A natureza da Matemática[1]
A questão do que é hoje um bom ensino da Matemática não é uma questão
pacífica. Tem diversas respostas dependendo das finalidades da educação
privilegiadas, que variam consoante os contextos sociais, políticos e culturais
onde a questão é colocada, que se relacionam com as perspectivas psicológicas e
sociológicas sobre a aprendizagem em que nos situarmos. No entanto, diversos
matemáticos, filósofos e educadores salientam, cada vez mais, que a concepção
que se sustenta sobre a Matemática influencia profundamente o que se considera
ser desejável relativamente ao seu ensino e aprendizagem. Assim sendo, como
Hersh escreve num artigo publicado em 1986, a questão não é então qual a melhor
maneira de a ensinar, mas o que é realmente a Matemática.
Ao pretender fazer-se um cômputo geral da Matemática que revele os seus
factores essenciais e explique como é que os seres humanos são capazes de a
fazer, torna-se difícil organizar os diversos aspectos num
todo coerente. De facto, a simples pergunta “afinal o
que é a Matemática” tem sido, ao longo dos tempos, objecto de diversas
tentativas de resposta. E os problemas acentuam-se quando se pretende
identificar os objectos das suas teorias. A Matemática é o conhecimento de quê?
Esta questão filosófica, apesar de ser tão antiga quanto esta ciência, tem
gerado, desde sempre, inúmeras controvérsias.
Constitui, pois, um desafio conceber um balanço que abarque a complexidade
e o carácter multifacetado da Matemática enquanto actividade e corpo de conhecimentos.
Este desafio é acrescido se se tiver em conta que ela não tem permanecido igual
a si própria ao longo dos tempos. Pelo contrário, tem sofrido um processo de
evolução constante no qual se detectam mudanças profundas nalguns dos seus
aspectos mais essenciais. Sistema organizado, linguagem, instrumento,
actividade, são diversas perspectivas segundo as quais a Matemática tem sido
encarada. Axiomatização, formalização, dedução, são o essencial para alguns e
apenas uma parte, nem sequer a mais importante, para outros.
Tradicionalmente, a epistemologia da Matemática procura responder a
questões relacionadas com a lógica interna de produção do saber, adquirindo as
respostas, frequentemente, um carácter prescritivo. Procura-se garantir a
certeza do saber matemático e discute-se a natureza e os fundamentos desta
ciência. No entanto, uma reflexão limitada a estas questões falha em
localizá-la num contexto mais amplo do pensamento humano e da história.
Se a Matemática for descrita em termos dos seus conceitos, características,
história e práticas, abre-se espaço para que a filosofia da Matemática, para
além de reflectir sobre questões internas relativas ao conhecimento matemático,
sua existência e justificação, se debruce também sobre questões externas
relacionadas, nomeadamente, com a origem histórica e os contextos sociais de
produção desse conhecimento. A actividade matemática poderá, assim, ser
discutida como parte integrante da cultura humana em geral.
Neste capítulo reflecte-se sobre a natureza da Matemática,
procurando enquadrar esta dualidade relativa a aspectos internos e externos da
produção do saber. Numa primeira secção, abordam-se questões relacionadas com a
natureza dos objectos matemáticos e discute-se o papel da experiência e da
razão na génese e desenvolvimento da Matemática. Tendo por contexto uma
perspectiva histórica, refere-se, numa segunda secção, a origem da Matemática e
questiona-se a intemporalidade e o carácter absoluto atribuídos,
frequentemente, à verdade, certeza e rigor matemáticos. A terceira secção
incide sobre um período recente, particularmente importante para a filosofia da
Matemática, caracterizado pela pesquisa de fundamentos seguros. Na quarta
secção consideram-se direcções actuais da filosofia da Matemática e analisam-se
aspectos da actividade matemática enquanto fenómeno social e cultural. Este
capítulo termina com uma quinta secção, dedicada à experiência matemática, onde
se referem algumas vertentes do processo de criação desta ciência,
nomeadamente, a sua face extra-lógica e o contributo do computador para
produção do saber matemático.
2.1 - Génese e
natureza do saber matemático
2.1.1
- Natureza dos objectos matemáticos
Qual a natureza dos entes matemáticos, ou seja, a Matemática estuda o quê?
Esta questão é abordada através de dois prismas de análise. Um, relacionado com
a imaterialidade dos objectos matemáticos. Outro, que procura olhar estes
objectos na sua relação com o sujeito que os conhece ou procura conhecer.
Imaterialidade dos objectos matemáticos
Os textos antigos, provenientes das primeiras civilizações orientais do
Egipto e Babilónia, são demasiado fragmentários para permitir seguir, ao
pormenor, o processo de constituição de uma aritmética e de uma geometria. No
entanto, mostram claramente que os conceitos que aí intervêm “dizem respeito
apenas a objectos concretos: enumeração
de objectos de um amontoado, medida de grandezas susceptíveis de adição e
subtracção, como comprimento, área, volume, peso, ângulo, para cada uma das
quais se toma uma unidade e muitas vezes os seus múltiplos ou submúltiplos”[2].
Mais tarde, a partir do século V, surgem, com os pensadores gregos, as
primeiras demonstrações e com elas a necessidade de precisar noções como
figura, posição, grandeza, quantidade e medida. Platão mostra claramente que
estas palavras não designam noções da experiência sensível, referindo que os
matemáticos se servem de figuras visíveis para estabelecerem raciocínios,
pensando, contudo, não nelas mas naquilo com que se parecem. Aristóteles não
deixa de apoiar a ideia da imaterialidade dos objectos matemáticos, referindo,
em particular, que as investigações dos matemáticos incidem sobre coisas
atingidas por abstracção, de que são eliminadas todas as qualidades sensíveis
como o peso, leveza ou dureza. Também Euclides, em quem vemos pela primeira vez
desenvolvidas, segundo o método dedutivo, as propriedades dos objectos
matemáticos concebidos por Platão e Aristóteles, não deixa qualquer dúvida
quando ao facto de ter atribuído a ponto, recta, ângulo, círculo e polígono, o
carácter de objectos de pensamento.
Constata-se assim que, pelo menos desde Platão, os matemáticos têm
consciência de que os objectos
sobre os quais raciocinam,
embora tendo nomes idênticos aos que intervêm em cálculos práticos (números,
figuras geométricas, grandezas) são seres completamente diferentes, seres
imateriais obtidos por abstracção, a partir de objectos acessíveis aos
sentidos, mas de que deles são apenas “imagens”. Esta foi, aliás, uma das
grandes ideias originais dos gregos: a atribuição às noções matemáticas do
carácter de objectos de pensamento.
Até ao século XVIII, os matemáticos, apesar de reconhecerem a
imaterialidade e o carácter ideal dos seres com que trabalhavam, tinham deles imagens acessíveis aos sentidos. No entanto, a partir
dessa altura, para conseguirem novos progressos, necessitaram de introduzir
novos objectos matemáticos que deixaram de apoiar-se em “imagens” sensíveis.
Aos poucos vai-se delineando uma ideia que será aprofundada no século XX: a
ideia de estrutura na base de uma teoria matemática. Esta ideia relaciona-se
com a constatação de que numa teoria matemática mais importante do que a
natureza dos objectos que aí figuram, são as relações entre esses objectos,
podendo acontecer que em teorias diferentes haja relações que se exprimam da
mesma maneira.
A discussão da existência de objectos matemáticos no
mundo físico pode proporcionar, como evidencia Sebastião e Silva (ver página
seguinte), um contexto favorável ao debate, na sala de aula, de um dos aspectos
fundamentais da Matemática — o das suas relações com a natureza.
Matemática: Descoberta ou invenção?
A existência de objectos matemáticos é ou não independente do sujeito que
os estuda? Para responder a esta questão contrastam-se, tradicionalmente, duas
concepções: concepções idealistas e concepções realistas.
O idealismo, enquanto perspectiva
filosófica, insiste em que toda a realidade matemática é condicionada pelas
construções dos matemáticos que inventam essa realidade. Neste âmbito, os
objectos matemáticos são livres invenções do espírito humano, que não existem
autonomamente e que possuem, apenas, as propriedades que o pensamento puder
determinar.
O realismo supõe a realidade de
um universo matemático autónomo. Os objectos têm propriedades próprias que
existem independentemente do sujeito. O homem não inventa esta realidade
objectiva que lhe é exterior. Limita-se a descobri-la.
O realismo, enquanto perspectiva filosófica, tem por base a doutrina de
Platão, sendo frequente, no âmbito da filosofia da Matemática, considerar
sinónimos os termos realismo e platonismo. Para o platonismo os objectos
matemáticos são reais, embora não sejam objectos físicos ou materiais. A sua
existência é um facto objectivo, totalmente independente do nosso conhecimento.
Existem fora do espaço e do tempo, são imutáveis, não foram criados e não
mudarão nem desaparecerão. Assim, a Matemática tem uma existência autónoma,
obedecendo a uma lógica e leis internas. A actividade de fazer Matemática
consiste na descrição e descoberta desses objectos, bem como das relações que
os unem. Quer uns, quer outras, uma vez que são pré-existentes, podem ser
descobertos pelo espírito, mas não inventados por este.
O platonismo e o idealismo, embora se situem em posições extremas quanto à
questão da existência e realidade dos objectos matemáticos, estão muitas vezes
presentes, em simultâneo, no pensamento dos professores de Matemática. Por um
lado, a Matemática é vista como uma revelação, como uma passagem do concreto ao
abstracto, mas, por outro lado, o professor espanta-se com a sua aplicabilidade
à
Diálogo sobre a
existência de entes geométricos no mundo físico
Pergunta dirigida aos alunos:
Afinal o que é um ponto, o que é uma
recta, o que é um plano - na verdadeira acepção destes termos?
Na melhor das hipóteses obtém-se a resposta cómoda habitual (...):
Trata-se aí de termos primitivos,
isto é de termos que não são definidos logicamente a partir de outros.
Mas o professor não deve de modo nenhum contentar-se com esta resposta.
Deve sim voltar à carga:
Também os termos “gato”, “rosa”,
etc. são termos primitivos, no mesmo sentido, e no entanto todos sabem
reconhecer um gato, uma rosa etc. Ora quem é que já viu um ponto, uma recta ou
um plano?
Os alunos terão de admitir que ninguém viu tais coisas. Mas há que
lembrar-lhes:
Também ninguém viu ou espera ver
centauros, sereias ou dragões. Todos sabem que não existem seres vivos com os
atributos que estes nomes invocam: trata-se de meras criações da fantasia
humana. Pois serão as figuras geométricas, como os centauros e as sereias, nada
mais do que produtos da nossa imaginação?
Os alunos hão-de talvez dizer que não se trata da mesma coisa. É preciso
encorajá-los nesse sentido e observar:
A cada passo chamamos “pontos”,
“segmentos de recta”, “esferas”, etc. a certos entes do mundo físico, tais como
o sinal deixado pela ponta de um lápis sobre o papel, um fio bem esticado, uma
bola de bilhar, etc.
Mas haverá logo quem repare:
Pois, sim, mas toda a gente sabe que
essas coisas não são pontos, não são segmentos de recta, não são esferas.
