6 Hilbert: “Sobre o Infinito ”
(Tradução:
Walter A. Carnielli)
A estranheza dos resultados
acerca dos
infinitos distintos e a confusão engendrada pelo paradoxo de
Russel levaram
muitos matemáticos do começo do século XX a questionar a
legitimidade do uso de
coleções infinitas em matemática.
Uma
situação similar havia ocorrido no século anterior quando
Bolyai e Lobachevsky
desenvolveram as geometrias não-euclideanas. Basicamente, eles
mostraram que se
podia juntar aos demais axiomas da geometria a negação do
Axioma das paralelas
de Euclides, obtendo-se uma nova geometria, que embora
parecesse estranha e
contraditória com a realidade, devia ter uma consistência
interna.
Mais tarde foi mostrado
por Beltrami, Klein e Poincaré que, se a geometria euclideana
fosse livre de
contradições, então também o seriam as de Bolyai e
Lobachevsky. Isso se
conseguia exibindo-se um modelo das novas geometrias dentro da
geometria
euclideana. Portanto as novas geometrias eram pelo menos tão
seguras quanto a
geometria euclideana, cuja consistência não estava em questão.
David Hilbert teve um
papel fundamental na formalização dessas geometrias. No seu
livro Grundlagen der
Geometrie de 1899
(traduzido para o inglês como Foundations
of Geometry), ele apresenta uma axiomatização da
geometria plana que contém
um núcleo de axiomas aos quais se pode adicionar o axioma das
paralelas de
Euclides ou sua negação, na forma dada por Riemann. Ele então
provou um número
suficiente de teoremas no seu sistema formal para mostrar que
os dois tipos de
geometria poderiam ser completamente caracterizados pelas suas
axiomatizações.
Mais tarde Hilbert
pensou em prosseguir nessa direção com a finalidade de
justificar o uso do
infinito em matemática. Havia diversas axiomáticas disponíveis
para a teoria
dos conjuntos por volta de 1920. A dificuldade era mostrar que
pelo menos uma
delas era livre de contradições. Na sua famosa conferência,
apresentada aqui,
Hilbert proclama que não há nenhuma razão, a partir das
teorias físicas do
universo, para se acreditar que exista alguma coisa no mundo
que corresponda a
uma coleção infinita. Portanto, não há possibilidade de
justificar uma
axiomática envolvendo infinito por um modelo físico. Como
poderia então Hilbert
justificar o infinito em matemática?
O texto a seguir, que
pode ser considerado como um manifesto ao chamado “Programa de
Hilbert”, é
bastante longo e de difícil compreensão numa primeira leitura.
Recomendamos uma
releitura após termos estudado como o Programa de Hilbert foi
formalizado e se
ele pode ou não ser bem sucedido. Não obstante, o leitor deve
ser capaz de
responder aos exercícios no final do capítulo.
“Sobre
o Infinito “
por David Hilbert [1]
Weierstrass, através de sua
crítica
penetrante, conseguiu uma sólida fundamentação para a análise
matemática.
Elucidando, entre outros, os conceitos de mínimo, função e
quociente
diferencial, ele removeu as falhas que ainda persistiam no
cálculo
infinitesimal, livrou-o de todas as noções vagas a respeito do
infinitesimal e
desse modo resolveu definitivamente as dificuldades advindas
desse conceito.
Se em análise,
hoje, existe harmonia e segurança no emprego dos métodos
dedutivos baseados nos
conceitos de número irracional e limite e se mesmo nas
questões mais complexas
da teoria das equações diferenciais e integrais, não obstante
o uso das mais
variadas e engenhosas combinações de diferentes tipos de
limite, existe
unanimidade com respeito aos resultados obtidos, isso ocorre
substancialmente
devido ao trabalho científico de Weierstrass.
Contudo, a despeito
da fundamentação que Weierstrass obteve para o cálculo
infinitesimal, as
disputas a respeito dos fundamentos da análise ainda não
tiveram fim.
A razão dessas
disputas consiste no fato de que o significado do infinito para a matemática ainda não foi
completamente clarificado.
De fato, a análise de Weierstrass eliminou o infinitamente
grande e o
infinitamente pequeno, reduzindo as proposições
correspondentes a relações
entre magnitudes finitas. Contudo o infinito ainda aparece nas
séries numéricas
infinitas que definem os números reais e no conceito de
sistema de números
reais, o qual é concebido como uma totalidade completa e
terminada.
Em sua
fundamentação da análise, Weierstrass recorreu livre e
reiteradamente às formas
de dedução lógica envolvendo o infinito, como por exemplo,
quando se trata de todos
os números reais com uma certa
propriedade, ou quando se argumenta que existem
números reais com uma certa propriedade.
Portanto, o
infinito pode reaparecer disfarçado na teoria de Weierstrass,
escapando da sua
aguda crítica e daí segue que o problema
do infinito, no sentido indicado, é o que nós temos que
resolver de uma vez
por todas. Tal como nos processos limite do cálculo
infinitesimal, onde o
infinito no sentido do infinitamente grande e do infinitamente
pequeno acabou
se mostrando uma mera figura de linguagem, também o infinito
na forma de
totalidade, ainda utilizado nos métodos dedutivos, deve ser
entendido como uma
ilusão. Do mesmo modo em que operações com o infinitamente
pequeno foram substituídas
por operações com o finito que apresentam exatamente os mesmos
resultados e as
mesmas elegantes relações formais, os métodos dedutivos
baseados no infinito
devem ser substituídos por procedimentos finitos que produzam
exatamente os
mesmos resultados, isto é, que tornem possível as mesmas
cadeias de provas e os
mesmos métodos de obtenção de fórmulas e teoremas.
Esta é a
intenção da minha teoria. Ela tem por objetivo estabelecer de
uma vez por todas
a confiabilidade definitiva dos métodos matemáticos, o que o
período crítico do
cálculo infinitesimal ainda não conseguiu; essa teoria deveria
portanto
completar o que Weierstrass aspirou conseguir com sua
fundamentação da análise
e para a qual ele deu um passo essencial e necessário.
Mas a questão
da clarificação do conceito de infinito leva em consideração
uma perspectiva
ainda mais geral. Um leitor atento encontrará a literatura
matemática repleta
de disparates e absurdos que têm sua raiz no infinito. Assim,
por exemplo,
quando se afirma, à guisa de condição restritiva, que em
matemática rigorosa
somente um número finito
de deduções
é admissível numa prova – como se alguém houvesse obtido uma
prova com
infinitas deduções!
