TEM A MATEMÁTICA IMPACTO CULTURAL?

 

J. M. S. Simões Pereira, Universidade de Coimbra e ISLA-Leiria                                     

               

Não pretendo com este escrito fazer um ensaio, pois para tal me falta a competência de quem possui uma educação formal em Filosofia ou de quem é profissional nas áreas das Humanidades. Apenas me proponho meditar e abrir essa meditação a quem me ler no sentido em que todos gostamos de o fazer se e quando para isso temos tempo. Quanto a mim, por vezes ainda consigo essa experiência magnífica que muita gente diz não conseguir: Parar para pensar! Será uma experiência rara nos nossos dias mas a meu ver não deixa de ser vital. E como a minha área de trabalho é a Matemática é no seu contexto que encontro os temas que mais me fascinam. De alguns aqui falarei. Não me dirijo contudo a matemáticos. Esforçar-me-ei pois por escrever sem recorrer a qualquer terminologia especializada.

 

 

Mary Dolciani foi um gigante no mundo da Pedagogia. Antes de estabelecer a fundação que hoje tem o seu nome, foi autora de livros escolares que foram adoptados por centenas de escolas nos EUA e dos quais se tiraram milhões de exemplares. Tive o privilégio de a conhecer pessoalmente quando trabalhei no Departamento de Ciências da Computação na mesma universidade, em Nova Iorque, onde ela trabalhava no Departamento de Matemática. E ouvi-a dizer um dia, não sei se ironicamente se apenas com humor, que a Matemática está conosco há 4 ou 5 milénios e vai continuar a estar, se a espécie humana sobreviver, pelo menos outros tantos, enquanto algumas tecnologias muito atraentes e excitantes que existem há 4 ou 5 décadas poderão estar esquecidas ou pelo menos obsoletas daqui a outras tantas.  Não referiu quais! Mas concordei!

 

 

Permanência pois, é esta uma característica da Matemática!

 

 

Eu creio que é esta permanência da Matemática uma das características que mais a distingue das outras Ciências. O fascínio e a busca do Absoluto - o que quer que isso realmente seja -  são uma constante na história da Humanidade e a Matemática parece ser, de todas as Ciências, aquela que enforma a melhor aproximação ao Absoluto.

 

 

Para aqueles que a cultivam, e para o público em geral, à Matemática se associa uma certa maneira de ser.  Na Matemática parece não haver erros, nem mentiras consequentemente, que serão  erros propositados. Parece assim que quem a cultiva deverá desenvolver uma certa aversão à mentira, deverá crescer num plano ético. Se tudo fosse tão linear, o impacto cultural da Matemática até se sentiria pois ao nível da Ética! De qualquer forma, dessa maneira de ser derivará o seu impacto cultural, seja ele efectivo ou potencial, tácito ou expresso. A ela se associa uma ideia de rigor, de coerência, de infalibilidade. Além disso e também muito importante, é que nela, o adquirido é conservável. O seu progresso, como é consensual dizer-se, faz-se principalmente por adição enquanto o das outras Ciências e Tecnologias se faz principalmente, embora não exclusivamente, por substituição. Veja-se como, em Medicina, uma terapêutica dá lugar a outra mais eficaz ou mais inócua, como, na Engenharia, um material é substituído por outro mais resistente ou duradouro, como, mesmo na Física que é uma ciência básica, uma teoria dá lugar a outra que por vezes até a contradiz. Na Matemática porém, a lista dos primeiros cem números primos, a fórmula que dá o volume do cubo, o teorema de Pitágoras não vão ser substituídos. Encontrar-se-ão sem dúvida mais números primos, mais fórmulas, mais teoremas que se juntarão aos já conhecidos mas sem os substituir e mesmo sem os tornar obsoletos no que têm de essencial... A Matemática é assim um lugar paradigmático onde o velho coabita com o novo, o que não garante contudo a posse de um Absoluto. Pois que, se nas outras Ciências o Absoluto obviamente não existe, ele também não existe na Matemática. O nosso século assistiu a um evento fantástico, dir-se-ia saída de um enredo de ficção científica ou de história de terror: é que precisamente no seu núcleo mais central, nos seus fundamentos lógicos, a Matemática encontrou as suas próprias limitações. Só que esse acontecimento histórico tem passado despercebido ao grande público.

