NONIUS
nš23 ISSN 0870-7669 Fevereiro 1990
Folha Informativa do Projecto "Computação no Ensino da Matemática"

A MATEMATICA E AS APLICAÇÕES
Matemática e realidade física no século XVII

O século XVII viu nascer ao mesmo tempo o cálculo infinitesimal e a ciência do movimento, mais ou menos entre 1610 e 1690. As duas direcções de investigação são inseparáveis; elas fazem parte de um único esforço global para elucidar os fenómenos do movimento. São frequentemente os mesmos homens que enriqueceram simultaneamente a reflexão filosófica, os procedimentos matemáticos e a apreensão física da natureza.

Recuso (...) um modo demasiado ingénuo de ver as coisas, que seria o seguinte: o físico, que se ocupa dos fenómenos naturais do movimento, tinha dificuldade em estudar e calcular as velocidades instantâneas; e eis que um belo dia, um especialista de outra disciplina, matemático, lhe fornece as ferramentas infinitesimais, principalmente a noção de derivada. Na realidade esta noção nasceu num contexto de estudo do movimento; em vários autores, a derivada não é outra coisa senão a própria velocidade.

Poderia dizer-se, forçando ligeiramente: não foi a derivada que permitiu a definição de velocidade, mas o contrário. Num grande número de textos, a velocidade instantânea é uma noção considerada como admitida, e que serve de base aos raciocínios infinitesimais. O exemplo de Newton é muito nítido: o seu cálculo das "fluxões" é uma comparação entre velocidades de variação.

(...) Na vida cultural do século XVII, a questão do movimento jogou um papel primordial, nomeadamente como introdução natural, intuitiva, aos problemas e às descobertas do cálculo infinitesimal; claro que era necessário resolver também as dificuldades lógicas do infinitamente pequeno, dos indivisíveis, etc. Mas as especulações lógicas não foram o motor desta história: o estudo do movimento e das velocidades constituía um motivo igualmente potente, oferecendo ao mesmo tempo um suporte físico e imaginativo ao racocínio.

 

[extracto de "Mathématiques et réalité physique au XVIIe siècle" por François de Gandt in
"Penser les Mathématiques", Coll. Points-Sciences, Seuil, Paris, 1982]

 

 

A geometria funda-se na mecânica prática

A Geometria não nos ensina a traçar as linhas, supõe-as traçadas; é portanto necessário que antes de começar a geometria, aprendamos a traçar as linhas de maneira precisa; podemos então ver como como estas operações permitem resolver os problemas. As construções das linhas rectas e das circunferências são problemas, mas não problemas de geometria. A solução desses problemas releva da mecânica e, estes resolvidos, a geometria demonstra-lhes o uso. (...) Assim, a geometria funda-se na mecânica prática; não é outra coisa senão a parte da mecânica universal que precisamente se preocupa com a arte da medida.

[extracto de "Princípios de Filosofia Natural" de Newton, 1686]

 

 

A razão pode descobrir as propriedades dos objectos reais?

Como é que a matemática, que é um produto do pensamento humano e independente de qualquer experiência, se adapta duma maneira tão admirável aos objectos da realidade? A razão humana seria capaz, sem recurso à experiência, de descobrir só pela sua actividade as propriedades dos objectos reais?

A esta questão é preciso, na minha opinião, responder do seguinte modo: na medida em que as proposições da matemática se relacionam com a realidade não são certas, e na medida em que elas são certas, não se relacionam com a realidade. A clareza perfeita sobre este assunto não podia ter-se tornado comum sem a tendência em matemática que é conhecida sob o nome de axiomática. O progresso realizado por esta última consiste em que a parte lógica e formal é cuidadosamente separada do conteúdo objectivo ou intuitivo. Segundo a axiomática, a parte lógica e formal consitui só o objecto da matemática, mas não o conteúdo intuitivo ou outro que lhe esteja associado.

