O
Ensino Superior em Portugal
João Filipe Queiró
Fundação Francisco Manuel dos Santos, 96 p., Lisboa 2017.
2.3. As missões do
Ensino Superior e o
sistema binário
A enorme expansão do Ensino
Superior transformou-o numa
realidade diversa e heterogénea, no plano das missões e no plano
institucional.
A necessidade de diversidade da oferta formativa foi
compreendida há décadas,
em ligação com o aumento e a diversificação da procura
estudantil. A públicos
cada vez mais variados, nos interesses, motivações e
expectativas, e às
necessidades da economia, tinha de responder uma oferta também
ela cada vez
mais diversificada. Foi este o argumento que levou à criação do
Ensino Superior
Politécnico há quatro décadas, traduzida essencialmente no
estabelecimento de institutos
politécnicos, alguns dos quais integraram escolas técnicas já
existentes (institutos
industriais e comerciais, escolas do magistério primário,
escolas agrícolas).
O ensino politécnico foi
concebido como Ensino Superior de
curta duração, com o objectivo de formação de técnicos
especialistas de nível
intermédio. Esta importante missão foi reafirmada, desde há 40
anos, por todos
os governos e leis, porque corresponde a necessidades objectivas
dos
portugueses e do país. Colocada ao lado da missão das
universidades, deu origem
ao chamado “sistema binário” na organização do Ensino Superior
português.
O sistema binário corresponde à
existência de duas missões
distintas para o Ensino Superior no plano da formação: as
formações técnicas
curtas, destinadas a profissões
existentes para
as quais a formação necessária excede a que pode ser
proporcionada pelo Ensino
Secundário (exemplos: técnicas de engenharia, contabilidade,
enfermagem,
tecnologias de saúde, técnicas agrícolas, formação de
professores do 1.º e 2.º
ciclo do Ensino Básico, artes performativas); e as formações
longas, sejam as
profissionalmente mais direccionadas, com necessidade de estudos
extensos
(exemplos: medicina, engenharia, direito), sejam as formações
culturais,
científicas e tecnológicas mais profundas e abrangentes
(exemplos: humanidades,
ciências exactas e naturais, ciências sociais e económicas). A
primeira destas missões
cabe ao ensino politécnico, a segunda ao ensino universitário.
Uma tal distinção de missões poderia
ter sido
operacionalizada de várias maneiras, fosse no plano
institucional fosse através
de diferentes “catálogos” de formações. A mesma questão põe-se
em todos os
países. A via da separação institucional é a solução mais
frequente e foi
também a escolhida entre nós.
O critério de distinção das
formações politécnicas
relativamente às universitárias – duração curta e carácter
técnico dos cursos –
não tem sido fácil de levar à prática, havendo alguma
sobreposição de cursos e
designações entre os dois subsistemas, com culpas de ambas as
partes. Mais
grave do que isso é que, desde cedo, uma parte dos dirigentes
dos institutos
politécnicos públicos começou a fazer campanha pela alteração da
missão das suas
instituições. Os cursos nelas ministrados eram geralmente de
três anos, com a
designação de bacharelato (nome que também existira nas
universidades). Logo em
meados dos anos 80 nasceram nos politécnicos os Cursos de
Estudos Superiores
Especializados, que, justapostos aos bacharelatos, ficavam, para
alguns efeitos,
equiparados às licenciaturas universitárias. Dez anos depois, os
politécnicos
passaram legalmente a conferir o grau de licenciado e começaram
a reclamar a
possibilidade de organizar mestrados. Mais dez anos e a reforma
de Bolonha – de
que falarei adiante – rebaptizou os cursos de três anos como
licenciaturas e as
antigas licenciaturas como mestrados, começando alguns
dirigentes dos institutos
politécnicos públicos a afirmar que deveriam também conferir
doutoramentos.
O argumento é quase sempre o mesmo:
um défice de prestígio
ou consideração social em comparação com as universidades. Mais
recentemente,
alguns dirigentes afirmam que os politécnicos devem poder
conferir
doutoramentos porque teriam as competências para tal, e
chamar-se universidades.
