A INTERNACIONALIZAÇÃO DA MATEMÁTICA E DOS MATEMÁTICOS PORTUGUESES

 

 

Pedro Freitas

Centro de Análise Matemática, Geometria e Sistemas Dinâmicos do Instituto Superior Técnico, UTL

Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico, UTL

 

 

Um dos problemas mais famosos da matemática teve a sua origem na Grécia antiga, foi formulado de forma precisa na França do século XVII, teve contribuições importantes de um suíço, uma francesa, dois alemães, dois japoneses, um americano, e foi resolvido no final do século XX por um inglês emigrado nos Estados Unidos. Penso que não há mais nenhum ramo da ciência onde seja possível encontrar este tipo de situação e, deste ponto de vista, a matemática é claramente tão internacional quanto o é possível ser, tanto no espaço como no tempo.

Por outro lado, a matemática não é uma ciência fechada mas sim uma linguagem universal que está associada a praticamente todos os ramos da ciência de um modo ou doutro, e demonstra portanto uma rara capacidade de permear as diferentes facetas do conhecimento humano.

No entanto, parece-me que esta capacidade de atravessar fronteiras tende a ser extremamente relativa. É perfeitamente possível argumentar que apenas uma muito pequena percentagem dos matemáticos foi afectada directamente pela resolução do problema mencionado acima e que, com a diversidade existente hoje em dia, esta será a regra, provavelmente sem excepções. E se pensarmos na globalidade da população então é óbvio que esta influência é ainda menor, apesar de, excepcionalmente, a resolução de um problema da matemática ter, neste caso, tido honras de primeira página.

Estas duas características podem ser condensadas na seguinte Proposição: A matemática é intrinsecamente internacional, mas essa propriedade só é observável num conjunto de medida nula.

Claro que não se pode esperar que haja uma percentagem significativa da população que seja capaz de acompanhar os últimos desenvolvimentos importantes na matemática, tal como não é de esperar que isso aconteça em relação a outras disciplinas como a física, genética, etc.. É portanto possível argumentar que sim, de facto pode-se afirmar que neste sentido a internacionalização da matemática é relativa, mas tendo em conta que isso não poderia ser de outro modo e que sucede o mesmo noutros ramos da ciência, o que se está a dizer é uma trivialidade. Ou ainda que se está a trabalhar no espaço errado, no sentido em que se calhar se deve apenas considerar uma parte da população com um certo grau de educação.

Isso será em parte verdade, mas basta olhar para um jornal diário (português ou estrangeiro) para se verificar que as descobertas científicas que são notícia só muito raramente estão relacionadas com a matemática, apesar de quase diariamente se mencionarem factos que vão desde ovelhas escocesas até à expansão do universo. Mesmo em revistas de divulgação científica, o mais provável é a matemática estar relegada para uma rúbrica de curiosidades ou divertimento, e, mais uma vez, apenas raramente se poderá encontrar um artigo onde sejam relatadas, por exemplo, as últimas descobertas sobre estruturas diferenciáveis não-standard em IR4.

Posto de outro modo, existe uma separação entre a investigação fundamental em qualquer ramo da ciência e o público em geral, e esse fosso é mais profundo e visível em alguns casos, entre os quais se inclui a matemática.

Chegados aqui, a questão óbvia é saber se de facto isto é importante e, caso o seja, se é possível modificar a situação. Em relação à primeira parte, limito-me a citar dados mencionados no número das Notices of the American Mathematical Society de Março de 2000, onde se pode ler que em países como a Alemanha e os Estados Unidos o número de alunos que optam por um curso superior de Matemática tem vindo a diminuir significativamente nos últimos anos (nos Estados Unidos, por exemplo, entre 1992 e 1998 o número de alunos nas licenciaturas de matemática decresceu 20%). As razões por detrás deste decréscimo não são totalmente óbvias, mas penso que um divórcio cada vez maior entre os matemáticos e o público não ajudará certamente a resolver o problema.

Além disso, esta situação também corre o risco de se reflectir a certa altura na relação entre a comunidade matemática e as entidades que controlam o financiamento da investigação, com as consequências que são de esperar. Estas já são aliás bastante visíveis em alguns países, como é fácil de constatar por quem visitar bibliotecas de algumas universidades e vir a lista de assinaturas de revistas canceladas desde os anos oitenta.