Ao que o professor dirá:
Todavia essas coisas seriam pontos,
segmentos de recta, esferas, etc. se verificassem determinadas condições que
são os axiomas e as definições da Geometria de Euclides.
E perguntará logo de seguida:
Esses objectos do mundo físico não
verificam as referidas condições?
Se adoptarmos a lógica bivalente a resposta só poderá ser “verificam” ou
“não verificam”. O aluno escolhe provavelmente a segunda (a primeira é
demasiado vulnerável). Logo:
Se essas coisas não verificam as referidas
condições, a geometria é inaplicável ao mundo físico, não é verdade?
Mais uma vez a resposta terá que ser “sim” ou “não” e o aluno optará
provavelmente pela negativa (a primeira é incompatível com a anterior
resposta). Mas o professor deverá por novamente os alunos perante a realidade:
No entanto, se medirmos os três
ângulos internos de um triângulo, verificamos que a soma dos três é igual a 1800 (...) A cada passo vemos confirmadas
as previsões teóricas da geometria euclidiana, cujas aplicações são
fundamentais na ciência e na técnica (...) Parece pois, que chegamos a uma
conclusão absurda, desconcertante:
A GEOMETRIA É E NÃO É APLICÁVEL AO MUNDO FÍSICO.
Como poderá ser isto?
José Sebastião e Silva, 1964
Guia para a
Utilização do Compêndio de Matemática
interpretação do mundo físico. Fica perplexo com o facto de
especulações pura-mente abstractas se aplicarem de um
modo que parece tão
“miraculoso” ao concreto.
Qual é então a natureza dos objectos matemáticos? Onde devemos procurá-la?
Na realidade experimental como o fizeram os primeiros
matemáticos? Na actividade do indivíduo, como sustentam os idealistas? Num
mundo que não se situa no espaço-tempo, como advogam os platonistas?
Estas questões embora tenham sido discutidas desde há
muito por inúmeros matemáticos e filósofos permanecem actuais. O problema é,
que seja qual for o nível de análise que se adopte, clarificam-se alguns
aspectos mas outros permanecem envoltos em mistério. Com efeito, se se procurar
a natureza dos objectos matemáticos na realidade experimental, poderá
compreender-se que uma vez daí extraídos, através de uma série de abstracções
cada vez mais requintadas, continuem a estar de acordo com essa realidade. Mas
já não se compreenderá tão bem que eles a excedam e que possam obter-se construções
dedutivas, bem mais rigorosas do que as observações e sem nenhuma comparação
com elas, quanto ao processo de demonstração.
Platonismo e ensino da
Matemática
O ensino clássico da Matemática
assenta numa epistemologia e numa ontologia platonistas: as ideias matemáticas
têm em si mesmas uma realidade. Nesta concepção, uma vez desvendada, a verdade
matemática é dada a quem a sabe ver,
a quem tem poder de abstracção suficiente. O papel do professor de Matemática
consiste em levar o aluno a partilhar dessa visão a que ele próprio já teve
acesso, a virar o espírito do aluno — “o olhar da alma” como dizia Platão — em
direcção ao mundo matemático (...) São diversas as consequências pedagógicas da
epistemologia e ontologia subjacentes à aprendizagem tradicional da Matemática.
O matemático desvenda as verdades e o ensino deve virar o olhar da alma do
aluno para estas verdades. Desde logo, o que o professor retém da actividade do
matemático, não é esta actividade, que a maior parte das vezes ignora ou sobre a
qual passa em silêncio, mas os seus resultados, teoremas, definições,
demonstrações, axiomas. Além disso, o professor é conduzido a sobrevalorizar a
forma pela qual estes resultados são apresentados. Se se pensar na actividade
do matemático, esta sobrevalorização da forma é paradoxal: não é a forma que dá
sentido aos resultados, uma vez que ela é apenas determinada a posteriori, quando os resultados foram adquiridos por outras vias bastante
mais caóticas (...) Esta ruptura entre a actividade matemática e os seus
resultados, entre os problemas e os conceitos, origina um insucesso escolar
importante, particularmente em alunos de famílias populares que, no seu meio,
não estão habituados a manipular uma linguagem explícita, formalizada e
codificada.
R.
Bkouche, B. Charlot, N. Rouche, 1991
Faire des
mathématiques: le plaisir du sens
Por outro lado, se se considerar a actividade do sujeito,
pode entender-se o rigor dos desenvolvimentos dedutivos e sua fecundidade, mas
coloca-se o problema do acordo com o real, sobretudo o da antecipação de
resultados. Não se entende, nomeadamente, como é que apenas através de
desenvolvimentos matemáticos, se podem obter resultados importantes para a
compreensão do mundo físico, que se vêm a revelar úteis, por vezes muitos anos
mais tarde, como aconteceu, por exemplo, com os estudos sobre cónicas feitos por Apollonius de Perga há mais de 2000 anos.
Cónicas e órbitas dos
planetas
O geómetra grego Apollonius de Perga
escreveu, no ano 200 a. C. um tratado sobre secções cónicas em que descrevia de
forma sistemática todas as propriedades destas curvas. Este estudo foi um
exercício de Matemática pura e muito poucas aplicações das cónicas foram feitas
na antiguidade clássica. Muito mais tarde, em 1604, isto é cerca de 1800 anos
depois, Kepler contactou com estes trabalhos e estudou as suas aplicações no
domínio da óptica. Em 1609, recorrendo a estes trabalhos afirmou que as órbitas
dos planetas deveriam ser descritas como elipses e não como círculos e
epiciclos, lançando, assim, as bases para a teoria da gravitação de Newton.
Felix
Browder e Saunders Mac Lane, 1988
A relevância da
Matemática
Considerando a possibilidade de os objectos matemáticos se situarem para lá
do sujeito e da realidade experimental, num mundo de ideias existente por si mesmo,
resta o problema de explicar como é que os seres humanos são capazes de tomar
contacto com esse mundo; ficam sem resposta os problemas relativos tanto ao
acordo com essa realidade, como à adequação do sujeito aos instrumentos
dedutivos.
Assim, qualquer uma destas perspectivas sobre a natureza
dos objectos matemáticos é bastante razoável e, ao mesmo tempo, todas elas
encontram sérias dificuldades.
2.1.2
- Experiência e razão na génese e desenvolvimento da Matemática
Uma vertente de análise que poderá contribuir para
aprofundar a temática da natureza dos objectos matemáticos prende-se com o
papel da experiência e da razão na génese e formação da Matemática. Neste
âmbito distinguem-se, comummente, duas perspectivas, o racionalismo e o
empiricismo, cuja síntese foi tentada por Kant.
Racionalismo e empiricismo
Os racionalistas entre os quais se encontram, por exemplo, Espinosa,
Descartes e Leibnitz, viam, tal como Platão, a razão
como um traço inerente à mente humana, através do qual as verdades podiam ser
conhecidas independentemente da observação. A razão era a faculdade que
permitia ao homem conhecer o Bem e o Divino e, para os racionalistas, esta
faculdade era mais facilmente visível na Matemática. Afinal, esta ciência, diziam, partia de verdades auto-evidentes, os axiomas, e,
através de raciocínios estabelecidos pela razão, conseguia descobrir e chegar a
conclusões não evidentes, e por vezes, inesperadas. Assim, a existência da
Matemática constituía, para os racionalistas, o melhor argumento para confirmar
a sua visão sobre o mundo.
O racionalismo foi posteriormente questionado pelo materialismo e pelo empiricismo.
O progresso das ciências da natureza, com base no método experimental, fez
triunfar o empiricismo que afirmava que todo o conhecimento tinha por base a
observação. O conhecimento matemático era, porém, a excepção que confirmava
esta regra.
No contexto do empiricismo, os trabalhos de David Hume desempenharam um
papel de relevo. Este filósofo defendia que não conhecemos nem o espírito, nem
a matéria, e que não deveríamos sequer admitir a existência de outras
substâncias, senão daquelas de que temos experiência imediata; esta experiência
reduz-se a um conjunto de sensações. Duvidava da existência da matéria,
interrogando-se sobre quem poderia garantir a existência de um mundo de
objectos sólidos subsistindo em permanência se tudo o que sabemos provém das
nossas próprias sensações provenientes de um tal mundo. Relativamente à
Matemática, Hume não rejeitou os axiomas relativos a números e figuras geométricas,
mas optou por os desvalorizar, tal como fez com os resultados que deles
derivavam, considerando que, quer uns, quer outros, provinham de sensações
respeitantes ao presumível mundo físico.
Mais tarde, em meados do século XIX, Stuart Mill, chegou a propor uma
teoria empiricista sobre o conhecimento matemático, sustentando que as
afirmações matemáticas são generalizações indutivas feitas a partir das nossas
experiências ou observações. Assim, a Matemática seria uma ciência natural que
em nada diferia das outras. Esta teoria, que não punha em causa a certeza do
conhecimento matemático pois Mill supunha a certeza da indução, não teve
aceitação nos meios filósofos e matemáticos chegando a ser fortemente
contestada, e mesmo ridicularizada, por Frege[3].
A filosofia de Hume não só pôs em causa a existência de
leis científicas relativas a um mundo físico, objectivo e permanente, como
depreciou os esforços e resultados da ciência e da Matemática e, mais que isso,
desafiou “o valor da própria razão”[4]. Ora, este facto causou indignação na maior parte dos intelectuais do
século XVIII, que consideraram que a filosofia de Hume devia ser refutada. Kant
empreendeu esta tarefa, tendo as suas reflexões procurado unificar as duas
tradições contraditórias do racionalismo e do empiricismo.
Kant e a Matemática
Kant distingue o conhecimento a priori do conhecimento
a posteriori, e o conhecimento
analítico do conhecimento sintético.
O conhecimento a priori
é o conhecimento universal, necessário e intemporal, que se fundamenta na razão
e é independente da experiência. Pelo contrário, o conhecimento a posteriori, ou
empírico, consiste em proposições fundamentadas na experiência, isto é, nas
observações do mundo físico. Por sua vez, o conhecimento analítico é o
conhecimento explicativo. Em particular, o conhecimento a priori analítico é o que
sabemos ser verdadeiro por análise lógica, pelo próprio significado dos termos
usados. Um exemplo do conhecimento a priori analítico é a afirmação “os solteiros não são
casados”. Diferentemente, o conhecimento sintético é aquele que acrescenta algo
de novo ao conhecimento que já se possui. Afirmar que “um segmento de recta é a
distância mais curta entre dois pontos”, constitui, para Kant, um exemplo de
conhecimento sintético a
priori.
A grande questão filosófica de Kant é saber como é possível o conhecimento
sintético a priori
e, em particular, como é possível a existência de conhecimento matemático. A
resposta que dá a esta questão é a de que o nosso espírito dispõe de formas
puras de espaço e de tempo (a que Kant chama intuições) através das quais
percebe, organiza e compreende a experiência. Assim, Kant embora glorificando a
razão a que atribui a tarefa de explorar as formas do espírito humano, não nega
o valor da experiência e dos dados provenientes da observação. Estes dados
contribuem para estimular o poder organizador do espírito.
A Matemática representa, para Kant, a prova suprema da existência de
conhecimento a priori.