Velhas
objeções, que já se supunham há muito abandonadas, ainda
reaparecem em novas
formas. Por exemplo, apareceu recentemente a seguinte: embora
possa ser
possível introduzir um conceito sem perigo, isto é, sem obter
contradições e
mesmo que isso possa ser demonstrado, não está com isso a
introdução do
conceito ainda justificada. Não é essa precisamente a objeção
que havia sido
levantada contra os números complexos-imaginários quando se
dizia: “De fato,
seu uso não leva a nenhuma contradição. No entanto, sua
introdução não está
justificada, pois magnitudes imaginárias não existem”? Não;
se, além da prova
de consistência, a questão da justificação de uma medida tiver
algum sentido,
isso só pode consistir de seu grau de sucesso. Em qualquer
atividade o sucesso
é essencial; também aqui o sucesso é a suprema corte perante a
qual todos se curvam.
Outros autores
enxergam contradições – como fantasmas – mesmo onde nenhuma
asserção foi
proferida, a saber, no próprio mundo concreto das sensações,
cujo
“funcionamento consistente” é tomado como uma premissa
essencial. Eu tenho
sempre acreditado, contudo, que somente asserções e hipóteses
na medida que
estas conduzem a asserções por meio de deduções, podem
contradizer-se umas às
outras; a opinião de que fatos e eventos possam
contradizer-se uns aos
outros me
parece um exemplo primoroso de pensamento descuidado.
Através destas
observações quero apenas mostrar que o esclarecimento
definitivo da natureza
do infinito, muito mais do que
interessar ao conhecimento científico especializado, é
necessário para a
própria dignidade do
intelecto humano.
O infinito, como nenhuma outra
questão,
abala tão profundamente as emoções humanas;
o infinito, como nenhuma outra idéia,
tão frutiferamente tem estimulado a mente; o infinito, como
nenhum outro conceito,
necessita ser esclarecido.
Se quisermos
nos voltar a esta tarefa de clarificar a natureza do infinito,
devemos
primeiramente notar de maneira breve o sentido que na
realidade é dado ao
infinito. Vamos analisar primeiramente o que podemos aprender
da física. A
primeira impressão ingênua dos eventos naturais e da matéria é
a de
estabilidade e continuidade. Se considerarmos uma peça de
metal ou um volume de
um fluído, temos a impressão de que podemos dividi-los
indefinidamente, que
mesmo o pedaço menor deles ainda conservará as mesmas
propriedades do todo.
Porém, em todas as direções em que os métodos de investigação
da física da
matéria foram suficientemente refinados, chega-se às
fronteiras da
indivisibilidade, que não depende do fracasso de nossos
esforços, mas da
natureza própria das coisas. De tal modo que se pode
considerar a tendência da
física moderna como de emancipação do infinitamente pequeno;
em lugar do antigo
princípio natura non
facit saltus
poderíamos mesmo afirmar o oposto, “a natureza dá saltos”.
É sabido que
toda matéria é composta de pequenas partículas, os átomos, cujas combinações e ligações produzem
toda a variedade de
objetos macroscópicos. Mas a física não ficou só no atomismo
da matéria. No fim
do século passado apareceu o atomismo da eletricidade, que
parecia ainda mais
estranho à primeira vista. Conquanto até aquele momento fosse
vista como um
fluído e considerada um agente contínuo, a eletricidade
mostrou-se constituída
de elétrons
positivos e negativos.
Fora do domínio
da matéria e da eletricidade existe ainda na física uma
entidade onde vale a
lei da conservação, a saber, a energia. Foi mostrado que nem
mesmo a energia
admite incondicionalmente infinita divisibilidade. Planck
descobriu os quanta de
energia.
Portanto, um
contínuo homogêneo que admita o tipo de divisibilidade de
forma a tornar real o
infinito através do pequeno
não se
encontra em nenhum lugar da realidade. A infinita
divisibilidade do contínuo é
uma operação que existe somente em pensamento, uma mera idéia
que de fato é
rejeitada por nossas observações e nossas experiências da
física e da química.
O segundo lugar
onde nos deparamos com o problema de encontrar o infinito na
natureza é na
consideração do universo como um todo. Temos aqui que
investigar a expansão do
universo para determinar se ele contém algo infinitamente
grande.
A opinião sobre
a infinidade do mundo foi vigente durante muito tempo. Até
Kant, e ainda mais
adiante, não se punha em dúvida a infinidade do espaço.
Aqui de novo a
ciência moderna, em particular a astronomia, reabriu a questão
e tenta resolvê-la
sem qualquer auxílio da defeituosa especulação metafísica, mas
por raciocínios
baseados em experimentos e na aplicação das leis da natureza.
Severas objeções
contra o infinito foram levantadas. A aceitação da infinitude
do espaço segue
necessariamente da geometria
euclideana.
Embora a geometria euclideana seja um sistema conceitual
consistente, não segue
daí que tenha existência real. Se o espaço é ou não euclideano
só pode ser
decidido através de observação e experimentação. Na tentativa
de se provar a
infinidade do espaço por pura especulação froam cometidos
erros grosseiros. Do
fato de que além de uma certa porção de espaço existe sempre
mais espaço, segue
somente que o espaço é ilimitado, mas não que seja infinito.
Ilimitabilidade e
finitude não se excluem. A pesquisa matemática oferece na
chamada geometria elíptica
um modelo natural para um
universo finito. O abandono da geometria euclideana não é mais
hoje em dia mera
especulação matemática ou filosófica, mas é sustentado por
considerações que originalmente
não tinham nenhuma relação com a questão da finitude do
universo. Einstein
mostrou a necessidade de se abandonar a geometria euclideana.
Com base em sua
teoria gravitacional, ele retoma as questões cosmológicas e
mostra que um
universo finito é possível e todos os resultados da astronomia
são compatíveis
com a hipótese de um universo elíptico.
Pudemos
estabelecer que o universo é finito em relação a dois
aspectos: ao
infinitamente grande e ao infinitamente pequeno. Porém pode
perfeitamente acontecer
que o infinito tenha um lugar justificado em
nosso pensamento e que tenha aí o papel de um conceito
indispensável.
