição da Escola Politécnica e posteriormente da ENS, aos centros criados na Alemanha, à escola de Cambridge em Inglaterra, etc. Não tendo nós uma tradição análoga, olhemos para países de mais novos mundos, tal como os Estados Unidos. O desenvolvimento da Matemática aí, iniciado através da criação de revistas e do envio de estudantes aos grandes centros europeus, foi de facto consolidado com a radicação de matemáticos vindos de aquém-mar. Beneficiaram certamente os Estados Unidos de conjunturas de ordem política que levaram esses matemáticos a partir dos seus próprios países, mas só o empenho americano em os receber e lhes oferecer boas condições de trabalho tornou possível a sua integração.

Um pequeno país como o nosso tem, no meu entender, várias escolhas possíveis para o seu futuro. Uma é não aspirar a nenhum papel de relevo na competição científica internacional, viver ao sabor dos ventos, como, finalmente, tem estado a viver. Uns integram-se em escolas de outros países, lá ficando, outros voltam mas conservam bem fixo o cordão umbilical, outros ainda estão por cá fazendo o que podem. Tudo isto num banho cosmético de internacionalização que consiste numas idas e vindas, que só nos fazem bem a todos. E quanto a vindas, não é difícil convencer mesmo um "rato de biblioteca" a fazer uma pausa e vir dar umas conferênciazitas num lugar assim, cheio de sol, à beira-mar plantado.

Apesar do tom que naturalmente parecerá sarcástico, esta escolha não me parece ridícula nem sequer insensata. O país progredirá pela força das coisas e nenhum mal virá ao mundo por este lado.

Uma segunda possibilidade é a de, não tentando criar ou fortalecer em Portugal nenhuma escola, se apoie a ligação dos grupos de investigação existentes com escolas centralizadas noutros países, se faça um maior intercâmbio de estudantes e professores. Também esta me parece uma opção saudável e que dará certamente os seus frutos.

Finalmente, a escolha ambiciosa: fomentar a criação de escolas de Matemática em Portugal.

Tem esta opção muitos pressupostos, nomeadamente:

  1. Que se incentive a real mobilidade dos investigadores, bem como a contratação por prazos longos de matemáticos de prestígio, experientes, capazes de lançar uma linha de investigação e de "fazer escola" entre nós.
  2. Que se discutam e definam políticas científicas para o país. Esta discussão deve, a meu ver, ser feita com os mais significativos representantes da nossa comunidade matemática e deverá partir da iniciativa de uma associação supra ou inter-universitária.
  3. Que se preparem mais e melhor os nossos jovens para a competição que os espera; ora isso não parece, à primeira vista, compatível com a desejada democratização (e consequente massificação) do ensino.

Este último ponto é, no entanto, um dos pontos cruciais. Porque tem a ver com todos os níveis de ensino, do secundário à pós-graduação. Porque aponta, no meu entender, para a necessidade de criação de estabelecimentos de ensino de "elite". E, ultrapassado o eventual sobressalto que esta palavra provoque, facilmente se reconhece que não é razoável administrar em massa um ensino virado para a investigação, nomeadamente em Matemática. Não é lícito formar gerações de estudantes ignorando as funções que eles virão a desempenhar na sociedade. Mas é justo, e penso ser nosso dever, encorajar, encaminhar, e dar as melhores condições que consigamos àqueles que têm o talento e o desejo de se dedicar à Ciência.