A argumentação que propõe é a de que uma vez que a intuição do espaço tem a sua
origem no espírito, este reconhece de imediato algumas propriedades desse
espaço. Estas propriedades são sistematizadas na geometria (entendida como
geometria euclidiana, a única que Kant conhecia). Simultaneamente, considera que como os números inteiros derivam da intuição
do tempo, o conhecimento do tempo é sistematizado na aritmética. Logo, para
Kant, as proposições matemáticas são objectivas, necessárias, universalmente
válidas, independentes da experiência, e impõem-se-nos pela maneira como a
nossa mente funciona.
Esta breve passagem pela filosofia de Kant permite destacar que este
filósofo, ao colocar a fonte da Matemática no poder organizador do espírito,
concedeu a esta ciência um estatuto especial, um carácter de necessidade e uma
marca de certeza intemporal e incontestável, que se manteve durante bem até ao
século XX. As escolas fundacionistas que no início deste século tentaram
encontrar fundamentos seguros para a Matemática, no fundo, “ambicionavam todas
manter a Matemática na posição especial que Kant lhe tinha concedido”[5].
Actualmente, quer o questionamento da natureza a priori do conhecimento
matemático, quer os argumentos a favor de bases empíricas para este
conhecimento estão de novo a ganhar terreno. Não se trata, contudo, de um
retorno ao empiricismo de Mill. Trata-se, antes, de uma aproximação da
Matemática às ciências naturais que admite, tal como acontece nestas ciências,
o carácter a posteriori
e falível do conhecimento. Trata-se de uma perspectiva quasi-empírica sobre a Matemática, apresentada na secção 4 deste
capítulo, que questiona ser esta ciência um corpo de saber imutável e
infalível.
2.2 - Verdade e
certeza matemáticas: Perspectiva histórica
Tendo por fio condutor uma perspectiva histórica, nesta
secção procura-se reflectir sobre a intemporalidade e o carácter absoluto
frequentemente atribuídos à verdade, certeza e rigor matemáticos, a partir da
análise do significado que estas noções foram tendo na evolução desta ciência.
2.2.1
- Origem das verdades matemáticas
Embora as nossas principais concepções de número e forma datem de tempos
tão remotos como os do paleolítico, a linha principal da actividade matemática
ocidental, enquanto actividade sistemática, tem a sua origem nas civilizações
orientais do Egipto e da Mesopotâmia. As Matemáticas orientais constituiram-se
através da acumulação de um conjunto de factos, regras
e processos, sem nunca se emancipar verdadeiramente da influência milenar dos
problemas práticos e administrativos para cuja resolução tinham sido criadas.
Embora constituindo um conjunto considerável de conhecimentos, não dispunham de
nenhuma metodologia específica. Desenvolveram-se de uma forma não dedutiva, em
que as regras e procedimentos foram descobertos, a partir da observação e
experimentação, e através de processos de tentativa e erro. Foi esta
perspectiva empírica e instrumentalista que serviu de prelúdio aos trabalhos
matemáticos desenvolvidos pela civilização grega.
Os primeiros estudos de Matemática grega tinham por objectivo principal compreender
o lugar do Homem no Universo de acordo com um esquema racional. A Matemática
ajudava a encontrar a ordem no caos, a ordenar as ideias em sequências lógicas,
a encontrar princípios fundamentais. Começou, assim, a tomar corpo uma nova
Matemática desenvolvida mais no espírito da compreensão do que no da utilidade
imediata. Esta Matemática colocava não só a antiga questão do
como mas também a moderna questão
científica do porquê.
Os pitagóricos sentiam-se impressionados pelo facto de fenómenos muito
diversos, de um ponto de vista qualitativo, poderem exibir propriedades
matemáticas idênti-cas. Foram, assim, despertando para a ideia de que estas
propriedades podiam constituir a essência destes fenómenos e que o Universo
estava matematicamente ordenado. Consequentemente, a Matemática começou a
surgir como um modelo explicativo e inteligível, uma chave por meio da qual o
homem podia penetrar na ordem da Natureza e dissipar o mistério e o caos que aí
pareciam reinar.
No processo de explicação da Natureza o número, entendido como ponto ou
partícula, desempenhava um papel fundamental. Os pitagóricos investigavam as
suas propriedades e colocavam-no “no centro de uma filosofia cósmica que
tentava reduzir todas as relações fundamentais a relações numéricas”[6]. Porém, os únicos números que reconheciam como tal,
eram os inteiros ou os fraccionários. Assim, a descoberta de que havia relações
entre estes números que não podiam ser expressas através deles (como é o caso,
por exemplo, da razão entre a diagonal e o lado de um quadrado), pôs em causa a
harmonia entre a aritmética e a geometria e originou perturbações nos meios
filosóficos e matemáticos.
Esta descoberta, associada aos paradoxos de Zenão, que entravam em conflito
com algumas concepções antigas e intuitivas sobre o infinitamente pequeno e o
infinitamente grande, levou os matemáticos da época a questionarem-se sobre se
a Matemática era possível como ciência exacta. O problema foi resolvido no
espírito do novo período social da história da Grécia. Neste período, de
supremacia aristo-crática, as classes dirigentes tinham a sua subsistência
assegurada pela escravatura e o trabalho manual era menosprezado. Foi neste
contexto que surgiu e tomou forma a escola mais influente, depois dos
pitagóricos, na exposição e propagação da tese relativa à estrutura Matemática
da Natureza — a Academia de Platão.
Zenão, paradoxos,
Aquiles e a tartaruga
Acreditou-se sempre que a soma de um número infinito de quantidades se
podia tornar tão grande quanto se quisesse, mesmo que cada quantidade fosse
extremamente pequena e também que a soma de um número finito ou infinito de
quantidades de dimensão zero era zero. O criticismo de Zenão desafiou estas
concepções e os seus quatro paradoxos criaram uma agitação cujos efeitos ainda
podem ser observados actualmente. Os paradoxos foram retomados por Aristóteles
e são conhecidos pelos nomes Aquiles,
seta, dicotomia e estádio.
Aquiles: Aquiles e uma tartaruga movem-se na mesma direcção, ao longo de uma linha
recta. Aquiles é mais veloz que a tartaruga, mas para alcançar a tartaruga, ele
tem que passar primeiro pelo ponto P, do qual a tartaruga partiu. Quando chega
a P, a tartaruga já avançou para o ponto P1, mas a tartaruga avançou para um novo
ponto P2.
Quando Aquiles estiver em P2, a tartaruga estará em P3, etc. Por isso Aquiles nunca poderá
alcançar a tartaruga.
Dirk
J. Struik, 1989
História concisa
das Matemáticas
Os platonistas distinguiam o mundo das coisas do mundo das ideias. O mundo
das coisas, mundo material, contém objectos e relações imperfeitas. É no mundo
das ideias que se encontravam as verdades absolutas e imutáveis e todo o saber
que lhes diz respeito que é certo, seguro e indestrutível.
É neste mundo de ideias que Platão coloca os objectos matemáticos. Assim,
para este filósofo, as leis matemáticas não eram apenas a essência da
realidade, mas uma essência verdadeira, eterna e imutável. Se com Pitágoras
eram os números que “governavam” o mundo, com Platão são as ideias geométricas
que o governam. A frase Deus geometriza
eternamente escrita por este filósofo na República, ilustra bem esta perspectiva.
Na sua função de perscrutar a Natureza, a Matemática, para Platão, podia
substituir a própria investigação física. Sustentava que a razão humana tinha a
capacidade de intuir verdades fundamentais graças à qual podia proceder de
maneira autónoma e indignava-se profundamente com alguns dos seus
contemporâneos (como por exemplo, com Plutarco, Eudoxo, Arquitas) que recorriam
a raciocínios mecânicos para provar resultados matemáticos.
Em suma, no âmbito da Matemática, um dos aspectos mais inovadores do
pensamento grego, foi a sua concepção de um Cosmos que funcionava de acordo com
leis matemáticas verdadeiras, passíveis de serem descobertas pelo pensamento
humano, e o desejo de conhecer estas leis. Colocava-se contudo a questão de
como o fazer e ter a certeza de que as leis descobertas eram, efectivamente,
verdadeiras.
Um dos passos dados pelos gregos, para poder raciocinar sobre conceitos
matemáticos abstractos, foi estabelecer axiomas, verdades de uma tal
auto-evidência que ninguém poderia negar. Estes axiomas diziam respeito ao
espaço e aos números inteiros.
O segundo passo foi garantir a correcção das conclusões obtidas a partir
dos axiomas. Para tal, usaram raciocínio dedutivo, que consideravam
como o único que garantia a correcção das conclusões. Assim, uma vez que se
partia de axiomas, verdades sobre o espaço e os números inteiros consideradas
auto-evidentes, este raciocínio poderia ser um veículo para encontrar as
verdades eternas sobre a Natureza que eles ansiavam descobrir. Pode apontar-se,
ainda, uma razão de natureza social para explicar a preferência pela forma
dedutiva. As actividades matemáticas, bem como as filosóficas e as artísticas,
eram praticadas por classes abastadas que menosprezavam o trabalho manual e as
actividades comerciais. Platão e Aristóteles, ao sustentarem, respectivamente,
que a actividade comercial constituía uma degradação para o homem livre, que
devia ser punida como crime, e que nenhum cidadão devia praticar arte mecânica,
ilustram bem, neste domínio, a atmosfera intelectual reinante na época. Assim,
não é de estranhar a opção pela dedução. Com efeito, a experimentação e
observação teriam aparecido como estranhas ao modo de pensar grego.
No período helenístico, o avanço da civilização grega pelas regiões do
mundo oriental (Egipto, Mesopotâmia, parte da Índia) possibilitou que a
Matemática grega, embora conservando muitas das suas características
tradicionais, sentisse a influência dos problemas de administração e astronomia
que o Oriente tinha para resolver. Surgiram os cientistas profissionais e,
neste grupo, muitos dos mais importantes viviam em Alexandria.
Entre os primeiros sábios associados a este centro intelectual e económico,
destaca-se Euclides, cuja formação se desenrolou na Academia de Platão. A sua
obra constitui uma organização ampla e sistemática, apresentada numa forma
axiomática-dedutiva, de descobertas diversas de vários pensadores gregos do
período clássico. Através das suas formulações axiomáticas, consideradas
rigorosas, os trabalhos desenvolvidos pela Academia de Platão e, muito
especialmente, os de Euclides, possibilitaram a resolução da “crise” relativa
ao aparecimento dos números irracionais e aos paradoxos de Zenão.
Os textos mais difundidos de Euclides são os treze livros que constituem os
Elementos, que são “a seguir à
Bíblia, provavelmente, o livro mais reproduzido e estudado na história do mundo
ocidental (…) [e cuja] estrutura lógica influenciou o pensamento científico
talvez mais do que qualquer outro texto do mundo”[7].
Os Elementos de
Euclides representam a primeira axiomatização da história da Matemática. Até ao
século XIX, foram considerados o modelo da verdade, rigor e certeza, tendo-se
transformado, durante vários séculos, no próprio paradigma da ciência.
Nomeadamente, Newton não hesita em considerá-los como modelo para a construção
de toda a teoria científica que se queira rigorosa e os seus Principia inspiram-se neles.