Vejamos como é a situação na matemática, interrogando primeiro
a mais pura e
ingênua criação do espírito humano, que é a teoria dos
números. Consideremos um
exemplo da rica variedade de fórmulas elementares da teoria de
números:
Dado que podemos
substituir n por qualquer
inteiro, por exemplo, n=2
ou n=5; esta fórmula contém implicitamente infinitas
proposições.
Esta característica é essencial à fórmula e é por isso que ela
represente a
solução de um problema aritmético e precisa de uma prova,
enquanto as equações
numéricas particulares
podem ser
verificadas através de
cálculo simples e são portanto individualmente desprovidas de
interesse
especial.
Uma
outra concepção da noção de infinito completamente diferente e
singular é
encontrada no importante e frutífero método dos elementos ideais. Mesmo na geometria plana
elementar este método
encontra aplicação. Neste caso os pontos e retas do plano
possuem existência
real originária. Para eles vale, entre outros, o axioma da
conectividade: por
dois pontos passa sempre uma e somente uma reta. Segue daí que
duas retas podem
se interseccionar no máximo em um ponto. Não vale como teorema
que duas retas
se cortem sempre em um único ponto, pois duas retas podem ser
paralelas.
Contudo, sabe-se que através da introdução de elementos
ideais, a saber, de
retas infinitamente longas e pontos no infinito, podemos obter
como teorema que
duas retas sempre se interceptam em um e somente um ponto.
Estes elementos
“infinitamente distantes” têm a vantagem de tornar o sistema
das leis de
conexão tão simples e universal quanto possível. Ainda mais,
por causa da
simetria entre retas e pontas resulta o tão frutífero
princípio da dualidade da
geometria.
Outro
exemplo do uso dos elementos ideais ocorre nas conhecidas
magnitudes complexo-imaginárias
da álgebra, que
simplificam os teoremas sobre a existência e quantidade de
raízes de uma
equação.
Tal
como em geometria infinitas retas paralelas entre si podem ser
utilizadas na
definição de um ponto ideal, também na aritmética certos
sistemas infinitos de
números podem ser considerados como ideais,
e constituem o uso mais genial do princípio dos elementos
ideais. Se isso é
feito num corpo algébrico de números, recuperamos as
propriedades simples e
bem-conhecidas de divisibilidade, tais como valem para os
números inteiros 1, 2,
3, 4, ... . Já chegamos aqui ao
domínio da aritmética superior.
Vamos
agora nos voltar à análise matemática, este produto mais fino
e elaborado da
ciência matemática. Vocês já conhecem o papel preponderante
que o infinito aí
desempenha e como de certa forma a análise matemática pode ser
considerada uma
sinfonia do infinito.
O
enorme progresso realizado no cálculo infinitesimal resulta
principalmente das
operações com sistemas matemáticos com infinitos elementos.
Como parece
bastante plausível identificar infinito com “muito grande”,
logo apareceram
inconsistências, os chamados paradoxos do cálculo
infinitesimal, em parte já
conhecidos dos antigos sofistas. Constituiu progresso
fundamental o
reconhecimento de que muitos teoremas que valem para o finito
(por exemplo, de
que a parte é menor que o todo, existência de mínimo e máximo,
intercâmbio da ordem
dos termos entre soma e produto) não podem ser imediata e
irrestritamente
estendidos para o infinito. Afirmei no começo da minha
conferência que estas
questões tinham sido completamente elucidadas, notadamente
como conseqüência da
acuidade de Weierstrass e hoje a análise é não somente uma
ferramenta infalível
como um instrumento prático para uso do infinito.
Mas
a análise por si só não nos conduz à compreensão mais profunda
da natureza do
infinito. Esta nos é dada por uma disciplina que mais se aproxima de um
método filosófico geral e que
foi engendrada para lançar nova luz sobre o grande complexo
das questões sobre
o infinito. Esta teoria, criada por Georg Cantor, é a teoria
dos conjuntos e
estamos aqui interessados somente naquela parte única e
original da teoria que
forma o núcleo central da doutrina de Cantor, a saber, a
teoria dos números transfinitos.
Esta teoria me parece o
mais refinado produto do gênio matemático e uma das façanhas
supremas da pura
atividade intelectual humana. O que é, então, esta teoria?
Alguém
que desejasse caracterizar brevemente a nova concepção do
infinito que Cantor
introduziu, poderia afirmar que em análise lidamos com o
infinitamente grande e
o infinitamente pequeno somente como conceitos-limite, como
algo a acontecer ou
vir a ser, isto é, como infinito
potencial. Mas este não é o verdadeiro infinito.
Encontramos o verdadeiro
infinito somente quando consideramos a totalidade dos números
1, 2, 3, 4, ...
como uma unidade completa, ou quando tomamos os pontos de um
intervalo como uma
totalidade que existe, de uma só vez. Este tipo de infinito é
conhecido como infinito
atual ou completado.
Frege
e Dedekind, os dois mais célebres matemáticos por seu trabalho
nos fundamentos
da matemática, usaram o infinito atual─ independentemente um
dou
outro─ para prover fundamento para a aritmética que fosse
independente da
intuição e da experiência, somente
baseado pura lógica e deduzindo toda a aritmética a
partir dela.
Dedekind chegou mesmo ao ponto de evitar o uso intuitivo de
número finito,
derivando este conceito a partir da noção de conjunto
infinito. Foi Cantor,
porém, quem desenvolveu sistematicamente o conceito de
infinito atual.
Retomemos os dois exemplos de infinito citados:
1.
1, 2, 3, 4,
...
2.
Os pontos do
intervalo entre 0 e 1, ou, o que é o mesmo, a totalidade dos
números reais
entre 0 e 1;
é bastante natural
considerar
estes exemplos do ponto de vista de sua magnitude, mas tal
tratamento revela
resultados surpreendentes, conhecidos de todo matemático hoje
em dia. De fato,
quando consideramos o conjunto de todos os números racionais,
isto é, as
frações
notamos que do
ponto de vista de
seu tamanho este conjunto não é maior que o dos inteiros:
dizemos que os
racionais podem ser enumerados. O mesmo vale para o conjunto
de todas as raízes
de números inteiros e também para o conjunto de todos os
números algébricos. O
segundo exemplo é análogo: surpreendentemente, o conjunto dos
pontos de um
quadrado ou cubo não é maior do que o conjunto dos pontos no
intervalo de 0 a
1. O mesmo vale para o conjunto de todas as funções contínuas.
Quem vivencia
estes fatos pela primeira vez, pode ser levado a pensar que do
ponto de vista
do tamanho existe um único infinito. Não. Os conjuntos em
nossos exemplos (1) e
(2) não são, como se diz, “equipotentes”; de fato, o conjunto
(2) não pode ser
enumerado, senão que é maior que o conjunto (1). [Veja o
capítulo 5 para uma
exposição detalhada destes resultados. N.A.]. Encontramos aqui
o que é novo e
característico da teoria de Cantor: os pontos do intervalo não
podem ser
enumerados da maneira usual, isto é, contando 1, 2, 3, ... .