(...) A axiomática moderna desembaraça a matemática de todos os elementos que não lhe pertencem, e dissipa assim a obscuridade mística que envolvia noutros tempos os fundamentos. (...) Mas é por outro lado verdade que a matemática em geral e a geometria em particular devem a sua existência à nossa necessidade de saber qualquer coisa sobre o comportamento dos objectos reais.

[extracto de "A geometria e a experiência" por Albert Einstein, 1921]

 

 

Relações da matemática com a física

É impossível explicar honestamente as belezas das leis naturais, de um modo que possa ser verdadeiramente sentido, a alguém que não tenha um conhecimento profundo de matemática. Lamento muito, mas parece que é assim.

Podem, porém, dizer: "De acordo, mas, se a lei não pode ser explicada, pelo menos, diga em que consiste essa lei. Por que não diz por palavras, em vez de utilizar símbolos? A matemática não é mais do que uma linguagem, queremos uma tradução dessa linguagem." De facto, posso fazer isso, com alguma paciência (...). Poderia converter todos os símbolos em palavras. Por outras palavras, poderia ser simpático para os leigos que estão sentados à espera que lhes explique as coisas. Há pessoas que são conhecidas pela habilidade em explicar aos leigos, usando a linguagem comum, assuntos difíceis e abstractos. O leigo põe-se então a folhear livros e mais livros, na esperança de evitar as complicações, que acabam sempre por aparecer, mesmo com o melhor dos divulgadores. À medida que lê, depara, porém, com uma confusão cada vez maior, com enunciados cada vez mais complicados, todos aparentemente desligados uns dos outros. Perde-se e espera encontrar num outro livro alguma explicação... Este autor quase o conseguiu, talvez o próximo consiga.

Mas não penso que tal seja possível, pois a matemática não é apenas outra linguagem: é uma linguagem mais o raciocínio, é uma linguagem mais a lógica, é um instrumento para raciocinar. É, de facto, uma grande colecção de resultados provenientes de pensamentos e raciocínios cuidadosos. A matemática permite relacionar um enunciado com outro. Por exemplo, posso dizer que a força [com que o sol atrai um planeta] está dirigida para o sol. Também posso dizer-lhes (...) que o movimento do planeta é tal que, desenhando uma linha do sol para o planeta num dado instante e outra passadas, por exemplo, três semanas, a área varrida pelo planeta será exactamente a mesma que será varrida nas próximas três semanas e nas três semanas seguintes, etc., à medida que o planeta prossegue na sua órbita em torno do Sol. Posso explicar cuidadosamente estes dois enunciados, mas não posso explicar a quem não saiba matemática por que são equivalentes. As complexidades da natureza, manifestamente enormes, traduzidas por todas as suas regras e leis estranhas, que já lhes foram explicadas em pormenor, estão de facto intimamente ligadas. Na verdade, quem não gosta de matemática não pode ver, numa grande variedade de factos, que a lógica permite passar de um para outro.

(...) Quando os problemas da física se tornam difíceis, pode-se pedir a ajuda dos matemáticos, que podem já ter estudado essas coisas e ter preparado uma linha de raciocínio pronta a ser seguida. Por outro lado, podem também não ter estudado o assunto, caso em que temos de inventar uma linha própria de raciocínio, que entregamos aos matemáticos. Todos os raciocínios rigorosos servem para alargar os nossos conhecimentos num determinado domínio. Se tomarmos o essencial de um certo raciocínio e o enviarmos aos matemáticos, eles podem incluí-lo nos seus livros e considerá-lo um ramo da matemática.

A matemática é, assim, uma maneira de passar de um conjunto de enunciados para outro. É, evidentemente, útil em física, porque se pode falar das coisas de diferentes maneiras. A matemática permite-nos extrair consequências, analisar várias situações e modificar as leis, de modo a relacionar vários enunciados. De facto, o conhecimento total de um físico é bastante reduzido: apenas tem de se recordar das regras para passar de um sítio para outro, o que é suficiente, porque os vários enunciados sobre tempos iguais, força radial, etc., estão relacionados uns com os outros pelo raciocínio.

[extracto de "O que é uma lei física?" por Richard P. Feynman, Col. Ciência Aberta, editora Gradiva, 1989]

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