2.2.3
- Da certeza da verdade à procura da certeza
Nos séculos XVII e XVIII, a geometria euclidiana era
ainda objecto de grande admiração, não só porque tinha sido a primeira área da
Matemática a ser estabelecida dedutivamente, mas também porque durante mais de
dois mil anos, os seus teoremas continuavam a revelar-se verdadeiros quando
comparados com a realidade física. Todavia, nem todos os axiomas de Euclides
eram igualmente evidentes. O axioma das paralelas, ou o quinto postulado, como
é frequentemente designado, tinha sido objecto de numerosas discussões já desde
a Antiguidade. Aparentemente, nem o próprio Euclides gostava muito da sua
formulação, uma vez que só se serviu dele depois de ter provado, sem o
utilizar, tantos teoremas quantos foi capaz.
Quinto postulado de
Euclides
Se uma recta que encontra duas outras rectas forma ângulos interiores do
mesmo lado mais pequenos que dois rectos, as duas rectas quando infinitamente
prolongadas encontram-se do mesmo lado em que os ângulos são mais pequenos que
os dois rectos.
Morris
Kline, 1980
Mathematics: The loss
of certainty
Ao longo dos séculos foram feitas inúmeras tentativas para resolver os
problemas relacionados com este axioma. Umas tentavam substituí-lo por um
enunciado aparentemente mais evidente; outras procuravam deduzi-lo dos outros
nove apresentados por Euclides. No entanto, todas estas tentativas se revelaram
vãs. Pelo contrário, evidenciaram que, adoptando um axioma que fosse
essencialmente diferente do axioma das paralelas, não só não se chegava a
nenhuma contradição mas, mais do que isso, mostraram que havia lugar para a
existência de várias outras geometrias, diferentes da de Euclides, mas com
estruturas lógicas igualmente válidas. Estava aberto o caminho para o
desenvolvimento das geometrias não euclidianas.
Relativamente às geometrias não euclidianas, Kline refere
que um dos factos mais significativos é que podem ser utilizadas para descrever
as propriedades do espaço físico de maneira tão precisa como o fazia a
geometria euclidiana. Ora esta ideia estava em completa oposição com as
opiniões cultivadas nos meios intelectuais da época e, assim, a aceitação das
geometrias não euclidianas pela comunidade matemática não foi fácil, nem
linear. Afinal, o que estava em causa era não só a antiga crença grega da
verdade matemática como chave para conhecer o Universo, mas o próprio poder da
razão para aceder ao conhecimento verdadeiro.
Geometrias não
euclidianas: Contributo de Gauss
Gauss estava perfeitamente consciente da fragilidade dos
esforços que consistiam em tentar estabelecer [o axioma das paralelas de
Euclides], o que se tinha já tornado um lugar comum em
Göttingen. Por volta de 1813, Gauss desenvolveu a sua geometria não euclidiana
que inicialmente designou por geometria antieuclidiana, depois por geometria
astral e finalmente por geometria não euclidiana. Estava convencido de que ela
era logicamente consistente e que poderia encontrar uma aplicação. Numa carta
ao seu amigo Franz Adolf Taurinus, datada de 8 de Novembro de 1824, Gauss
escreveu: “Admitir que a soma dos ângulos (de um triângulo) é inferior a 1800, conduz a uma geometria curiosa, diferente da nossa (euclidiana), mas
inteiramente coerente e desenvolvida para minha inteira satisfação. Os teoremas
desta geometria parecem paradoxais e absurdos para um neófito, mas uma reflexão
calma e séria revela que eles não contêm nada de impossível”.
Morris Kline, 1980
Mathematics:
The loss of certainty
A partir de 1820, começa a afirmar-se a ideia de que, na base da Matemática
clássica devem colocar-se, não as noções geométricas dos gregos, mas o conceito
de número inteiro. Este movimento foi designado por aritmetização da Matemática. No entanto, o aparecimento de números
tridimensionais (os quaterniões de Hamilton[8]), que não gozam da propriedade comutativa da multiplicação como acontecia
com os outros números conhecidos até então, e a criação de novas álgebras com
propriedades cada vez mais estranhas, lançou a dúvida sobre a verdade da
aritmética e da álgebra usuais. E os matemáticos foram levados a descobrir que
se podem introduzir na aritmética operações diferentes das que nos são
familiares e criar uma aritmética igualmente aplicável. Assim, a aritmética
como o corpo de verdades necessariamente aplicável aos fenómenos do mundo
físico, estava também posta em causa. “A triste conclusão que os matemáticos
foram obrigados a tirar de tudo isto é que não existe nenhuma verdade em
Matemática, se se entender por verdade, leis respeitantes ao mundo real”[9].
Em suma, a tentativa empreendida pelos gregos de tentar
garantir a verdade matemática partindo de verdades evidentes e utilizando
somente raciocínios dedutivos, tinha-se revelado vã. Este facto foi muito
difícil de admitir, tendo numerosos matemáticos continuado a desenvolver
grandes esforços no sentido de recuperarem a segurança que pensavam ter
perdido. E em lugar da verdade surgia a noção de consistência lógica. Ou, por
outras palavras, a certeza da verdade
dava agora lugar à procura da certeza.
2.2.4
- Relativade do rigor e da verdade matemática
Uma das revelações obtidas com os trabalhos desenvolvidos sobre a geometria
euclidiana foi o facto de que esta geometria, que durante mais de 2000 anos
tinha sido considerada o paradigma do rigor, apresentava sérias dificuldades de
um ponto de vista lógico. Além disso, os matemáticos ao reexaminarem as bases
lógicas da aritmética e álgebra dos números reais e complexos,
verificaram que este campo se tinha igualmente desenvolvido de uma forma
ilógica.
Afinal, o que se constatava era que a Matemática não tinha sido o paradigma
da razão que tinha reputação de ser. Em lugar dos seus resultados terem sido
demonstrados lógica e rigorosamente, ao longo dos séculos, tinha-se recorrido a
intuições baseadas em desenhos geométricos, argumentos físicos, raciocínios
indutivos, princípios ad
hoc e manipulações formais de expressões simbólicas.
Foi então empreendida a tarefa de encontrar fundamentos sólidos para a
Matemática. Para isso, foi reconhecida a necessidade de termos não definidos,
da utilização de definições formuladas de forma precisa (eliminando delas todos
os termos que pudessem ser considerados vagos ou contestáveis), da
explicitação, de uma forma exaustiva, do conjunto de axiomas que serviam de
ponto de partida para as teorias, e da demonstração explícita de todos os
resultados matemáticos por mais intuitivamente evidentes que pudessem parecer.
E assim surgia um novo significado para a expressão rigor matemático.
Durante o final do século XIX, os matemáticos empreenderam uma intensa
actividade axiomática, entrelaçando cuidadosamente os teoremas de modo a tentar
garantir a solidez de toda a estrutura matemática. A verdade matemática
absoluta, oriunda da civilização grega, começava a ser substituída por uma verdade relativa dos teoremas
relativamente aos postulados, definições e correcção de raciocínio. Assim,
embora a Matemática tivesse perdido o seu enraizamento na realidade, a crise
parecia estar resolvida.
No entanto, a descoberta de paradoxos na teoria de
conjuntos e a tomada de consciência de que poderiam existir paradoxos
semelhantes, embora ainda não detectados, noutros ramos da Matemática clássica,
levaram os matemáticos a tomar muito a sério o problema da consistência e a
interrogar-se sobre como deveria constituir-se esta ciência de modo a eliminar
os paradoxos e assegurar que novas contradições não pudessem aparecer. Não
puderam, contudo, pôr-se de acordo. Tinha-se entrado numa nova crise — a crise dos fundamentos.
2.3 - A busca de
fundamentos
A crise dos fundamentos foi, no fundo, a manifestação de uma antiga
discrepância entre o mito de Euclides[10] e as práticas matemáticas reais. O mito de Euclides é a crença segundo a
qual os livros deste autor contêm verdades acerca do universo que são claras e
indubitáveis, uma vez que chegam ao conhecimento certo, objectivo e eterno a
partir de factos evidentes por si próprios e procedendo através de
demonstrações rigorosas.
A inquestionabilidade deste mito, que prevaleceu até ao
século XIX, foi fortemente abalada quando Russel, que pesquisava fundamentos
para a Matemática na teoria de conjuntos, começou a ser confrontado com
contradições, eufemisticamente designadas por paradoxos, que ilustraram que,
seguindo as regras da lógica intuitiva, podemos ser levados a resultados
contraditórios de um modo nunca visto anteriormente nem em aritmética nem em
geometria.
Paradoxo de Russel
Para enunciar o paradoxo de Russel definimos um “conjunto R” como “um
conjunto que se contém a si próprio” (um exemplo é o “um conjunto de todos os
objectos descritos com exactamente treze palavras em português”). Consideremos
agora um outro conjunto M: o conjunto de todos os conjuntos possíveis, excepto
os conjuntos R. M é um conjunto R? Não. Por outro lado, também é falso afirmar
que M não é um conjunto-R. Moral: a definição de M, que parecia inofensiva,
embora um pouco retorcida, é contraditória em si própria”.
Philip
Davis e Reuben Hersh, 1988
Da certeza à
falibilidade
Foram três as escolas de pensamento que tentaram
encontrar bases seguras para a Matemática — logicismo,
o construtivismo e o formalismo — mas, como se verá em
seguida, embora oferecendo a certeza a um certo preço, nem mesmo assim a
conseguiram garantir.
2.3.1
- Logicismo
O logicismo iniciou-se perto de 1884 com o filósofo,
matemático e lógico alemão Frege continuando, mais tarde, com Bertrand Russel.
A sua finalidade consistia em provar que a Matemática clássica era parte da
lógica. Para levar a cabo este programa Russel e Whitehead criaram a obra Principia Mathematica, publicada em
1910, que pode considerar-se uma teoria formal de conjuntos, embora a formalização
não estivesse ainda concluída. Estes matemáticos planeavam mostrar que todos os
axiomas dos Principia pertenciam à
lógica e, se o tivessem conseguido, os fundamentos da Matemática seriam os
axiomas da lógica. Questões como “porque é que a Matemática está livre de
contradições”’ transformar-se-iam, assim, em “porque é que a lógica está livre
de contradições” Havia, no entanto, axiomas que não eram proposições lógicas no
sentido do logicismo[11] e assim este programa, embora tendo uma enorme importância para o
desenvolvimento da moderna lógica matemática, foi um fracasso do ponto de vista
da sua intenção inicial. Como salienta Dias Agudo, o sistema não se revelou
satisfatório para uma fundamentação incontroversa da Matemática.
2.3.2
- Construtivismo e intuicionismo
Os construtivistas abordaram o problema dos fundamentos da Matemática de
uma forma radicalmente diferente da dos logicistas. Enquanto estes consideravam
que nada havia de errado com a Matemática clássica, sendo os paradoxos
originados por erros dos matemáticos mas não causados por imperfeições da
ciência matemática, os construtivistas viam estas contradições como indicações
claras de que a Matemática clássica estava longe de ser perfeita.