Mas já que
admitimos o infinito atual, nada nos obriga a parar aí. Quando
tivermos contado
1, 2, 3, ... , poderemos tomar os objetos assim enumerados
como um conjunto
infinito completado. Se, seguindo Cantor, chamarmos w
a este tipo de ordem, então a contagem continua naturalmente
como w+1,
w+2, ... até w+w
ou w.2 e daí de
novo como w.2+1, w.2+2,
w.2+3, ... w.2+
w=w.3
e novamente como w.2, w.3,
w.4, ...,w.w
= w2
, w2+1,
até obter finalmente a seguinte tabela:
1,
2, 3, ...
w,
w+1, w+2,
...
w.2,
w.2+1, w.2+2,
...
w.3,
w.3+1, w.3+2,
...
w2
, w2+1,
...
w2
+ w
, w2 +
w.2, w2
+ w.3,
...
w2.2,
...
w2.2+w,
...
w3,
...
w4,
...
´
ww,
www, wwww,...
Estes são os
primeiros números
transfinitos de Cantor, chamados por ele de números da segunda
classe. Obtemos
estes números simplesmente estendendo o processo de contagem
além da enumeração
ordinária, isto é, através de uma continuação natural e
unicamente determinada
da contagem usual finita. Da mesma forma como, até agora,
temos contado somente
o primeiro, segundo, terceiro, ... elemento de um conjunto,
contamos também o w-ésimo,
(w+1)-ésimo, ww-ésimo
elemento.
A
partir destes resultados pode-se perguntar se realmente
podemos usar a contagem
com respeito a tais conjuntos, que não são enumeráveis no
sentido usual.
Cantor
desenvolveu com base nestes conceitos e com bastante sucesso,
a teoria dos
números transfinitos e formulou um cálculo para eles. Desta
forma, graças ao
esforço hercúleo de Frege, Dedekind e Cantor o infinito se fez
rei e reinou em
grande triunfo. Em vôo vertiginoso, o infinito atingiu o
pináculo da glória.
A
reação, porém, não se fez esperar e veio de maneira realmente
dramática. Ela
aconteceu de forma perfeitamente análoga à reação que havia
ocorrido contra o
cálculo infinitesimal. No afã do descobrimento de resultados
novos e
importantes os matemáticos prestavam pouca atenção à validade
de seus métodos
dedutivos; então, simplesmente como resultado da mera
aplicação de definições e
métodos dedutivos que já pareciam costumeiros, contradições
começaram
gradualmente a aparecer. A princípio esporádicas, foram se
tornando mais e mais
agudas e sérias, até chegar aos paradoxos da teoria dos
conjuntos. Em especial,
uma contradição descoberta por Zermelo e Russell [Veja
capítulo 1, N.A.] teve
um efeito catastrófico quando se tornou conhecida no mundo da
matemática.
Confrontados com este paradoxo, Dedekind e Frege abandonaram
completamente seu
próprio ponto de vista e bateram em retirada. Dedekind hesitou
longo tempo
antes de permitir uma reedição de seu tratado que marcou
época, Was sind und was
sollen die Zahlen.
Frege, num apêndice, teve que reconhecer que seu livro Grundgesetze der Mathematik estava no rumo
errado. A doutrina de
Cantor, também, foi atacada de todos os lados. A reação foi
tão violenta que
até os conceitos mais naturais e os métodos mais simples e
importantes da
matemática foram ameaçados e seu emprego esteve na iminência
de ser considerado
ilícito. Os defensores da antiga ordem, é claro, não faltaram,
mas sua
estratégia defensiva era muito débil e eles nunca puderam
formar uma frente
unida na defesa de seus pontos-chave. Os remédios contra os
paradoxos eram
demasiados e os métodos propostos variados demais. Deve-se
admitir que o
presente estado de coisas em relação aos paradoxos é
intolerável. Pense nisso:
as definições e métodos dedutivos que todos aprendem, ensinam
e usam em
matemática, o paradigma da verdade e certeza, levam a
absurdos! Se o raciocínio
matemático é defeituoso, onde encontraremos verdade e certeza?
Existe,
contudo, um caminho satisfatório para evitar os paradoxos sem
trair nossa
ciência. As atitudes que nos ajudarão a achar este caminho e a
direção a tomar
são as seguintes:
1.
Definições
frutíferas e métodos dedutivos que tiverem uma esperança de
salvamento serão
cuidadosamente investigados, nutridos e fortalecidos.
Ninguém nos expulsará
do paraíso que Cantor criou para nós.
2.
É necessário
estabelecer para todas as deduções matemáticas o mesmo grau
de certeza das
deduções da teoria elementar dos números, onde ninguém duvida
e onde
contradições e paradoxos só ocorrem devido a nosso descuido.
O
completamento desta tarefa só será possível quando tivermos
elucidado
completamente a natureza
do infinito.
Já
vimos que o infinito não se acha em lugar algum da realidade,
não importa a
quais experimentos, observações e conhecimento lancemos mão. É
possível que
nosso pensamento a respeito da realidade seja tão distinto da
própria
realidade? Podem os processos de pensamento ser tão diferentes
dos processos
reais? Não parece claro, ao contrário, que quando pensamos
haver encontrado o
infinito em algum sentido real, tenhamos na verdade sido
meramente iludidos
pelo fato de que freqüentemente encontramos dimensões
extremamente pequenas e
grandes na realidade?