Ou seja, apesar de ser verdade que a matemática é universal e de se tratar de um domínio fundamental do conhecimento humano, não devemos simplesmente assumir que isso é um dado adquirido pelo resto da população. Caso contrário, corremos o risco de um dia acordarmos transformados numa simples empresa de catering que fornece um serviço a outros departamentos da universidade. Ou nem isso.

Obviamente nada disto é novo e os matemáticos têm a noção da situação. Mas, por outro lado, é também característico de muitos investigadores pensar que a sub-área em que trabalham é fundamental e tender a ignorar um pouco a relação com o resto do mundo.

O seguinte episódio talvez sirva para ilustrar alguns destes pontos. Um matemático queixava-se, a propósito da visita recente ao seu país de um físico importante, que este havia sido entrevistado para um programa de divulgação científica na rádio, mas que quando o visitante era um matemático famoso ninguém parecia interessar-se. Um outro matemático que estava presente, um analista, disse que os matemáticos não se podiam verdadeiramente queixar senão deles próprios, e que já tinha havido períodos durante os quais tinha havido um interesse maior pela matemática. Como exemplo, citou os anos que se seguiram à segunda guerra durante os quais os matemáticos gozaram de uma reputação semelhante à dos físicos devido às diversas aplicações militares. "Como consequência, disse o analista, em países como os Estados Unidos houve um grande interesse institucional em desenvolver a matemática, tendo sido disponibilizada uma grande quantidade de fundos para financiar a investigação. E o que é que fizeram os matemáticos? Pegaram no dinheiro e fundaram centros de topologia algébrica!"

Claramente que ao dizer isto este analista não pretendia nem implicar que os matemáticos só devem trabalhar em áreas aplicadas (e muito menos com aplicações militares), nem isolar a topologia algébrica como a raiz de toda a incompreensão de que se queixam os matemáticos. Apenas mostrar que pode haver uma separação clara entre os interesses dos matemáticos e aquilo que a sociedade espera deles.

 

Há pois que encontrar um equilíbrio entre fazer a investigação que cada um acredita ser interessante, estabelecer ligações com outros ramos da ciência, e, dentro do possível, transmitir ao público interessado a noção do que é na realidade fazer matemática. Só se conseguirmos estes objectivos é que poderemos dizer que a matemática não conhece fronteiras.

 

Nacionalismos

Ao se falar da internacionalização da matemática, há um aspecto que embora talvez secundário deve ser mencionado e o qual tem a ver com o facto de ser possível associar a diferentes países diferentes modos de fazer matemática.

Embora previsões a posteriori sejam sempre perigosas, penso que não será muito conflituoso afirmar que só muito dificilmente o conceito Bourbaki poderia ter surgido em países como a Alemanha, os Estados Unidos ou a Rússia. Por outro lado, e de um ponto de vista mais prático, ouvi uma vez um matemático russo dizer no princípio de um seminário que não lidava com problemas que permitissem uma formulação variacional, uma vez que nesse caso qualquer matemático italiano conseguiria resolver o problema melhor e mais depressa do que ele.

Apesar destes dois exemplos serem mais ou menos irrelevantes, a ideia é que todos vemos imediatamente o que está por trás de cada um, e fazemos instintivamente as associações que estão implicadas. Ou seja, em muitos países existem tradições muito fortes de investigação em certas áreas e, em muitos casos, há também aspectos culturais que acabam por permear o modo como funciona a investigação.

Apesar da pseudo-globalização que se vive hoje em dia, penso que estes aspectos ainda não desapareceram, e não é claro que venham a desaparecer totalmente. Seria, no entanto, interessante estudar os efeitos que o aparecimento do e-mail e da internet tiveram sobre a investigação em matemática, ao permitir a matemáticos em diferentes partes do mundo trocarem ideias rapidamente e de um modo prático.