A forma de construtivismo mais conhecida é o intuicionismo iniciado por
Brouwer em 1908. Para Brouwer não é a experiência nem a lógica que determina a
coerência e aceitabilidade das ideias, mas sim a intuição. Profundamente
influenciado pela teoria de Kant relativa à intuição de tempo,
sustenta que os números naturais nos são dados por uma intuição fundamental que
é o ponto de partida de toda a Matemática. Concebe o pensamento matemático como
um processo de construção mental que, partindo dos números naturais, prossegue
através de um número finito de passos e é independente da experiência.
Com o intuicionismo sobressai a ideia de que a Matemática é uma ciência que
tem a sua origem no espírito e aí se exerce: a Matemática não possui nenhuma
existência fora do espírito humano. As palavras e relações verbais constituem
uma estrutura “imperfeita” para comunicar as ideias matemáticas que são criadas
pela actividade do espírito.
Os intuicionistas, em virtude dos princípios de raciocínio que admitiam,
rejeitarem muitos dos teoremas da Matemática clássica. Por exemplo, Brouwer
apresentou um número real do qual somos incapazes de demonstrar
construtivamente, se é positivo, negativo ou nulo, o que mostra que a
propriedade tricotómica é falsa. E assim, também o programa intuicionista não
foi bem sucedido na sua tentativa de encontrar
fundamentos consistentes para aquela Matemática. Além disso, os matemáticos
intuicionistas estabeleceram resultados considerados falsos por matemáticos que
o não eram e apresentaram provas para certos teoremas classificadas como longas
e menos elegantes do que outras elaboradas por métodos não construtivistas.
Por tudo isto, a comunidade matemática considerou, quase
universalmente, o programa intuicionista pouco razoável e algo fanático. O
programa formalista pode, em particular, ser visto como uma tentativa de
defender a Matemática do que Hilbert considerava mutilações e deformações
provocadas pelo intuicionismo.
2.3.3
- Formalismo
A escola formalista, criada por volta de 1910 por David Hilbert, tinha por
grande objectivo encontrar uma técnica matemática por meio da qual se pudesse
demonstrar, de uma vez por todas, que a Matemática estava livre de
contradições. Hilbert propunha-se construir uma demonstração matemática da
consistência da Matemática clássica, utilizando argumentos puramente finitários
que Brouwer não pudesse rejeitar. Com este objectivo, (a) introduziu uma
linguagem formal e regras formais de inferência em número suficiente para que
toda a “demonstração correcta” de um teorema clássico pudesse ser representado
por uma dedução formal com cada passo mecanicamente verificável; (b)
desenvolveu uma teoria das propriedades combinatórias desta linguagem formal;
(c) e propôs-se demonstrar que dentro deste sistema não podiam deduzir-se
contradições. Deste modo, Hilbert pretendeu estabelecer o que designava por
demonstrações objectivas, ou seja, um encadeamento de fórmulas deduzidas
através de implicações a partir de símbolos, axiomas ou conclusões previamente
estabelecidas.
Com o formalismo a Matemática torna-se um sistema formal que partindo dos
axiomas e dos termos iniciais, se desenvolve numa cadeia ordenada de fórmulas,
mediadas por teoremas, sem nunca sair de si mesma. Torna-se nem mais nem menos,
do que “um jogo linguístico” fundado exclusivamente nas próprias regras do
jogo, como acontece, por exemplo, com o jogo do xadrez. Neste contexto, fazer Matemática consiste em manipular símbolos sem
significado de acordo com regras sintácticas explícitas.
Em 1930, Gödel enunciou o teorema da incompletude
evidenciando que nunca se poderia encontrar em Matemática uma certeza completa
por meio de qualquer método baseado na lógica tradicional, uma vez que
“qualquer sistema formal consistente suficientemente forte para conter a
aritmética elementar seria incapaz de demonstrar a sua própria consistência”[12]. Os resultados alcançados por Gödel mostraram que o projecto de Hilbert
era irrealizável e, assim, o programa formalista também não conseguiu provar a
certeza dos métodos matemáticos.
Formalismo e Matemática
moderna
O formalismo faz uma distinção entre a geometria como uma estrutura
dedutiva e a geometria como uma ciência descritiva. Somente a primeira é
considerada Matemática. A utilização de figuras, diagramas, ou mesmo de imagens
mentais, tudo é não-matemático. Em princípio deveriam ser desnecessários.
Consequantemente, considera-os inadequados num texto
matemático, e talvez também numa aula de Matemática (...) Do ponto de vista
formalista não começamos realmente a fazer Matemática antes de enunciar algumas
hipóteses e começar uma demonstração. Após termos chegado às nossas conclusões,
a Matemática acabou (...) O exemplo mais influente do formalismo como estilo de
exposição matemática foi a obra do grupo chamado colectivamente de Nicolas
Bourbaki. Sob este pseudónimo, foi produzida uma série de textos básicos, a
nível de pós-graduação, sobre a teoria de conjuntos, a álgebra e a análise que
tiveram uma enorme influência em todo o mundo nas décadas de 50 e 60. O estilo
formalista penetrou gradualmente no ensino da Matemática em níveis mais
elementares e, finalmente, sob o nome de Matemática
moderna invadiu até o jardim de infância com
textos de teoria de conjuntos para a idade pré-escolar.
Philip
Davis e Reuben Hersh, 1988
Da certeza à
falibilidade
2.3.4
- A perda da certeza em Matemática
Se se analisar um pouco de perto o processo pelo qual o logicismo, o
intuicionismo e o formalismo visavam garantir a certeza, constata-se que este
processo continha em si mesmo elementos que poderiam causar dificuldades ao
objectivo pretendido.
De facto, estas escolas aceitaram sem demonstração um conjunto de
afirmações básicas a partir das quais deduziram logicamente os seus resultados.
Ora, por um lado, o conjunto de afirmações básicas não pode ser eliminado de
uma teoria matemática. Por outro lado, a lógica dedutiva não introduz verdade
nos raciocínios e afirmações. Quando muito poderia transmiti-la. A partir do
momento em que as três escolas aceitam princípios não demonstrados, esses
princípios ficam abertos ao desafio, à dúvida e à incorrecção. Como salienta Ernest[13], “a pesquisa da certeza em Matemática conduz, inevitavelmente, a um
círculo vicioso. Todo o sistema matemático depende de um conjunto de
afirmações, e tentar estabelecer a sua certeza demonstrando-as conduz a uma
regressão infinita”. Assim, o problema de assegurar a certeza em Matemática
parece ser insolúvel.
Actualmente não se está mais perto de fundamentos seguros
para a Matemática do que se estava há um século atrás. No entanto, as
controvérsias sobre os fundamentos já não têm o impacto de outrora. Conduzem a
círculos que parecem cada vez mais distantes das preocupações matemáticas e
filosóficas dos nossos dias. É nesta conjuntura que se acentua, cada vez mais,
a importância de olhar a Matemática sem a preocupação dominante da pesquisa de
fundamentos, procurando-se novas direcções na filosofia da Matemática.
2.4 - Matemática:
Uma ciência a par das outras
Uma alternativa radicalmente diferente à da procura de
bases indubitáveis para a Matemática foi a apresentada por Imre Lakatos. Este
filósofo, matematicamente esclarecido, segue a teoria do conhecimento
científico enunciada por Popper que advoga que o conhecimento científico é
hipotético, falível, e que a ciência progride, a partir de problemas, pelo jogo
entre factos, conjecturas e refutações.
2.4.1
- Falibilismo
No âmbito da filosofia da Matemática, a obra fundamental de Lakatos é Provas e Refutações iniciada em 1957 e
publicada pela primeira vez em livro em 1976. Este trabalho constitui um ensaio
sobre a lógica da descoberta em Matemática, onde se reconhece ao erro um valor
insubstituível no processo de produção do conhecimento. O ponto de partida é
saber se existirá uma relação entre o número de vértices V, o número de arestas
A e o número de faces F de um poliedro. A reso-
Provas e Refutações em
Matemática
Este livro está estruturado sob a
forma de um diálogo que ocorre numa sala de aula imaginária. Depois de muitas
tentativas e erros os alunos constatam que para todos os poliedros regulares
V-A+F=2. Um aluno conjectura que esta relação se pode aplicar a todos os
poliedros. Outros tentam refutar esta conjectura sem o conseguirem. É nesta
altura que o professor entra na sala e apresenta uma prova em três etapas. O
extracto que se segue é uma parte do diálogo que se estabelece imediatamente após
a apresentação desta prova.
Professor: (...) Assim provámos a nossa conjectura1
Aluno Delta: Agora pode falar de teorema.
Não há no caso mais nada de conjectural2.
Aluno Alfa: Admiro-me. Vejo que esta experiência pode ser realizada com um cubo, ou
com um tetraedro, mas como posso eu saber se ela pode ser realizada com todo o poliedro? O senhor tem a certeza,
por exemplo, que qualquer poliedro,
depois de lhe retirarmos uma das faces, pode ser esticado no plano do quadro?
Tenho dúvidas relativamente à sua primeira etapa.
Aluno Beta: Tem a certeza que ao triangular o
mapa teremos sempre uma nova face para cada nova aresta? Tenho dúvidas
quanto à sua segunda etapa.
Aluno Gama: O senhor tem a certeza que quando
se retiram os triângulos um por um há apenas dois casos possíveis: retirar uma
só aresta ou então retirar duas arestas e um vértice? O senhor tem mesmo a
certeza que no final desse processo
apenas fica um triângulo? Tenho dúvidas sobre a sua terceira etapa3.
Professor: É claro que não tenho certezas.
Alfa: Mas então a nossa situação é pior que antes! Em lugar de uma conjectura,
neste momento temos pelo menos três! E é a isso que o senhor chama “prova”!
Professor: Admito que para esta experiência mental, o termo tradicional ‘prova’
possa ser de facto considerado um pouco enganador. Não penso que ela estabeleça
a verdade da conjectura (...).
____________________________________
1
- A ideia da prova apresentada pelo professor remonta a Cauchy (1813)
2
- O ponto de vista de Delta segundo o qual esta prova estabelece sem nenhuma
dúvida o “teorema” foi partilhado por numerosos matemáticos do século XIX como
por exemplo Crelle ([1826-1827], pp. 668-71),
Matthiessen ([1863], p. 449), Jonquières ([1890a] e [1890b]). Citando um
exemplo representativo: “Depois desta demonstração de Cauchy, está
absolutamente fora de dúvida que a elegante relação V+F = A+2 se aplica aos
poliedros de todos os tipos, tal como Euler afirmou em 1752 e toda a indecisão
deve ter desaparecido desde 1811”. (de Jonquières ([1890a],
pp. 111-12).
3
- Os alunos desta classe são muito dotados. Em Cauchy, Poinsot e muitos outros
matemáticos do século XIX, não se encontram traços destas objecções.
Imre Lakatos,
1993
Proofs and
refutations - The logic of mathematical discovery
lução deste problema gera um diálogo que mostra uma Matemática
que cresce através de um conjunto de explicações, justificações, elaborações,
que não estabelecem a verdade das conjecturas, mas antes as tornam mais
plausíveis, convincentes, detalhadas e exactas pela pressão exercida pelos
contra-exemplos. A intenção deste diálogo é dar conta de uma espécie de
reconstrução racional da história.