A
dedução da lógica material [2]
já nos
decepcionou ou nos deixou em posição difícil quando a
aplicamos aos eventos ou
coisas reais? Não – a dedução da lógica material é
imprescindível! Ela nos
decepcionou somente quando formamos definições abstratas,
especialmente aquelas
que envolvem objetos infinitários; nestes casos estivemos
usando a lógica
material de forma ilegítima, isto é, não atentamos
suficientemente para os
pré-requisitos necessários para seu uso correto. Ao reconhecer
que existam tais
pré-requisitos que devem ser levados em conta, encontramo-nos
em pleno acordo
com os filósofos, notadamente com Kant. Já Kant havia ensinado
e isso é parte
integral de sua doutrina, que a matemática trata de um tema
independente da
lógica, portanto a matemática não pode e nem poderá nunca ser
fundamentada
somente na lógica. Conseqüentemente, as tentativas de Frege e
Dedekind nesse
sentido estariam fadadas ao erro. Como outra pré-condição para
o uso da dedução
lógica e para as operações lógicas devem ser considerados
objetos concretos
extra-lógicos, que existem com base na experiência imediata
previamente a
todo pensamento.
Para
que as deduções lógicas sejam seguras, devemos ser capazes de
vislumbrar todos
os aspectos destes objetos, e seu reconhecimento, distinção e ordenação são
dados, juntamente com os
próprios objetos, como coisas que não podem ser reduzidas a
outras ou requerer
qualquer redução. Tal é a filosofia básica que eu acredito
necessária, não só
para a matemática, mas para toda comunicação, entendimento e
pensamento
científicos. Em especial na matemática, seu objeto deve
consistir, desta forma,
nos próprios símbolos concretos cuja estrutura é imediatamente
clara e
reconhecível.
Tenhamos
presente a natureza e os métodos da teoria elementar finitária
dos números.
Esta teoria pode certamente ser construída a partir de
estruturas numéricas,
através de considerações materiais intuitivas. Mas certamente
a matemática não
consiste somente de equações numéricas e certamente não pode a
elas ser
reduzida. Contudo pode-se argumentar que a matemática é um
aparato que, quando
aplicado aos inteiros, sempre produz equações numéricas
corretas. Mesmo assim,
ainda temos que investigar a estrutura deste aparato o
suficiente para garantir
que ele de fato sempre produzirá equações corretas. Para levar
a efeito tal
investigação dispomos somente dos mesmos métodos finitários,
materiais
concretos que servem para derivar equações numéricas na teoria
dos números.
Esta exigência científica pode ser de fato satisfeita, ou
seja, é possível, de
uma maneira puramente intuitiva e finitária - do mesmo modo
como obtemos as
proposições verdadeiras da teoria dos números – conseguir as
intuições que
garantam a confiabilidade do aparato matemático.
Consideremos
a teoria dos números mais de perto. Na teoria dos números
temos os símbolos
numéricos:
1,
11, 111, 11111
onde cada símbolo
é
intuitivamente reconhecido pelo fato de que contém somente
1´s. Estes símbolos
numéricos que são nosso objeto de estudo não têm em si mesmo
nenhum
significado. Adicionalmente a estes símbolos, mesmo na teoria
elementar dos
números, temos outros que possuem significado e que servem
para facilitar a
comunicação: por exemplo, o símbolo 2 é usado como uma
abreviação para o símbolo
numérico 11 e 3 como uma abreviação para 111. Usamos ainda
símbolos como +, = e
> para comunicar proposições. Já 2+3=3+2 pretende comunicar
o fato de que
2+3 e 3+2, levando em conta as abreviações, são o mesmo e
idêntico símbolo, a
saber, o símbolo numérico 11111. Similarmente, 3 > 2 serve
para comunicar o
fato de que o símbolo 3, isto é, 111, é mais longo do que o
símbolo 2, isto é,
11; ou, em outras palavras, que o último é parte própria do
primeiro.
Usamos
também as letras a,
b, c
para comunicação[3].
Desta
forma, b>a comunica o fato que o símbolo numérico b é mais longo do que o símbolo numérico a. Sob este ponto de vista, a+b=b+a comunica somente o
fato de que o
símbolo numérico a+b é o mesmo que b+a.
O conteúdo material
do que é comunicado pode também ser demonstrado através de
regras da dedução
material e de fato este tipo de tratamento pode nos levar
bastante longe.
Gostaria
de dar um primeiro exemplo onde este método intuitivo é
transcendido. O maior
número primo conhecido é o seguinte: (39 dígitos)
p
= 170 141 183 460 469 231 731 687 303
715 884 105 727
Pelo conhecido
método de Euclides
podemos dar uma demonstração, que cabe inteiramente dentro de
nosso enfoque
finitário, de que existe pelo menos um novo número primo entre
p+1 e p!+1. A forma da proposição já é perfeitamente
apropriada ao
enfoque finitário, pois a expressão “existe” somente abrevia a
expressão
seguinte: é certo que p+1
ou p+2 ou p+3 ... ou p!+1 é primo.
Mais ainda, desde que é a mesma coisa, nesse caso, dizer que
existe um número primo
tal que é:
1.
> p e simultaneamente,
2.
< = p!+1,
podemos chegar à
idéia de
formular um teorema que expressa somente uma parte do teorema
euclideano, isto
é, podemos formular um teorema que afirma que existe um primo
> p. Embora
este último teorema seja muito
mais fraco em termos de conteúdo, já que afirma apenas parte
da proposição
euclideana e embora a passagem do teorema euclideano a este
seja praticamente
inócua, esta passagem envolve um passo transfinito quando a
proposição parcial
é tomada fora de contexto e considerada de forma independente.
Como
pode ser isso? Porque temos uma proposição existencial! É
verdade que tínhamos
uma proposição similar no teorema euclideano, mas naquele caso
o “existe”, como
mencionado, é apenas uma abreviação para “p+1
ou p+2 ou p+3 ... ou p!+1 é um
número primo”, exatamente como eu poderia dizer, ao invés de
“ou este pedaço de
giz, ou este pedaço, ... , ou este pedaço é vermelho” que
“existe um objeto”
com uma certa propriedade numa totalidade finita conforma-se
perfeitamente a
nosso enfoque finitário. Mas uma proposição da forma “ou p+1 ou p+2
ou p+3 ... ou (ad infinitum) ... satisfaz uma certa
propriedade” consiste na
verdade em um produto lógico infinito. Uma tal extensão na
direção do infinito,
a menos que se tomem precauções adicionais, não é mais lícita
que a extensão do
finito ao infinito no cálculo integral e diferencial; sem
cuidado adicional,
ela nem em significado.
