Mesa-redonda – O Ensino das Ciências na Universidade

João Filipe Queiró
Departamento de Matemática - Universidade de Coimbra

III Encontro do Forum Internacional de Investigadores Portugueses
Faro, 10 de Abril de 2001

(this text was published, with a few changes, in Gazeta de Física, vol. 24 - nº 4, p. 48-50, October/December 2001.)



Sobre o ensino das Ciências na Universidade podem dizer-se imensas coisas, tantas que poderiam escrever-se livros sobre o assunto. E com certeza já se escreveram muitos...

Eu vou organizar a minha intervenção em três partes. Primeiro, farei alguns comentários gerais sobre o tema. Em seguida, tentarei alguns diagnósticos sobre a situação actual. Finalmente, esboçarei algumas propostas no plano institucional.

Duas reservas prévias: primeiro, o que vou dizer é naturalmente influenciado pelo facto de eu ser de Matemática, podendo não se ajustar a outras áreas; segundo, tenho mais em vista a situação de Portugal, embora haja fenómenos que são comuns a outros países.
 

Observações gerais

A primeira observação geral é que os problemas do ensino e da educação são “eternos”. Sempre se puseram e sempre se porão os mesmos problemas e as mesmas questões, e sempre se tentarão respostas que muitas vezes parecem novas e são velhíssimas. Como exemplo do que estou a dizer, ainda ontem li num jornal que numa parede nas ruínas de Pompeia foram descobertos graffiti de estudantes a insultar professores...

Outro exemplo é uma polémica escrita entre dois professores de Matemática da Universidade de Coimbra no século XVIII, que está publicada, e onde se encontram trechos interessantes sobre o ensino, como o seguinte de José Anastácio da Cunha, então já ex-professor: “O meu modo de ensinar era o que a minha consciência e inteligência (...) me ditavam. Expunha o objecto das proposições, a sua conexão e dependência (...). Não me demorava em ler ou repetir literalmente (como os meus companheiros costumavam) as proposições que por fáceis nem carecem de explicação, nem a admitem, só para poder empregar tempo suficiente em indicar ao estudantes as verdadeiras dificuldades da lição (...). Porém queria que também os estudantes trabalhassem, e os obrigava a resolver problemas.”

A segunda observação é que se pode perfeitamente argumentar que o tema desta mesa-redonda nem sequer existe, porque na Universidade não há, ou não deve haver, “ensino”, no sentido “liceal” de haver alguém que está por cima a ensinar, ou a dar, e alguém que está em baixo a ser ensinado, ou a receber. O conceito de “ensino” a nível superior é problemático, e a consciência disso ajuda quando se pensa em propostas para resolver alguns dos problemas que existem nas universidades. Em conformidade, daqui em diante as ocorrências da palavra “ensino” deverão ser imaginadas como estando entre aspas.

Como já foi sublinhado numa conferência aqui ontem, o grande objectivo do “ensino” universitário é que os estudantes aprendam a pensar. Para apoiar esta ideia – e também a ideia da “eternidade” destas questões – podíamos recuar mais de dois mil anos e ir buscar citações de Sócrates. Ou então recordar uma  frase muito bonita de Plutarco: “Uma mente não é um vaso que se enche, mas sim uma chama que se sopra.”

Há verdadeira aprendizagem universitária quando duas mentes se encontram na compreensão de um assunto. Em rigor, a compreensão pode até acontecer com uma mente só, a do estudante que estuda e pensa sozinho.

Tudo o que não é isto é um substituto burocrático disto: o ensino codificado, com horas marcadas, as aulas, as turmas cheias, o ensino de cinco ou seis disciplinas em simultâneo. Trata-se talvez de necessidades, mas não são por isso menos substitutos burocráticos. Esta é uma ideia banal, mas que convém não perder de vista.

Expressões como “transmissão de conteúdos” não têm na universidade o mesmo sentido que têm para níveis escolares anteriores – o verdadeiro objectivo do “ensino” universitário é o desenvolvimento e o enriquecimento autónomo das mentes individuais. O bom professor universitário é o que no fim se liquida a si próprio.
 

Diagnósticos

Passo agora a algumas observações de tipo diagnóstico sobre a situação actual, concreta, do ensino das Ciências na universidade em Portugal.

A primeira é objectiva, e já aqui foi referida ontem: há uma tendência descendente no número de estudantes que procuram cursos de Ciências e Engenharia em Portugal. Este fenómeno é complexo, tanto nas suas manifestações como nas suas possíveis explicações, mas mesmo sem análises de pormenor creio que ele existe. Não se está ainda na fase de os cursos de forma generalizada não preencherem o numerus clausus, mas as tendências é para aí que apontam.

Ligadas com o fenómeno anterior estão as baixas classificações médias obtidas em Matemática e Física nos exames nacionais do 12º ano, um facto gravíssimo que se repete ano após ano. Do ponto de vista dos cursos de Ciências e Engenharia, esta situação é ainda pior se se tiver em conta o facto de que muitos dos estudantes com melhores classificações procuram cursos nas áreas da Saúde, da Biologia, da Economia. Em consequência, e sem querer embarcar no desporto nacional de passar as culpas para outrem, pode dizer-se que há um problema real no plano da preparação técnica dos estudantes à entrada do ensino superior. A este problema junta-se o da atitude intelectual e também o da capacidade de expressão oral e escrita. Não vou aqui analisar estas questões: sublinho apenas que as afirmações que faço são evidentemente afirmações sobre médias, e não sobre estudantes individuais.