Na introdução Lakatos escreve que “a história real soará em notas de fim de
página, cuja maior parte devem ser consideradas como fazendo organicamente
parte do ensaio”[14]. Ele chama a atenção para que a Matemática não está tão longe da ciência
natural como anteriormente se pensava e inclui-a nas teorias quasi-empíricas
considerando o conhecimento matemático intrinsecamente conjuntural e falível. Sugere
que a Matemática não se desenvolve por um crescimento contínuo de teoremas
indubitavelmente estabelecidos, mas pela correcção de teorias, pelo
melhoramento constante de conjecturas graças à especulação e à crítica, graças
à lógica de provas e refutações. Indica ainda que na produção de conhecimento
matemático há uma adaptação constante de axiomas e definições, em simultâneo
com uma incessante busca de conjecturas, demonstrações e refutações.
Lakatos aplica a sua análise epistemológica à Matemática informal, ou seja,
à Matemática encarada como um processo de crescimento e descoberta. Deixa,
contudo, sem resposta a questão de quais os objectos das teorias matemáticas
informais, indicando apenas que ela poderá ser iluminada por estudos de caso
históricos.
A perspectiva filosófica de Lakatos é, frequentemente,
designada por falibilismo. No centro
desta perspectiva está uma teoria da génese do conhecimento matemático, cujo
foco não é psicológico (uma vez que Lakatos não se pronuncia sobre a origem dos
axiomas, definições e conjecturas na mente dos indivíduos) mas, antes, o
processo pelo qual criações matemáticas privadas se transformam em saber
matemático publicamente
aceite. Este processo envolve discussão crítica, conjecturas e refutações e,
neste sentido, a filosofia proposta por Lakatos para a Matemática assemelha-se
à filosofia da ciência proposta por Popper.
2.4.2
- Abordagem quasi-empiricista
Actualmente, os ventos do pós-modernismo acentuam a ideia de que se
queremos compreender o que é a ciência e os processos de produção do saber
científico, importa debruçarmo-nos sobre as práticas reais dos cientistas,
tanto as actuais como as passadas, e encontrarmos uma filosofia que enquadre e
descreva essas práticas, em lugar de uma filosofia que prescreva o que elas
devem ser.
Neste sentido, diversos matemáticos, filósofos e historiadores (Davis,
Hersh, Ernest, Kline, Tymoczko, Putnam e muitos outros), inspirando-se no
falibilismo de Lakatos, propõem uma nova abordagem para a filosofia da
Matemática frequentemente designada por quasi-empiricismo[15]. Esta abordagem procura descrever e (re)caracterizar
a Matemática a partir da análise das práticas reais dos matemáticos.
Observando estas práticas ver-se-á que há aí factores importantes que os
fundacionistas negligenciaram: provas informais, desenvolvimentos históricos,
possibilidade de erro matemático, explicações matemáticas (em contraste com
provas), comunicação entre os matemáticos, a utilização de computadores e
muitos outros. Constatar-se-á que em cada época há normas culturais que
determinam o que é uma demonstração aceitável em Matemática, acontecendo que o
que constitui uma demonstração para uma geração pode não satisfazer os padrões
de aceitação e de rigor da geração seguinte. Observar-se-á que a Matemática
cresce por meio de uma série de grandes avanços intuitivos, que são
posteriormente estabelecidos, não numa etapa, mas através de uma série de
correcções, de esquecimentos e de erros; nenhuma prova é definitiva e novos
contra-exemplos deitam por terra provas antigas.
Hersh[16], apoiando-se na experiência diária dos que estudam Matemática, sugere que: “(1) Os objectos matemáticos
são inventados ou criados pelos seres humanos; (2) São criados, não
arbitrariamente, mas emanam da actividade desenvolvida a partir de outros
objectos matemáticos já existentes e de necessidades da ciência e da vida
diária; (3) Uma vez criados, os objectos têm propriedades bem determinadas, que
poderemos ter grande dificuldade em descobrir, mas que possuem
independentemente do nosso conhecimento acerca delas”. Conclui dizendo que a
Matemática é um mundo de ideias criado pelos seres humanos, que existe na
consciência partilhada destes seres. Tal como os objectos materiais têm as suas
próprias propriedades, também essas ideias têm propriedades objectivamente
suas. O método para as descobrir é a construção de demonstrações e
contra-exemplos.
Considerar desta forma os objectos matemáticos tem várias consequências
filosóficas. Em primeiro lugar, afirmar que os objectos matemáticos são inventados
ou criados pelo homem é distingui-los de objectos materiais como água, rochas
ou gatos. Contudo, tal não significa que sejam objectos intemporais como as
ideias matemáticas do platonismo. Pode dizer-se, por exemplo, que as geometrias
não euclidianas são objectos matemáticos de invenção mais recente do que a
geometria euclidiana.
Em segundo lugar, referir que os objectos matemáticos são produzidos como
resposta a desafios colocados tanto por teorias e conceitos matemáticos já
existentes, como pelas outras ciências e pelo mundo real, evidencia a
complementaridade do que vulgarmente se designa por Matemática pura e por
Matemática aplicada. Com efeito, ao longo dos tempos tem-se constatado que a
Matemática se desenvolve a partir de um movimento simultaneamente interno e
externo. A abstracção, a axiomatização e a generalização, três tipos de
actividades incluídas na designada Matemática pura, têm-se revelado tão vitais
para a Matemática como a construção de modelos inteligíveis de fenómenos
naturais complexos, e aparentemente impenetráveis. Parece ser através da
interacção entre a abstracção e os problemas concretos que a vida proporciona,
que se produz e vai construindo uma Matemática viva, significativa e
possibilitadora do aumento do poder humano de intervenção no mundo.
Em terceiro lugar, admitir que objectos matemáticos uma vez criados, têm propriedades suas que podemos ser, ou não, capazes de
descobrir, permite destacar a simultaneidade da descoberta e da invenção em
Matemática. Esta ideia, paradoxal quando rejeitamos o realismo em Matemática e
admitimos apenas a existência do sujeito individual e de um mundo exterior a
ele, ganha sentido quando consideramos uma espécie de terceira realidade, uma
realidade cultural, onde se situaria a Matemática. Nesta linha, Wilder,
inspirando-se nas práticas matemáticas reais, descreve a Matemática como um
sistema cultural em evolução, algo que criamos e possuímos colectivamente, que
é externo ao sujeito enquanto indíviduo, mas é interno à sociedade, como um
todo. Fazendo os objectos matemáticos parte da cultura humana, as suas
propriedades são também propriedades de ideias partilhadas.
O quasi-empiricismo, enquanto abordagem filosófica, destaca que a
Matemática constitui uma actividade humana, simultaneamente individual e
social, que decorre de um diálogo entre pessoas que tentam resolver problemas.
Os produtos matemáticos podem necessitar de renegociação à medida que mudam os
padrões de rigor ou que emergem novos desafios e significados. É pela partilha
e discussão crítica de ideias relativas aos objectos matemáticos que se torna
possível o reconhecimento de saberes matemáticos novos, o alargamento,
correcção e rejeição de teorias.
O quasi-empiricismo não dá resposta a todos os problemas respeitantes à
filosofia da Matemática. No entanto, mais importante que isso,
permite levantar questões fundamentais: Como são inventados os objectos
matemáticos? Como explicar o sucesso das aplicações da Matemática na
compreensão do mundo físico e de outras ciências?
Quasi-empiricismo e ensino
da Matemática
Uma perspectiva social
sobre a Matemática, em que se inclui o quasi-empiricismo, tem importantes
implicações para a pedagogia e a didáctica da Matemática. Dá suporte a
abordagens pedagógicas baseadas na formulação e resolução de problemas,
semelhantes aos processos pelos quais é gerado o conhecimento matemático.
Permite pôr em causa perspectivas educativas rigidamente hierarquizadas sobre a
Matemática e a aprendizagem. Tem ressonâncias com objectivos que visam formar
pessoas capazes de problematizar e avaliar criticamente os usos sociais da
Matemática.
Paul Ernest, 1994
The
philosophy of mathematics and the didactics of mathematics
Que balanço fazer quanto às diferenças entre os produtos matemáticos e
outros produtos culturais? O grau de constrangimento da criatividade matemática
é superior ao da criatividade artística? Como é que a demonstração matemática
se torna mais refinada e subtil à medida que são descobertas novas fontes de
erro? Como se articula a produção individual de saber matemático com o produção
social deste saber? Quais as normas e convenções actualmente partilhadas pelos
membros da comunidade matemática?
Estas são algumas das muitas questões que poderão ajudar
a compreender melhor o que é, e como progride, a Matemática. A sua análise em
profundidade constitui um dos grandes desafios que hoje se colocam, não só à
filosofia da Matemática, mas também à história, à antropologia, à sociologia e
à psicologia da cognição.
2.4.3
- Matemática: Objecto cultural e social
Presentemente, diversos investigadores pesquisam a história da Matemática e
realizam estudos de carácter sociológico e antropológico com o objectivo de
alargarem a compreensão de como se produz o conhecimento matemático. Alguns
destes estudos têm feito sobressair a influência das condições e doutrinas
sociais na produção matemática, bem como a natureza cultural dos objectos
matemáticos. Em particular, Barbin salienta que a modificação dos objectos e
dos saberes matemáticos que ocorreu no século XVII,
resultou do contexto científico, social e filosófico da época, onde imperava a
vontade de compreender os fenómenos técnicos. Esta cultura conduziu à
modificação do conceito de parábola, como consequência do estudo dos
movimentos, e à introdução de novas concepções de curva que viriam a estar nos
fundamentos do cálculo infinitesimal. Bento de Jesus Caraça, já em 1951, ao
escrever Os conceitos fundamentais de
Matemática, sublinhou também que a Matemática, tal como toda a construção
humana, depende do conjunto de condições sociais em que é produzida.
O conceito de variável e
a Grécia pós-socrática
Como poderia um tal conceito [de
variável] surgir na Grécia póst-socrática, dominada por uma doutrina filosófica
que (...) rejeitava a contradição, o devir e procurava, em tudo, aquilo que guarda permanentemente a sua
identidade? Não! A variável,
porque o é, não guarda a sua identidade,
ultrapassa o lago tranquilo mas estéril da permanência.
Daqui resulta imediatamente a incapacidade da ciência grega para construir o
conceito de função (...) E aqui tem o leitor um exemplo, possivelmente o mais
importante de todos, de como a Matemática, do mesmo modo que toda a construção
humana, depende do conjunto de condições sociais em que os seus instrumentos
têm que actuar. Subordinação que não a humilha, antes a engrandece.
Bento de Jesus Caraça, 1989
Conceitos
fundamentais de Matemática
Restivo[17], numa posição mais radical, afirma que “as notações e símbolos são
instrumentos, materiais, e em geral recursos que são socialmente construídos em
torno de interesses sociais e orientados por objectivos sociais”. Defende que
os mundos matemáticos são mundos sociais e que os objectos matemáticos são e
devem ser tratados como “objectos, coisas
que são produzidas e manufacturadas por seres sociais” não havendo razão para
que “um objecto como um teorema deva ser tratado diferentemente de uma
escultura”.