De
nossa posição finitária, uma proposição existencial da forma
“existe um número
com uma certa propriedade” em geral só tem significado como
uma proposição
parcial, isto é, como parte de uma proposição melhor
determinada. A formulação
mais precisa, contudo, para muitos propósitos pode ser
desnecessária.
Encontramos
o infinito analisando uma proposição existencial cujo conteúdo
não pode ser
expresso por uma disjunção finita. De modo similar, negando
uma proposição
geral, que se refere a símbolos numéricos arbitrários, obtemos
uma proposição
transfinita. Por exemplo, a proposição que se a é um símbolo numérico então a+1=1+a
vale sempre, de
nossa perspectiva
finitária é incapaz de
negação.
Veremos melhor isso se considerarmos que este enunciado não
pode ser
interpretado como uma conjunção de infinitas equações
numéricas conectadas
através de “e” mas somente como um juízo hipotético que afirma
algo no caso de
ser dado um símbolo numérico.
A
partir de nossa posição finitária, portanto, não se pode
sustentar que uma
equação como aquela dada acima, onde ocorre um símbolo
numérico arbitrário, ou
é válida para todo símbolo ou é refutada por um
contra-exemplo. Um tal
argumento, sendo uma aplicação da lei do terceiro excluído,
fundamenta-se na
pressuposição de que a asserção da validade universal desta
equação é passível
de negação.
De
todo modo, constatamos o seguinte: se nos colocamos no domínio
das asserções
finitárias, como de resto deveríamos, temos em geral que
conviver com leis
lógicas muito complicadas. A complexidade torna-se
insuportável quando as
expressões “para todo” e “existe” são combinadas e
involucradas. Em suma, as
leis lógicas que Aristóteles professava e que a humanidade tem
usado desde os
primórdios do pensamento não mais valeriam. Podemos, é claro,
desenvolver novas
leis que valham especificamente para o domínio das proposições
finitárias. Mas
não nos traria nenhum proveito desenvolver tal lógica, pois
não queremos nos
livrar das leis simples da lógica de Aristóteles e ninguém,
ainda que falasse a
língua dos anjos, poderia impedir as pessoas de negar
proposições gerais, ou de
formar juízos parciais, ou de fazer uso do tertium
non datur. Como devemos, então, proceder?
Vamos
lembrar que somos
matemáticos e que
como matemáticos temos estado muitas vezes em situação
precária, da qual fomos
resgatados pelo método genial dos elementos ideais. Alguns
exemplos
ilustrativos do uso deste método foram vistos no início desta
conferência.
Da
mesma forma que i=
foi
introduzido para preservar da forma mais simples as leis da
álgebra (por
exemplo, as leis sobre existência e quantidade de raízes numa
equação); da
mesma forma que os fatores ideais foram introduzidos para
preservar as leis
simples de divisibilidade para números algébricos (por exemplo
um divisor comum
ideal para os números 2 e 1+ pode ser introduzido,
embora tal divisor na
realidade não exista); similarmente, para preservar as regras
formais simples
da lógica de Aristóteles devemos suplementar
as asserções finitárias com asserções ideais. É irônico
que os métodos
dedutivos que Kronecker tão veementemente atacava constituam a
exata
contraparte do que o próprio Kronecker tão entusiasticamente
admirava no
trabalho de Kummer na teoria dos números, e que ele apreciava
mesmo como o mais
alto feito da matemática.
De
que forma obtemos asserções
ideais? É
um fato notável e ao mesmo tempo favorável e promissor que,
para obter
elementos ideais, precisemos apenas continuar de maneira óbvia
e natural o
desenvolvimento que a teoria dos fundamentos da matemática já
traçou. De fato,
devemos ter claro que mesmo a matemática elementar vai além da
teoria intuitiva
dos números. Esta não inclui, por exemplo, os métodos de
computação algébrica
literal. As fórmulas da teoria intuitiva dos números têm sido
sempre usadas
exclusivamente com o propósito de comunicar. As letras
representam símbolos
numéricos e uma equação comunica o fato de que dois símbolos
coincidem. Em
álgebra, por outro lado, as expressões literais são estruturas
que formalizam o
conteúdo material da teoria dos números. Em lugar de asserções
sobre símbolos
numéricos temos fórmulas que são elas próprias o objeto
concreto de estudo. No
lugar de provas na teoria dos números temos derivações de
fórmulas a partir de
outras fórmulas, de acordo com certas regras determinadas.
Ocorre,
portanto, como vemos na álgebra, uma proliferação de objetos
finitários. Até
agora os únicos objetos eram símbolos numéricos como 1, 11,
..., 11111. Estes
constituíam o único objeto do tratamento material. Mas a
prática matemática vai
mais longe, mesmo na álgebra. De fato, mesmo quando uma
asserção é válida de
acordo com seu significado e pressupondo nosso ponto de vista
finitário, como,
por exemplo, no caso do teorema que afirma que sempre
a+b=b+a
onde a e b
representam
símbolos numéricos particulares, ainda nesse caso preferimos
não usar esta
forma de comunicação, mas substituí-la pela fórmula:
a+b=b+a
Esta última não
constitui de
maneira nenhuma uma comunicação com significado imediato, mas
uma certa
estrutura formal cuja relação com as antigas asserções
finitárias:
2+3=3+2,
5+7=7+5,
consiste no fato
de que, quando a e
b
são substituídos na fórmula pelos símbolos numéricos 2, 3, 5,
7, obtêm-se
proposições finitárias e este ato de substituição pode ser
visto como um
procedimento de prova, ainda que muito simples. Concluímos
então que a,b,=,+ e também as fórmulas
completas a+b=b+a não
possuem significado próprio
tanto quanto os símbolos numéricos. Contudo, podemos derivar
outras fórmulas a
partir destas, às quais podemos associar um significado,
interpretando-as como
comunicações a respeito de proposições finitárias. De maneira
geral, podemos
conceber a matemática como uma coleção de fórmulas de duas
espécies:
primeiramente, aquelas às quais correspondem as comunicações
de asserções finitárias
com sentido e, em segundo lugar, outras fórmulas sem
significado e que são a estrutura
ideal da nossa teoria.
