VIAGEM DE LIMUSINA

O amigo em casa de quem fiquei tinha-me aconselhado:

— Quando te fores embora, não vás de taxi para o aeroporto. Marca de véspera uma limusina. Fica-te mais barato, o preço é fixo e estão cá à hora combinada.

E contou-me que costumava usar sempre os serviços da mesma empresa.

— São simpáticos e têm todos um sotaque estranho cuja origem ainda não identifiquei.

No dia da partida, à hora marcada, tocaram à porta. Era a limusina. Meti os sacos no porta bagagem e sentei-me à frente, ao lado do motorista, preparando-me para a viagem demorada que os engarrafamentos prometiam. E já agora gostava de saber de onde eram os motoristas da empresa...

A conversa começou pelas trivialidades habituais do trânsito. Não havia dúvida: o motorista tinha um sotaque pouco habitual. A certa altura não resisti e perguntei-lhe de onde era.

— De muito longe — e sorriu. — Da Ucrânia.

— E como é que veio aqui parar?

— Quer mesmo saber? É uma longa história.

E contou-a. O pai era judeu e durante a segunda guerra, juntamente com o melhor amigo, foi preso pelos alemães e mandado para um campo de concentração.

— A minha mãe, que era de origem polaca, conseguiu fugir comigo e escapámos. O meu pai morreu no campo mas o amigo sobreviveu e acabou por ir para a África do Sul. Estabeleceu-se no comércio de diamantes e enriqueceu. Há sete anos adoeceu e resolveu encerrar os negócios e ir viver para Israel. A certa altura, pôs-se a pensar no que seria feito da família do seu melhor amigo e da qual nunca mais tinha sabido notícias. Meteu-se num avião e foi à Ucrânia.

Falava com entusiasmo e por vezes com tristeza.

— Embora a minha mãe já tivesse morrido, ele acabou por me descobrir. Quando viu como eu vivia, insistiu que eu tentasse ir para a América. Ajudou-me a tratar dos papéis e saí de lá como turista. Atravessei a Europa e cheguei clandestino a Nova York. Tinha-me dado 5000 dólares para eu poder viver nos primeiros tempos. Já viu? 5000 dólares. Acha que haverá mais alguém no mundo capaz de fazer uma coisa assim?

E continuou:

— O amigo do meu pai tinha-me dado também o contacto desta empresa de automóveis. Os donos são judeus ucranianos. Ao quarto dia já estava a trabalhar. Mas repare. De inglês só sabia dizer "good morning" e "thank you" e não conhecia nada da cidade. Era terrível. Ainda por cima, como estava clandestino, não podia ter qualquer problema com a polícia. O stress era tanto que, ao fim do dia, julgava que ia morrer. Foi duro, muito duro. Mas agora já falo razoavelmente e conheço a cidade perfeitamente.

Olhou para o relógio e acrescentou convicto:

— Vamos chegar ao aeroporto às 6 menos 10.

Perguntei-lhe se tinha cá família.

— Nos três primeiros anos vivi sozinho. Quando finalmente consegui regularizar a situação mandei vir a mulher e o filho. — E sorriu. — Agora estamos outra vez juntos. É muito melhor assim.

Foi a vez de ele querer saber de onde eu era. Disse-me então que não conhecia nada de Portugal, só tinha passado por Espanha. Trocámos algumas impressões sobre a viagem e foi então que lhe perguntei o que fazia na Ucrânia

— Era professor.

— Professor? Ah! Eu também — admirei-me. — E de quê?

— De tecnologia mecânica, numa escola técnica. E o senhor?

— De matemática.

Afinal éramos colegas. Ou tínhamos sido.

— Quanto ganha um professor em Portugal?

Lá lhe disse. Ficou pensativo. A limusine parava e arrancava, no meio do engarrafamento. De súbito, meteu a mão ao porta-luvas e tirou um caderninho. Folheou-o e apontou para o fundo de uma página com contas.

— Olhe, isto foi o que ganhei ontem, já depois de descontadas as despesas: 198 dólares.

Voltou uma página atrás.

— Aqui está o de anteontem: 185.

Mais páginas para trás, cada vez com mais entusiasmo.

— Estas são as contas da semana passada: 975 dólares limpos. Está a ver? Vale a pena, não acha? É muito mais que a dar aulas. Tem carta de condução, não tem? Não quer vir para cá?

Ri-me e expliquei-lhe que gostava muito do que fazia. Não queria trocar.

— Nunca se sabe. Pense bem.

Guardou o caderno e tirou um cartão onde escreveu um número.

— Este é o cartão da empresa. Se mudar de ideias, já sabe. É só telefonar e mandar chamar o motorista 232. Eles lá têm-me amizade e garanto-lhe que lhe arranjo um lugar. Começa logo a trabalhar. Ao princípio vai-lhe custar mas depois entra no ritmo. E passado uns tempos há-de conseguir legalizar os papéis.

Agradeci-lhe e guardei o cartão. Entrámos no aeroporto.

— Peço-lhe desculpa, mas falhei — e sorriu.

Olhei para o relógio. Eram 6 menos 9.

Saiu para me ajudar a tirar a bagagem.

— Mas isto é pesadíssimo! — admirou-se.

— São livros, sabe.

— Ah! — e fez um ar de compreensão.

Pousou as malas no passeio e olhou-me quase com ternura.

— Não se esqueça, pode contar comigo.

E abraçou-me.

José Paulo Viana