2.5 - A
experiência matemática
Uma vez admitida a ideia de que a filosofia da Matemática
deve ter em conta as práticas matemáticas reais, torna-se pertinente reflectir
sobre alguns aspectos da experiência matemática. Nesta secção aborda-se o que
Papert[18] designa por face extra-lógica da Matemática e o papel do computador na
produção da Matemática.
2.5.1
- Face extra-lógica da Matemática
A Matemática é vulgarmente olhada por um ângulo que
privilegia o seu lado lógico. No entanto, tal como acontece em qualquer outra
actividade humana, também na actividade de produção matemática, a face
extra-lógica coexiste com a face lógica.
Estética matemática e criação matemática
Encontram-se referências à face
extra-lógica, nomeadamente à estética matemática, em várias descrições do
processo de criação matemática, Por exemplo, Poincaré destaca que é a
sensibilidade estética, e não a lógica, que constitui o traço distintivo do
espírito matemático. Quando confrontado com um problema de difícil resolução
este matemático realiza um trabalho que se desenvolve em três etapas. A
primeira é uma fase de análise consciente e deliberada do problema. A segunda é
uma fase de trabalho inconsciente. Parece um abandono provisório da tarefa. No
entanto, o que se passa é que o eu inconsciente ou subliminar,
explora, sistematicamente, todos os elementos que lhe foram fornecidos pela
primeira etapa do trabalho. Após um certo tempo, num momento qualquer em que o
espírito consciente se afasta do problema a resolver, algumas combinações
desses elementos, provenientes do trabalho do inconsciente, aparecem na mente
sob a forma de uma inspiração súbita. Numa terceira etapa, há uma análise
consciente e rigorosa dessas ideias que poderão ser aceites, modificadas ou
rejeitadas. Neste último caso, o inconsciente recomeçará de novo o seu trabalho
na procura de uma nova solução.
Coloca-se, contudo, a questão de porque é que o inconsciente transmite ao
consciente alguns resultados e outros não. É aqui que Poincaré vê a intervenção
da sensibilidade estética. É esta sensibilidade, uma intuição especial que para
ele só existe nos que nascem matemáticos criadores, que desempenha um papel de
crivo e apenas deixa passar para o consciente as ideias que trazem a marca da
beleza matemática. Poincaré, ao contestar que seja possível compreender o
trabalho do matemático e os processos que ele utiliza exclusivamente em termos
de lógica, o que, no fundo, põe em causa é a existência de uma teoria puramente
cognitiva do pensamento matemático.
A descrição de Poincaré refere-se ao mais alto nível da criação matemática.
Uma questão diferente é saber se o mesmo processo dinâmico está presente em
níveis mais elementares de trabalho matemático. Foi sobre esta questão que se
debruçou Papert[19] ao analisar o pensamento seguido por um grupo de não matemáticos a quem
foi pedido para construir a demonstração do teorema que indica que a raiz
quadrada de dois é um número irracional.
Ao longo do processo de resolução do problema, Papert constata a
existência, no grupo, de sinais diversos de satisfação e entusiasmo, traços de
prazer vários, que o levam a questionar-se se a Matemática não estará mais
próxima do humor e dos sonhos do que aquilo que geralmente se crê. Tudo isto
leva-o a colocar uma série de dúvidas sobre as razões para acreditar, como o
faz Poincaré, que a faculdade de sentir beleza matemática é algo de inato e
independente de outras componentes do espírito. Sugere, pois, a possibilidade
destes factores entrarem em linha de conta e virem a influenciar, em cada
pessoa, a percepção da Matemática como bela ou não, levando-a a aprovar ou a
rejeitar “esta” ou “aquela” Matemática.
Estética matemática e criação matemática
Tornar-se matemático
inclui o desenvolvimento da estética matemática, uma predilecção por analisar e
compreender, por perceber a estrutura e as relações estruturais, por ver como
as coisas se ajustam.
Alain Schoenfeld,
1990
Problem
solving in context(s)
O que há de comum na
estética de todas as artes e na Matemática, é o
desapareci-mento de informações parasitas, de barulhos de fundo, numa palavra a
diminuição da entropia. A comparação de um belo raciocínio com a dança em que
cada movimento termina o precedente e inicia o seguinte, não é destituída de
sentido.
André Revuz, 1988
Est-il impossible d'enseigner les mathématiques?
Intuição e Matemática
A intuição matemática é outra das componentes que Papert inclui na face
extra-lógica da Matemática. A sua importância no processo de produção desta
ciência é destacada por inúmeros matemáticos, alguns dos quais chegam a afirmar
que a criação matemática é, sem dúvida e antes de mais, a obra de homens
notáveis pela sua poderosa intuição, mais do que pela sua capacidade de realizar
demonstrações rigorosas.
No âmbito da Matemática a noção de intuição é,
frequentemente, um pouco vaga. Por vezes significa pouco rigoroso, embora o
conceito de rigor seja apenas intuitivamente definido. Intuitivo pode também
significar visual, heurístico, plausível e holístico em oposição a
pormenorizado ou analítico. Apesar desta ambiguidade, é um facto que a
actividade matemática, para lá de uma componente formal (que envolve axiomas,
definições, teoremas e demonstrações) e de uma componente algorítmica (composta
por procedimentos que apenas podem ser adquiridas através de um treino
sistemático), inclui também combinar observações, seguir analogias, recorrer a
imagens, formular conjecturas e adivinhar a ideia da prova antes de a fazer, ou
seja, inclui também uma componente intuitiva. Esta componente não aparece nos
produtos matemáticos acabados onde prevalece a forma dedutiva. Estes produtos
são assegurados pelo que Pólya designa por raciocínio demonstrativo. As conjecturas são, no entanto,
sustentadas por um tipo de raciocínio diferente, o raciocínio plausível, que
completa o primeiro. Pólya chama ainda a atenção para que se a aprendizagem da
Matemática reflecte, em algum grau, a invenção da Matemática, então deve haver
aí lugar para aprender a “adivinhar”, para a inferência plausível.
Criação matemática e
intuição
Ciência alguma pode nascer apenas da
lógica (...) para produzir Aritmética tal como para produzir Geometria ou
qualquer outra ciência, é necessário algo mais que a lógica pura. Para designar
essa outra coisa, não temos outra palavra senão intuição (...) a ciência da
demonstração não é toda a ciência e a intuição deve conservar o seu papel como
complemento, diria mesmo, como contrapeso ou antídoto da lógica (...) Tive já
oportunidade de insistir no que diz respeito ao lugar que a intuição deve ter
no ensino das ciências matemáticas. Sem ela, os espíritos ainda jovens não
teriam meios de aceder ao entendimento da Matemática; não aprenderiam a gostar
dela e vê-la-iam apenas como uma vã logomaquia. Sem a intuição sobretudo, nunca
viriam a ser capazes de aplicar a Matemática (...) Assim, a lógica e a intuição
têm, cada uma delas, o seu papel. Ambas são indispensáveis. A lógica, que é a
única que nos pode fornecer a certeza, é o instrumento da demonstração; a
intuição é o instrumento da invenção.
Henri Poincaré, 1988
Intuição e lógica
em Matemática
Temos intuição matemática, não porque memorizamos mecanicamente definições
e algoritmos, mas porque temos representações mentais dos objectos matemáticos.
Construímos estas representações através de experiências repetidas, quer seja
através da manipulação de objectos concretos, a um nível elementar, quer, num
nível mais avançado, através da manipulação de imagens mentais, de experiências
de resolução de problemas e da realização de descobertas.
Uma vez que a intuição matemática é uma componente
fundamental e insubstituível da actividade matemática, importa ter em conta que
a ênfase exclusiva, na sala de aula, em tarefas matemáticas que não estimulem
os aspectos intuitivos do pensamento, para lá de constituir uma parente pobre
da experiência matemática, pode funcionar, para alguns alunos, como uma
barreira inibidora da construção de conhecimento matemático significativo.
2.5.2
- A prática matemática e o computador
Nos últimos anos o computador tem tido uma forte
influência no desenvolvimento da Matemática. Trouxe para primeiro plano áreas
anteriormente estudadas mas entretanto postas de lado, possibilitou alargar
fortemente o âmbito das aplicações da Matemática, permitiu introduzir novos
processos de investigação e tem sido uma fonte fecunda de problemas. O
computador está, assim, a introduzir modificações importantes nas práticas
matemáticas tradicionais, dando a esta ciência uma nova dimensão, tanto nos
seus aspectos teóricos como práticos. Todas estas mudanças estão a levantar
interessantes questões filosóficas sobre as quais importa reflectir.
Utilização do computador em Matemática
A relação do computador com a Matemática estabeleceu-se há muitas décadas.
Inicialmente começou por ser usado para realizar cálculos numéricos que
ocupavam um tempo excessivamente longo. Mais tarde, o seu campo de utilização
diversifica-se e torna-se mais complexo. Nos anos 50, Wang programou um
computador para provar diversos teoremas dos Principia Mathematica de Russel. Em 1969, Davis e Cerutti usaram
outro computador para produzir provas de geometria elementar, tendo encontrado
uma demonstração não usual para um velho teorema. Posteriormente, o computador
começa a ser programado para realizar operações com símbolos que dada a
complexidade das expressões envolvidas eram sérios obstáculos ao prosseguimento
dos trabalhos de investigação, alargando as fronteiras
da intratabilidade[20].
Actualmente matemáticos, engenheiros e cientistas concebem
modelos computacionais de sistemas naturais, tecnológicos e sociais para
revelar cenários que anteriormente só poderiam ser estudados através de
protótipos e experiências demoradas, muitas vezes realizadas em condições de
risco. Por seu lado, os próprios modelos computacionais geram novos problemas
matemáticos que têm impulsionado linhas de investigação diversas. Em
particular, na teoria dos números o computador é frequentemente usado para
chegar a novas conjecturas. Gera dados que o matemático analisa de modo a
formulá-las e mesmo que não as consiga provar pode recorrer de novo ao
computador para gerar outros grupos de números que lhe permitam testar ou
refutar as conjecturas que estabeleceu. Noutros campos, produz imagens gráficas
de objectos matemáticos que não poderiam ser “visualizados” de outro modo (como
acontece, por exemplo, com os objectos fractais) permitindo, assim, ampliar as
fronteiras de compreensão desses objectos. Alguns tópicos de Matemática foram
mesmo relegados inteiramente para a Matemática computacional tal como acontece
com a procura do maior número primo ou a mais longa expressão decimal de π.
A legitimidade matemática do computador
Apesar desta aliança fecunda entre computador e Matemática, a questão da
legitimidade matemática do computador permanece, contudo, uma questão
controversa. Muitos matemáticos, nomeadamente os fundacionistas, negam que os
computadores possam figurar em provas matemáticas entendidas no sentido
restrito do termo. Esta atitude prende-se com o facto de, por vezes, as provas
assistidas por computador (computer
proofs) não poderem ser testadas pela comunidade matemática através do
método canónico que consiste em lê-las e verificar se cada inferência é
logicamente correcta. As cópias escritas de muitas destas provas são
impossíveis de obter devido à enorme quantidade de tempo necessário para as
imprimir e mesmo que se conseguisse encheriam um número tal de páginas que
seriam inúteis para o matemático. Procura-se garantir que os resultados obtidos
por computador estão correctos verificando se diversos computadores os
confirmam, construindo diferentes programas para os verificar e avaliando a
fiabilidade dos programas utilizados.