Qual
era então nosso objetivo? Em matemática, por um lado,
encontramos proposições
finitárias que contêm somente símbolos numéricos, por exemplo:
3>2,
2+3=3+2, 2=3, 1¬1
que, de nosso
enfoque finitário,
são imediatamente intuídas e compreendidas, sem recurso
adicional; estas
proposições podem ser negadas, elas são
verdadeiras ou falsas e podemos aplicar a elas a lógica
aristotélica de
maneira irrestrita, sem precauções especiais. Para elas vale o
princípio da
não-contradição, isto é, uma proposição e sua negação não
podem ser ambas
verdadeiras. Vale também o tertium non
datur, isto é, uma proposição, ou sua negação, é
verdadeira. Afirmar que
uma proposição é falsa equivale a afirmar que a sua negação é
verdadeira. Por
outro lado, além destas proposições elementares não
problemáticas, encontramos
outras asserções finitárias mais problemáticas, como aquelas
que não podem ser
divididas em asserções parciais. Finalmente introduzimos as
proposições ideais
com o intuito de que as leis usuais da lógica possam valer
universalmente. Mas
desde que estas proposições ideais, isto é, as fórmulas, não
significam nada
uma vez que não expressam proposições finitárias, as operações
lógicas não
podem ser materialmente aplicadas a elas do mesmo modo como o
são para
proposições finitárias.
É,
portanto, necessário formalizar as próprias operações lógicas
e demonstrações
matemáticas. Uma tal formalização requer transformar relações
lógicas em
fórmulas. Portanto, junto com os símbolos matemáticos,
precisamos também
introduzir símbolos lógicos tais como:
/\ ,
\/,
=>, ~
(conjunção) (disjunção) (implicação) (negação)
e, juntamente com
as variáveis a, b, c,
... devemos também empregar
variáveis lógicas, ou seja, as variáveis proposicionais A, B, C ... .
Como
isso pode ser feito? Felizmente, a mesma harmonia
preestabelecida que tantas
vezes encontramos vigente na história do desenvolvimento da
ciência – a mesma
que ajudou Einstein, dando a ele o cálculo geral de
invariantes já previamente
trabalhado para sua teoria gravitacional – vem também em nossa
ajuda:
encontramos o cálculo lógico já previamente trabalhado. Na
verdade, este
cálculo lógico foi desenvolvido originalmente de uma
perspectiva completamente
distinta. Os símbolos do cálculo lógico foram originalmente
introduzidos para
comunicar. Contudo, é consistente com nossa perspectiva
finitária negar qualquer
significado aos símbolos lógicos, como negamos significado aos
símbolos
matemáticos e declarar que as fórmulas do cálculo lógico são
proposições ideais
sem qualquer significado próprio. Possuímos, no cálculo
lógico, uma linguagem
simbólica capaz de transformar asserções matemáticas em
fórmulas e capaz de
expressar a dedução lógica por meio de procedimentos formais.
Em exata analogia
com a transição da teoria material dos números à álgebra
formal, tratamos agora
os sinais e símbolos de operação do cálculo lógico abstraindo
do seu
significado. Desta forma, finalmente, obtemos, ao invés do
conhecimento
matemático material que é comunicado através da linguagem
comum, somente uma
coleção de fórmulas envolvendo símbolos lógicos e matemáticos
que são gerados sucessivamente,
de acordo com regras determinadas. Algumas dessas fórmulas
correspondem a
axiomas matemáticos e as regras segundo as quais fórmulas são
derivadas umas
das outras correspondem à dedução material. A dedução material
é então
substituída por um procedimento formal governado por regras. A
passagem
rigorosa do tratamento ingênuo para o formal, portanto, é
levada a efeito tanto
pelos axiomas (os quais, embora originalmente vistos como
verdades básicas têm
sido tratados na axiomática moderna como meras relações entre
conceitos), como
pelo cálculo lógico (originalmente considerado como não mais
que uma linguagem
diferente).
Vamos
agora explicar brevemente como podemos formalizar as demonstrações matemáticas.
[Neste
ponto Hilbert discute a formalização da
dedução lógica, uma versão equivalente da qual é apresentada
nos capítulos 18 e
20 do presente texto. N.A.].
Estamos
portanto em posição de levar adiante nossa teoria da prova e
construir um
sistema de fórmulas demonstráveis, ou seja, de toda a
matemática.
Mas em nosso
regozijo pela conquista e em particular pela nossa alegria em
encontrar um
instrumento indispensável, o cálculo lógico, já pronto de
antemão e sem nenhum
esforço de nossa parte, não devemos esquecer a condição
essencial de nosso trabalho.
Há apenas uma condição, embora seja uma condição absolutamente
necessária,
ligada ao método dos elementos ideais: a prova
de consistência, pois a extensão de um domínio através
da adição de
elementos ideais só é legitimada se a extensão não causa o
aparecimento de
contradições no domínio inicial, ou seja, somente se as
relações válidas nas
novas estruturas continuarem a ser
válidas no domínio anterior, quando os elementos ideais
são canceladas.
O problema da
consistência nas presentes circunstâncias é passível de ser
tratado. Ele se
reduz, obviamente, a provar que a partir dos nossos axiomas e
através das
regras estabelecidas não podemos obter “1¬1”
como a última fórmula numa demonstração, ou, em outros termos,
que 1¬1
não é uma fórmula demonstrável. Esta é uma tarefa que cabe no
domínio do
tratamento intuitivo, tanto quanto, por exemplo, a tarefa de
obter uma prova da
irracionalidade de na teoria
dos números,
isto é, uma prova de que é impossível encontrar dois símbolos
numéricos a e b que satisfaçam a relação a2 = 2.b2, ou, em outras palavras, que não
se pode neste caso
produzir dois símbolos numéricos com uma certa propriedade.
Similarmente, é
nossa incumbência mostrar que um tal tipo de prova não se pode
produzir. Uma
prova formalizada, tal qual um símbolo numérico, é um objeto
concreto e
visível. Podemos descrevê-la completamente, do começo ao fim.
Mais ainda, o
requisito de que a última fórmula seja 1¬1
é uma propriedade concreta da prova. Podemos, de fato,
demonstrar que não
é possível obter uma prova que termine
com aquela fórmula, e justificamos assim nossa introdução das
proposições
ideais.
É
ainda uma agradável surpresa descobrir que, ao mesmo tempo,
resolvemos um
problema que tem estado ardente por longo tempo, a saber, o
problema de provar
a consistência dos
axiomas da aritmética.