 

 

Em termos da nossa sociedade mediática, diremos que o grande público ainda o não sabe mas a Matemática teve de aprender a viver com a sua incompletude, a sua incoerência, a sua indecidibilidade.  São três conceitos que ainda não entraram no dia-a-dia de todos nós. Ainda se continua a dizer "Isto é matemático!" ou "Os números não mentem!" para se significar um método rigoroso de trabalho, uma lógica irrefutável, uma argumentação coerente e completa que tudo decide e não permite mais debate... Como as palavras estão mal escolhidas! Com o tempo, creio que irão entrar também no uso corrente os três conceitos acima mas isso significará uma nova visão do cidadão anónimo sobre o mundo, uma relação nova com a verdade - embora também não saibamos o que ela realmente seja -  uma postura que hoje ainda não se assume e que vai provavelmente alterar toda a filosofia das relações humanas... Isto se for possível embeber o cidadão comum dos princípios com os quais a Matemática, este século, teve de aprender a viver...

 

 

Permito-me dar sobre tais conceitos uma explicação muito simples.

 

 

Ao trabalhar em Matemática usamos sempre sistemas de axiomas. Quer dizer, partimos de primeiros conceitos que aceitamos sem os definir por não os podermos explicar em termos de outros mais simples, e de proposições chamadas axiomas que aceitamos sem as provar porque são pontos de partida e não consequência de outras anteriores. Esta maneira de trabalhar permitiu construir teorias extraordinariamente poderosas, algumas das quais de grande valor pragmático quando testadas em aplicações práticas,  mas levou também à descoberta de muitos paradoxos. E foi ao tentar esclarecê-los que ficámos a saber, sobretudo desde os trabalhos de Kurt Goedel há uns 60 anos, que qualquer sistema destes, qualquer sistema de axiomas, que não seja trivial, levará necessariamente ou à incompletude - quer dizer ao enunciado de afirmações cuja veracidade jamais se poderá provar ou negar -  ou à incoerência -  quer dizer ao enunciado de afirmações que se podem provar verdadeiras e cuja negação também se pode provar verdadeira. Assim foi que a Matemática encontrou no seu âmago as suas próprias limitações!

 

 

Postos perante estes resultados, o que pensarão os que acreditam que a razão humana tudo pode? Será possível humilhar mais o género humano na sua convicção de que é superior porque é racional? Ou será precisamente porque foi capaz de chegar a uma tal conclusão, que o género humano encontrou mais um motivo para se orgulhar da sua inteligência?

 

 

E eis que de facto outras perspectivas nos podem igualmente encher de orgulho. Foi Hilbert quem perguntou, ao virar do século XIX para o XX, se não haveria um algoritmo - ou "receita mágica" - que permitisse partir de um sistema de axiomas e, mecânicamente, nos nossos dias usando talvez um computador, produzir, ao fim de mais ou menos tempo, todas as proposições verdadeiras que dele se pudessem deduzir. Questão que em geral se reformula como a de decidir, para cada proposição construída no sistema, se ela é verdadeira ou falsa ou uma das que, devido à incompletude, não pode ser resolvida. É o problema da decidibilidade. Ora sabemos também desde os trabalhos de Church, Turing e outros na década de 1930, que jamais existirá tal algoritmo. Portanto a criação matemática jamais será mecanizada ou automatizada.

 

 

É agora a vez de perguntar aos que acreditam na "omnipotência" do computador: Será possível exaltar mais o génio humano?

 

 

Considero estes desenvolvimentos um dos maiores triunfos do século XX. E interrogo-me como cidadão quando é que as consequências culturais destes resultados começarão a chegar ao grande público, através da sua elaboração por pensadores e filósofos não necessariamente matemáticos, através da sua divulgação a nível escolar, através do contacto generalizado que com eles terão as novas gerações.

 

 

Os temas que acabo de aflorar têm a ver com "estudar e pensar". Mas o impacto cultural da Matemática também tem certamente a ver com temas num contexto de "estudar e agir". Ao lado pois da Matemática teórica, pura ou nuclear que evoca torres de marfim e gente que tropeça nas pedras do caminho enquanto procura inspiração olhando as nuvens, há um mundo imenso que é a Matemática aplicada cujo impacto podemos facilmente encontrar no nosso quotidiano. Repare-se que é com a Matemática que se quantifica e nós vivemos o dia-a-dia a quantificar: quanto tempo, quanto dinheiro, quanto espaço, que distância... são perguntas que fazemos a cada momento procurando respostas que condicionam a nossa vida. Sem disso nos apercebermos, a nossa linguagem usa e abusa de expressões matemáticas. Quantas vezes ouvimos dizer, a pessoas dos mais variados ramos de actividade, que é preciso "equacionar o problema", "perspectivar a questão", "pautar-se por certas coordenadas", "agir em função de certos parâmetros", "estabelecer prioridades",  "optimizar actuações"?