O argumento do “prestígio pelo nome” é muito português. No nosso
país julga-se
ainda que o valor das coisas vem do nome que têm. Mudar o nome
das coisas, em
Portugal, substitui muitas vezes para efeitos de imagem o mudar
das próprias
coisas. Quanto à possibilidade de conferir o grau de doutor,
diz-se que a
actual restrição é uma limitação à actividade dos politécnicos e
ao seu desenvolvimento
institucional. Fala-se também na necessidade de os politécnicos
formarem o seu
corpo docente.
Talvez estas reivindicações sejam um
último
afloramento de uma visão antiquada de um Ensino Superior
“formador-de-doutores”,
em que as pessoas têm as expectativas dos pais na
cabeça, num mundo que
já não existe.
As mudanças reclamadas por alguns
dirigentes seriam,
se concretizadas, um grave erro no plano das políticas públicas
e uma péssima
notícia para o país, com os politécnicos a afastarem-se
irremediavelmente da
sua missão original.
Em primeiro lugar, o prestígio e o
reconhecimento
social vêm, devem vir, antes de tudo, de se cumprir bem a missão
que nos foi
atribuída. Em segundo lugar, o nome não é o mesmo que a coisa:
algumas das
melhores instituições de Ensino Superior do mundo chamam-se
institutos
politécnicos, ou escolas politécnicas, ou institutos de
tecnologia: não consta
que o nome lhes faça mal algum (para já não falar do “prestígio”
das várias
universidades portuguesas encerradas por indecente e má
figura...). Finalmente,
Portugal não precisa seguramente de mais universidades, ainda
por cima fracas
como universidades.
Mas a questão crucial é a da missão
dos institutos
politécnicos. Em nenhum dos considerandos dos referidos
dirigentes há uma única
referência à missão dos politécnicos, os quais neste momento –
está claro para
todos, incluindo os sucessivos governos – têm a enorme
responsabilidade de
alargar a base de “recrutamento” de jovens (e adultos) para o
Ensino Superior,
mediante o desenvolvimento consistente de formações curtas,
fortemente
profissionalizantes, em ligação com as economias dos seus
territórios de
implantação. O cumprimento da missão dos politécnicos
não é opcional e está muito acima de
interesses
particulares e “estratégias de desenvolvimento”. É mais
importante para
Portugal que os politécnicos cumpram a missão para que foram
criados – e que é
mais actual do que nunca – do que andem à procura de um pseudo-status
na
secretaria. O ponto está aqui: os politécnicos existem
para corresponder
a missões e necessidades específicas, não existem para satisfazer
os
interesses, inclinações ou vontades dos seus dirigentes ou de
alguns dos seus
docentes.
E temos um facto simples: se os
politécnicos
abandonassem a missão que lhes está cometida pelo país, essa
missão e as
necessidades que a justificam não
desapareceriam. Portugal
teria de investir na criação de uma nova rede de instituições
para cumprir a
crucial missão abandonada: a de aumentar o número de portugueses
com formação
pós-secundária, mediante a diversificação da oferta e a aposta
nos cursos
curtos, técnicos, profissionalizantes, tão importantes para a
eliminação do tão
falado skills
mismatch – o desencontro entre os recursos
humanos
existentes e as necessidades da economia – e portanto para a
criação de emprego
e o desenvolvimento do país. Ou seja: Portugal teria de criar o
ensino
politécnico outra vez, porque os actuais politécnicos, em busca
de prestígios
miríficos, teriam fugido à sua missão.
Quanto ao argumento da necessidade
de os
politécnicos formarem o seu corpo docente, bastará referir que
por todo o lado
a tendência é para o afastamento desse modelo e para o abrir de
oportunidades
aos jovens doutorados.
A única via institucional possível
alternativa à
actual seria, não a transformação dos politécnicos em
universidades, mas a
integração dos politécnicos em universidades (o modelo de Aveiro
e do Algarve),
ou em regiões académicas dirigidas pelas universidades. Isto
resolveria vários
problemas, desde a maior racionalização e articulação dos cursos
a uma gestão
dos recursos humanos com mais eficiência. Mas seria uma solução
exigente em
matéria de energia e “capital político”, já que provavelmente
nem as
universidades nem os politécnicos, por motivos diferentes, a
veriam com bons
olhos.
É sempre
difícil defender
um interesse público relativamente abstracto e não imediato
contra pretensões
sectoriais agressivas. Que nunca nenhum governo até hoje tenha
cedido na
questão dos politécnicos mostra bem como é claro e importante o
que está em
causa.