Onde quer que o método axiomático esteja sendo usado surge a
questão de provar
a consistência. Nós seguramente não queremos na escolha,
compreensão e uso das
regras e axiomas, apoiar-nos somente na fé cega. Na geometria
e nas teorias
físicas o problema é resolvido reduzindo a consistência destas
teorias à dos
axiomas da aritmética, mas obviamente este método não basta
para provar a
consistência da própria aritmética. Já que nossa teoria da
prova, baseada no
método dos elementos ideais, nos permite dar este último
importante passo, ele
deve ser a pedra fundamental da construção doutrinária da
axiomática. O que já
vivenciamos por duas vezes, uma vez com os paradoxos do
cálculo infinitesimal,
e outra vez com os paradoxos da teoria dos conjuntos, não
ocorrerá uma terceira
vez, nem nunca mais.
A
teoria da prova que esboçamos não somente é capaz de prover
uma base sólida
para os fundamentos da matemática, mas também, acredito, pode
prover um método
geral para tratar questões matemáticas fundamentais, as quais
os matemáticos
até agora não foram capazes de manejar.
A
matemática tornou-se uma corte de arbitragem, um supremo
tribunal para decidir
questões fundamentais – em bases concretas com as quais todos
podem concordar e
onde toda asserção pode ser controlada.
As
alegações do assim chamado “Intuicionismo” [Ver capítulo 25.]
– modestas como
possam ser – devem, em minha opinião, primeiro receber seu
certificado de
validade deste tribunal.
Um
exemplo do tipo de questões fundamentais que podem ser
tratadas deste modo é a
tese de que todo problema matemático é solúvel. Estamos todos
convencidos de
que seja realmente assim. De fato, uma das motivações
principais para nos
ocuparmos de um problema matemático é que ouvimos sempre este
grito dentro de
nós: aí está o problema, ache a resposta; você pode
encontrá-la através do
pensamento puro, pois não há ignorabimus
em matemática. Minha teoria da prova não é capaz de suprir um
método geral para
resolver qualquer problema matemático – simplesmente tal método não
existe; contudo, a prova de
que a hipótese da solubilidade de todo problema matemático não causa
contradição cai no escopo da nossa
teoria.
Mas
quero ainda jogar um último trunfo: para uma nova teoria, sua
pedra-de-toque
definitiva é a habilidade de resolver problemas que, mesmo
conhecidos há longo
tempo, a teoria mesma não tenha sido expressamente projetada
para resolver. A
máxima “por seus frutos deveis reconhecê-las” aplica-se também
a teorias.
[Neste
ponto Hilbert afirma ser capaz de resolver a
Hipótese do Contínuo: existe alguma coleção infinita cujo
cardinal seja maior
que N e menor que
R? Hilbert
certamente estava enganado,
pois Kurt Gödel provou, em 1938, que a Hipótese do Contínuo
(Generalizada) não
pode ser refutada na teoria dos conjuntos ZFC,
e Paul Cohen em 1963
provou que
a Hipótese do Contínuo não pode também
ser demonstrada em ZFC. A Hipótese do Contínuo é portanto
independente de ZFC,
situação que aparentemente Hilbert não estaria levando em
conta, como se
depreende de seu texto. N.A.].
Em
resumo, vamos voltar ao nosso tema principal e tirar algumas
conclusões a
partir de nossas considerações sobre o infinito. Nosso
resultado geral é que o
infinito não se encontra em lugar algum na realidade. Não
existe na natureza e
nem oferece uma base legítima para o pensamento racional – uma
notável harmonia
entre existência e pensamento. Em contraste com os primeiros
esforços de Frege
e Dedekind, estamos convencidos de que certos conceitos e
juízos preliminares
são condições necessárias ao conhecimento científico, e que a
lógica por si só
não é suficiente. As operações com o infinito só podem ser
tornadas seguras
através do finitário.
O
papel que resta ao infinito é somente o de uma idéia – se
entendemos por uma
idéia, na terminologia de Kant, um conceito da razão que
transcende toda
experiência e que completa o concreto como uma totalidade –
uma idéia em que
podemos confiar sem hesitar graças ao quadro conceitual
erigido por nossa
teoria.
Finalmente,
quero agradecer a P. Bernays por sua inteligente colaboração e
valiosa ajuda,
tanto na parte técnica quanto editorial especialmente em
relação à prova do
teorema do contínuo.
1.
Por que um
modelo para uma coleção de axiomas justifica que estes axiomas
sejam livres de
contradição?
2. a. Qual é o motivo do discurso de
Hilbert?
b.
O que Hilbert tanto admirava em Weierstrass?
c.
Você concorda com Hilbert quando ele afirma que “em
matemática, como em tudo o
mais, o sucesso é a suprema corte perante a qual todos se
curvam”?
d.
Qual era o paraíso que Cantor criou?
e.
Por que Hilbert afirma que as leis lógicas de Aristóteles não
valem: Qual é seu
plano para resolver esta questão?
f.
Quais são os elementos ideais em aritmética?
g.
Quando se justifica o uso de proposições ideais?
h.
Por que Hilbert estava especialmente preocupado em demonstrar
a consistência da
aritmética?
i.De
acordo com Hilbert, quais são os objetos que a matemática
estuda?
j.
O ponto de vista de Hilbert como mostrado aqui é chamado formalismo. Este nome é adequado?
l.
Qual é o papel da lógica no programa de Hilbert? Em que difere
do papel da
lógica no programa de Frege?
3. Um platonista discordaria de Hilbert
em muitos pontos, mas
fundamentalmente na justificação do uso do infinito em
matemática. Explique.
4.
De que forma Goodstein, como
um construtivista, poderia objetar ao uso que Hilbert propõe
para os objetos
ideais da matemática?
A biografia de Hilbert por Constance Reid oferece uma
ótima oportunidade de aprofundar seus conhecimentos acerca da
história da
matemática e do programa de Hilbert.
[1]
Texto de uma conferência
proferida em 4 de junho de 1925 num congresso da Sociedade
Matemática da
Westfalia, em Münster, em homenagem a Karl Weierstrass.
Traduzido por
W.A.Carnielli a partir do original alemão publicado em Mathematische Annallen (Berlim) v. 95 (1926),
pp. 161-190.
[2]
Traduzimos o termo alemão
“inhaltlich” como “material” (por exemplo, em “inhaltliche
Logik” como
“lógica material” no sentido de “concreta”).
[3]
Utilizamos letras em negrito
onde Hilbert utilizava letras góticas.