Um segundo problema é o da motivação. Creio que é possível detectar um fenómeno de quebra de motivação nos estudantes dos cursos de Ciências e Engenharia em Portugal.

Esta questão é mais subjectiva. Não conheço estudos sobre isto. Pode haver aqui um erro de percepção da minha parte, e não haver um problema verdadeiramente novo. Mas suspeito que não é esse o caso, e que há efectivamente um crescente problema de desmotivação e de alienação estudantil, sobretudo nas áreas das ciências exactas e de algumas engenharias.

À primeira vista isto pode parecer paradoxal. Uma situação mais complicada no mercado de trabalho, em comparação com a situação de há duas ou três décadas (mais certa e regulada e menos competitiva), deveria trazer mais dedicação e interesse. Mas talvez a alienação e o desinteresse venham da sensação de que não vale a pena, de que uma licenciatura não tem o valor de livre-trânsito que já teve.
(Nota: Para esta situação pode contribuir ainda outro facto. O Estado é em Portugal o maior empregador de licenciados. Mas, infelizmente, é um péssimo empregador, porque muitas vezes é cego perante a questão da qualidade. Isto causa prejuízos e perturbações aos estudantes e às universidades.)

O contexto português, por outro lado, comporta um perigo real a este respeito: para quê estudar ciência e tecnologia, se todos os produtos tecnológicos mais correntes, de grande consumo e gratificação imediata, nos chegam feitos, completos e baratos? Para quê então ciências e engenharias em Portugal, para quê o esforço, o estudo, a reflexão? Não será isso só para os outros? Já Eça de Queirós observava que Portugal importa tudo. Dizia ele – ou mais precisamente um personagem criado por ele – que a civilização chega cá em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas...

A questão da motivação é inseparável do espírito com que os jovens chegam ao ensino superior. A própria prosperidade económica das famílias pode levar ao adiamento psicológico da questão do futuro profissional, e à separação entre esse futuro e os estudos superiores. Estes aparecem assim como uma simples continuação da escola básica e secundária, que se frequenta porque tem de ser, num curso qualquer, escolhido meio por vontade própria meio ao acaso, com a ajuda do computador do Ministério da Educação.

A questão da preparação à entrada dos cursos, aliada à desmotivação, produz os bem conhecidos fenómenos de insucesso nos primeiros anos da universidade, com números que a todos chocam, ou deviam chocar, pelo seu significado humano, social e económico.
 

Propostas

Que respostas se podem conceber no plano institucional para estes problemas? Vou tentar esboçar algumas. Também aqui as ideias são banais, e algumas já foram referidas em anteriores palestras neste forum.

Uma proposta possível é restringir de forma drástica o numerus clausus, de forma a só admitir nos cursos os estudantes mais preparados e motivados. Deixarei esta ideia de lado por motivos mais ou menos óbvios. Embora ela possa ser um caminho para algumas instituições, no contexto do tema desta mesa-redonda tem que ser considerada uma fuga ao problema.

O principal instrumento de ataque ao problema tal como ele foi descrito parece ser o das reformas curriculares bem pensadas, muito para além dos simples rearranjos ou permutações de elencos de disciplinas. No cerne de tais reformas deve estar uma ideia clara sobre o objectivo essencial da actividade de estudo a nível universitário. Esse objectivo, como já se disse, é o de aprender a pensar autonomamente. Claro que essa aprendizagem não deve ser levada a cabo no vazio, mas fazer-se, e demonstrar-se, no contacto com as matérias dos respectivos cursos.

As componentes centrais dessas reformas curriculares são as seguintes (algumas já foram mencionadas ontem): evitar o ensino de massas (que em Portugal parece funcionar mal); evitar excesso de disciplinas em simultâneo; exigir muito mais trabalho regular dos estudantes; repensar a natureza das aulas práticas.
(Nota: O Prof. Luís Magalhães, intervindo logo a seguir nesta mesa-redonda, referiu uma medida que simboliza o que está aqui em causa: nas aulas práticas deve ser proibido o uso do quadro.)

Ligada a isto está a revisão dos processos de avaliação, com maior intolerância do insucesso (mas seguramente não a sua correcção administrativa!), evitando o enorme desperdício humano e de recursos envolvido na reprovação, ou mesmo na ausência de avaliação, de largas percentagens de estudantes no termo das disciplinas.

De todas estas componentes a mais importante é a mudança das práticas de trabalho, e a sua organização é uma responsabilidade das instituições. Não se trata de estas se substituirem aos estudantes na questão da motivação (que se coloca sempre num plano muito pessoal), mas sim, repete-se, de melhor organizar o trabalho de forma a combater o problema da falta de motivação.

Ainda em matéria de reforma curricular, não me convence uma ideia que tenho visto defender, e que consiste em inverter a sequência habitual dos cursos, começando com as aplicações (o que supostamente reforçaria a motivação dos estudantes) e partindo depois para a ciência fundamental entretanto reconhecida como necessária. Mas pode ser que haja aí algo a explorar, pelo menos em certas áreas.

Mais interessante é a ideia de criar percursos especiais, opcionais, para alguns estudantes mais interessados e motivados. Pode em cada disciplina haver níveis mínimos gerais, e depois desenvolvimentos mais avançados, em tempos lectivos extraordinários, para grupos restritos de estudantes que o desejem e para isso sejam estimulados. Com este tipo de iniciativa pode responder-se, não só ao próprio interesse dos estudantes em causa, como à necessidade de dotar o país com graduados de alto nível que possam seguir carreiras académicas e de investigação.