 

O caso português

Não me parece claro que em Portugal tenha alguma vez existido algo a que se possa dar o nome de uma escola portuguesa. Terá certamente havido casos isolados de investigadores que produziram trabalho importante, e até, nalguns casos, terá havido um esboço de escola. Mas se por escola se entender, por exemplo, um grupo de matemáticos bastante forte numa área, reconhecidos como um todo a nível internacional, e que atravesse algumas gerações sobrevivendo claramente aos seus fundadores, então parece-me que nada disto existe ainda ou existiu no nosso país. Não está aqui em causa criticar o trabalho que foi realizado no passado. Ninguém negará os esforços individuais desenvolvidos ou a qualidade de alguns investigadores e mesmo de alguns grupos. Mas o que é um facto é que, depois de feitas as contas, praticamente só podemos falar de casos isolados e Portugal acaba por não ter muito para mostrar. Certamente que não há comparação possível com países como a Holanda, a Hungria, a Suécia ou a Suíça, para mencionar apenas casos de dimensão comparável à de Portugal.

Na minha opinião, o problema reside no facto de nunca ter havido uma estrutura a nível nacional orientada para a criação de condições que proporcionem a possibilidade de uma produção científica sistemática infelizmente, isto não é um exclusivo da matemática. E as falhas são muitas:

Não existe uma tradição forte de formação de doutorados: quantas universidades é que têm de facto um programa de doutoramento, e não funcionam apenas numa base puramente arbitrária?

Não existem praticamente programas de pós-doutoramento: quantos pós-doutoramentos é que foram feitos em Portugal?

Não existe uma tradição de circulação: desconheço a taxa de inbreeding nas universidades portuguesas mas presumo que seja escandalosa.

Não existe uma tradição forte de publicar e, em muitos casos, o doutoramento é visto como um fim e não como um princípio.

Felizmente que nos últimos quinze a vinte anos muito disto tem mudado. Em particular, e para ultrapassar os problemas mencionados, houve muitos departamentos que optaram por enviar os seus assistentes para universidades estrangeiras para a obtenção do doutoramento. Isto foi em parte tornado possível pela sistematização do financiamento de actividades de investigação a nível nacional, e deu origem a uma comunidade de docentes com experiências diferentes, vários contactos a nível internacional e, espera-se, uma aversão generalizada à estagnação.

No entanto, e para além de ainda ser muito cedo para ver os verdadeiros efeitos desta opção, é também necessário ter a consciência que se tratou apenas de um primeiro passo. Apesar de ser da opinião que se deve continuar a fomentar a realização de doutoramentos e pós-doutoramentos de investigadores portugueses no estrangeiro, um dos objectivos a médio prazo deve ser a existência de um número significativo de departamentos de matemática em universidades portuguesas com programas de doutoramento e pós-doutoramento capazes de atrair estudantes estrangeiros.

Para que isto seja possível, é necessário que os matemáticos portugueses sejam visíveis a nível internacional, o que só poderá acontecer se houver um ritmo regular de publicação de resultados. Claro que há outros aspectos em que se deve investir, como a realização de encontros internacionais, o convite a investigadores estrangeiros, a divulgação de resultados em conferências, etc.. Além disso, publicar em quantidade não é certamente sinónimo de qualidade. Mas é, no meu entender, um pré-requisito quando se está a falar de um país inteiro e não apenas de um investigador.

Obviamente que não é possível discutir estes aspectos sem mencionar as condições que são proporcionadas aos investigadores. Aqui devo dizer que o sistema actualmente em vigor nas universidades portuguesas me parece completamente desprovido de sentido. Menciono apenas um exemplo: um professor no topo de carreira não tem nenhum incentivo exterior (que não tem de ser necessariamente financeiro) para continuar. Ou seja, em Portugal empregar um detentor de uma medalha Fields na universidade é exactamente o mesmo que empregar alguém que se limita a cumprir o mínimo estipulado pelo estatuto da carreira docente, no sentido em que o modo como estas duas pessoas são encaradas pelo sistema é exactamente o mesmo: a medalha Fields é invisível. Sem uma abordagem deste e doutros aspectos relacionados com o modo de funcionamento das universidades, o estatuto da carreira docente, etc., só muito dificilmente se poderá de facto tornar o país competitivo do ponto de vista científico.