Estas evidências são, contudo, semelhantes às que obtêm os cientistas que
realizam estudos experimentais no campo das ciências naturais que,
tradicionalmente, têm sido consideradas
significativamente diferentes da Matemática. Assim, não é de estranhar que se
ponham sérias reticências em admitir em Matemática provas assistidas por
computador, com o argumento de que se iria modificar o carácter fundamental
desta ciência.
Este debate poderia ter permanecido para sempre no campo puramente
especulativo se as provas assistidas por computador não tivessem chegado à
Matemática pura, o que aconteceu em 1976 com a prova apresentada por Appel e
Haken para a conjectura das quatro cores.
Conjectura das quatro
cores
Em 1976 aconteceu uma coisa rara: a notícia da demonstração de um teorema
de Matemática pura foi publicada nas colunas do New York Times. A ocasião foi a demonstração, por Kenneth Appel e
Wolfgang Haken, da “conjectura das quatro cores”. O acontecimento foi notícia
por duas razões. Em primeiro lugar o problema era famoso. A conjectura das
quatro cores era estudada há mais de cem anos. Tinha havido muitas tentativas
falhadas para a resolver — agora, por fim, tinha sido demonstrada. Contudo, o
próprio método de demonstração era digno de nota. Isto porque uma parte
essencial da demonstração consistia em cálculos por computador. Ou seja, a
demonstração publicada continha programas de computadores e resultados de
cálculos desses programas. Os passos intermédios, de execução
dos programas, não foram, é claro, publicados; neste sentido, as
demonstrações publicadas estavam em princípio
e permanentemente incompletas.
O problema das quatro cores consiste em demonstrar que qualquer mapa, numa
superfície plana ou numa esfera, pode ser colorido sem utilizar mais de quatro
cores diferentes. A única exigência é a de que quaisquer dois países com uma
fronteira comum não tenham a mesma cor.
Philip
Davis e Reuben Hersh, 1995
A experiência
matemática
O que Appel e Haken apresentaram foi uma prova por indução que requer a
análise de diversos casos. Se se excluir a intervenção do computador há na
prova uma lacuna intransponível que não pode ser preenchida com passos
reconstituídos pelos matemáticos. É como se um dos lemas principais da prova
fosse justificado com a expressão “como diz o computador” em lugar de ser
justificado pelo recurso a resultados anteriormente estabelecidos ou a regras
da lógica. Logo, a única possibilidade de verificar a prova de Appel e Haken
foi utilizar um outro computador independente, o que torna a prova apresentada
dependente da fiabilidade da máquina e do programa. Embora muitos sintam que
esta fiabilidade é suficientemente elevada para garantir a aceitação do
teorema, ela apoia-se num conjunto complexo de factores empíricos, o que não
acontece com as provas matemáticas tradicionais. Ou seja, a avaliação da
demonstração apresentada depende, não apenas da capacidade de análise da
comunidade matemática para compreender e verificar raciocínios, mas também da
sua crença de que os computadores fazem correctamente o que é suposto que
façam. Esta convicção aproxima o conhecimento matemático do conhecimento
vulgar, podendo, assim, parecer que há uma certa degradação do grau de certeza
que viola a própria natureza da Matemática.
Não é, pois, de estranhar que a publicação do trabalho de
Appel e Haken tenha gerado tantas controvérsias. Afinal, a aceitação do teorema
das quatro cores põe em causa o sentido de “teorema” e, mais precisamente, o
sentido de demonstração que durante séculos esteve associado à Matemática.
Computador e experimentações empíricas em Matemática
Usar computadores de modo análogo ao que foi utilizado para provar o
teorema das quatro cores, conduz à possibilidade de dois tipos de prova em Matemática:
(a) as provas clássicas, em que todos os resultados podem ser verificados por
matemáticos interessados e (b) as provas onde intervém o computador e cuja
validade não pode ser estabelecida por análise lógica pois há passos que só
podem ser ultrapassadas recorrendo a essa tecnologia. Admitir a legitimidade
das provas do tipo (c) introduz experimentações empíricas em Matemática,
aproximando esta ciência das ciências experimentais. Este facto tem algumas
consequências filosóficas. Representa a aceitação de processos quasi-empíricos
em Matemática[21]; abre as portas à existência de conhecimento matemático a posteriori; desafia a distinção
absoluta entre Matemática e ciências naturais; deixa em aberto diversas
questões entre as quais explicar o papel das experiências em Matemática pura,
qual o estatuto das provas assistidas por computador e quais os critérios
matemáticos de aceitação dessas provas.
Actualmente multiplicam-se os casos em que os computadores são usados para
produzir provas matemáticas. Não há muito tempo foi publicada nos orgãos de
comunicação social[22] uma notícia que indica que um novo programa de computador, desenvolvido
nos Estados Unidos, demonstrou automaticamente a conjectura de Robbins. Esta
conjectura foi formulada nos anos 30 e durante décadas suscitou o interesse de
muitos matemáticos que foram fazendo progressos parciais sem a conseguirem
provar completamente. Aqui o que se passou foi qualitativamente diferente do
que aconteceu com a prova do teorema das 4 cores. Enquanto neste a estratégia
de demonstração foi concebida pelo homem, limitando-se o programa a explorar um
conjunto bem delimitado de possibilidades, no caso do problema de Robbins foi o
próprio programa que explorou milhões de hipóteses até que encontrou uma
estratégia que levou à resolução.
Ao lado desta notícia aparece um endereço electrónico que permite aceder à
página da Internet onde se poderá encontrar, não apenas a demonstração do
teorema de Robbins, mas também informações sobre os avanços da inteligência
artificial na demonstração automática de teoremas[23].
E provável que este acesso fácil que o computador permite
às redes de informação introduza alterações muito variadas nas práticas
matemáticas reais, que o tempo e a investigação se encarregarão de desvendar.
Facilitará, sem dúvida, a partilha de conhecimentos e o debate de ideias e
nessa medida será um estímulo importante à actividade de produção matemática.
2.6 - A concluir
A constatação de que posições filosóficas sobre a
Matemática influenciam, e têm influenciado, de forma significativa conceitos e
princípios orientadores relacionados com o seu ensino e aprendizagem, tem vindo
a ganhar cada vez mais terreno. De facto, situarmo-nos na perspectiva de ajudar
quem aprende a compreender um corpo de saberes matemáticos que é o produto
contingente de forças evolutivas históricas e culturais, é um problema
diferente de ensinar segundo uma perspectiva que supõe a existência de um saber
matemático imutável, eterno, fortemente estruturado, infalível, rigoroso e
abstracto por natureza, que é exterior aos alunos, mas que estes podem receber
do professor através de mecanismos de transmissão, imitação e absorção.
Na base de muitas das actuais orientações para o ensino
da Matemática, está a ideia de que saber matemática é sobretudo fazer
Matemática. Simultaneamente, advoga-se que para
aprender Matemática de maneira significativa e útil, importa participar na
actividade matemática, considerada nas suas múltiplas vertentes, e não apenas
adquirir conhecimentos e competências explicitamente indicados pelo professor.
A questão do que significa fazer Matemática tem, contudo, diversas
respostas consoante a perspectiva epistemológica que se adopta sobre esta
ciência. E assim sendo, as controvérsias acerca do ensino da Matemática
dificilmente poderão ser resolvidas sem se reflectir sobre a natureza da
Matemática e dos processos de produção do saber matemático. Daí a grande
importância da temática deste capítulo para o professor de Matemática.
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[1] Capítulo 2
do livro Ponte, J. P., Boavida, A., Graça, M., & Abrantes, P.
(1997). Didáctica da matemática. Lisboa: DES do ME.
[2] J. Dieudonné (1990, p. 47). As citações
incluídas no texto serão identificadas em nota de fim de capítulo através da
indicação do nome do autor, da data da publicação de que a citação foi extraída
e da página ou páginas em que se encontra. A restante identificação da
publicação será feita nas Referências.
[3] Muitas das
ideias da teoria empiricista de Mill sobre a matemática estão incluídas no seu
livro System of logic (1943). Bloor,
no cap 5 de Knowledge and social imagery,
intitulado A naturalistic approach to
mathematics, apresenta uma síntese desta teoria bem como uma análise
crítica dos principais argumentos propostos por Frege para a contestar.
[4] M. Kline (1989, p.
140).
[5] P. Davis e R. Hersh (1988, p. 52).
[6] D. J. Struik (1989, p. 78).
[7] D. J. Struik (1989, pp. 90-91).
[8] Números
cuja forma é a+bi+cj+dk, em que i2 = j2 = k2 = -1
[9] M. Kline (1989, p. 175).
[10] A expressão
mito de Euclides é utilizada por
Davis e Hersh para destacarem a ideia de que durante séculos foi crença
generalizada que os livros de Euclides continham verdades acerca do Universo
que eram claras e indubitáveis.
[11] Segundo
Snapper (1979) no contexto do logicismo uma proposição lógica é definida como
uma proposição que tem generalidade completa e é verdadeira em virtude da sua
forma em vez do seu conteúdo. Neste sentido, por exemplo, o princípio do
terceiro excluído (p v ~p é sempre verdadeiro) é uma proposição lógica pois p
pode ser uma proposição da matemática, da física ou outra qualquer.
[12] P. Davis e R. Hersh (1988, p. 56).
[13] P. Ernest
(1991, p. 14), referindo Lakatos.
[14] I. Lakatos
(1993, p. 5).
[15] A
designação é proposta, nomeadamente, por Tymoczko (1986) que refere que esta
abordagem tem sido objecto de uma adesão cada vez maior, embora não constitua
uma representação completa da filosofia da Matemática contemporânea.
[16] R. Hersh (1986, p. 22).
[17] S. Restivo
(1988, p. 18).
[18] S. Papert
(1980). Papert inclui na face extra-lógica da matemática a beleza matemática, o
prazer matemático e a intuição matemática. O livro Mindstorms - Children, computers and powerful ideas, onde Papert
refere estas ideias, tem uma tradução brasileira intitulada Logo: Computadores e educação, publicada
pela primeira vez em 1985 por Editora Brasilience São Paulo.
[19] S. Papert
(1980). O teorema que indica que raiz quadrada de 2 é um número irracional foi
escolhido exactamente por o matemático inglês Hardy o ter considerado como um
dos mais puros exemplos de beleza matemática.
[20] Esta
expressão é usada por Pavelle, Rothestein e Fitch (1991), para indicar que o
computador, através da utilização de sistemas automáticos de manipulações
algébricas, permite explorar expressões algébricas frequentemente incluídas em
teorias científicas, que são extremamente difíceis de explorar ‘à mão’.
[21] Tymoczko,
T. (1986) vai mais longe, afirmando que aceitar a legitimidade do teorema das
quatro cores conduz a adoptar uma teoria quasi-empírica da matemática.
[22] Ver, por
exemplo, Expresso 15/2/97.
[23] A
formulação e demonstração do teorema de Robbins, bem como as informações que
foram fornecidas ao computador podem ser obtidas no endereço
http://www.mcs.anl.gov/