 

 

É o impacto da Matemática na linguagem. As pessoas que assim falam não são matemáticos; algumas passaram pela escola sem especial simpatia por esta disciplina. Mas ao usarem no seu discurso estas expressões reconhecem tacitamente que o tal rigor, a tal coerência, a tal infalibilidade, o tal método proverbiais que já referi concedem aos seus argumentos importância, clareza, respeitabilidade. Por isso eu penso que um grande desafio dos ensinantes e educadores é levar os jovens a assumir o uso do raciocínio e dos métodos da Matemática, a não escamotear essa atitude, a aperfeiçoá-la para que o seu impacto na vida, na cultura e na acção se torne mais transparente. E isto independentemente de os introduzir no universo dos resultados sobre os seus fundamentais sistemas axiomáticos que sumariamente descrevi.

 

 

De uma maneira ou doutra a Matemática tem penetrado cada vez mais em todas as actividades de desenvolvimento e investigação. Desde a teoria das catástrofes e o seu papel no estudo dos mercados financeiros, à teoria dos conjuntos e da lógica fluidos e a sua aplicação à gestão empresarial, desde a teoria dos números primos e da divisibilidade dos inteiros e o seu uso em protocolos de telecomunicações e em criptologia, à combinatória sem a qual a biologia molecular e a genética, a sociometria e a própria organização da representatividade democrática seriam impensáveis, tudo são tópicos que já constituem verdadeiras especialidades científicas. E todas contribuem para criar uma nova maneira de estar no mundo, uma nova filosofia, uma nova cultura.

 

 

São porém áreas que quem não é matemático nem suspeita que assentam na Matemática! E em todas elas as diversas vertentes do pensamento matemático têm o seu papel mas sempre com o traço comum que é o de modelar, quantificar e medir. Aliás neste contexto do medir se situa uma das áreas polémicas das suas aplicações. Dir-se-á que ao quantificar estamos a diminuir a margem de subjectividade, e nesse sentido, estamos a lutar contra a alienação e a fraude. Ao desenvolverem a Geometria para poderem medir os seus campos, os antigos egípcios dão mostras de respeitarem princípios de honestidade. Mas medir não é uma operação trivial.  Na Física, na Química, na Engenharia há muito que se trabalha com modelos matemáticos que permitem e exigem fazer medições. Mas hoje a operação de medir estendeu-se a outros domínios. Claro que são necessários novos modelos, escalas, padrões e alguma sofisticação. O "bit" foi o primeiro milagre dos tempos mais recentes, ao ser inventado para medir a quantidade de informação. Já tem direitos de cidadania e já não perturba ninguém. Onde a polémica se acentua é onde a Ciência quer medir o que alguns querem, e outros não querem, que se meça. Quem não ouviu falar de inflação, de crescimento (económico), de desenvolvimento (social), de qualidade do meio ambiente, de qualidade de vida? E da produtividade dos trabalhadores? E da eficiência de uma administração? E da democraticidade de uma instituição? E do poder, seja ele económico, militar ou político, seja ele de um país, de um exército, de um partido, de uma multinacional, de uma pessoa ou de um "lobby"? Pois bem, tudo isto se mede, e cada vez melhor, graças a modelos, técnicas e metodologias sem dúvida interdisciplinares mas onde é fundamental o papel da Matemática aplicada. Só que medir - argumentam alguns - desumaniza o que é medido e a maneira como nós o encaramos. O que levou o grande pioneiro S. S. Stevens a afirmar que "quando a descrição dá lugar à medida, o debate dá lugar ao cálculo". Poderemos profetizar o fim do debate? E com ele, então, sim, o tão discutido fim da História? Não sabemos. Mas nas esferas do poder, nas elites ou vanguardas da sociedade humana, há muitos que vivem à custa do debate. Não admira portanto que se sintam ameaçados e é uma reacção natural que, até só por isto, eles queiram sufocar a Matemática!  Saibamos nós todos, cidadãos conscientes e sensíveis aos fenómenos da cultura, e da ética que também é cultura, "medir" sempre as consequências das nossas opções!

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Publicado na ZACUTO - Revista Científica do ISLA-Leiria (ISSN:0874-1832), nº 2/3 (Dez.1998/Julho 1999), pg.87-93.