Painel: “Os acordos de Bolonha e os desafios da Formação Inicial de Professores”

João Filipe Queiró
Departamento de Matemática
Faculdade de Ciências e Tecnologia
Universidade de Coimbra
 
(February 2006)
Revista de Educação, vol. XIV, nº 1, p. 11-16, 2006.




 
1) Como considera os desenvolvimentos que tem havido desde a Declaração de Bolonha até à actualidade no que respeita à procura de soluções para a sua implementação em Portugal na área da formação inicial de professores?
 
Agradeço o convite para redigir um depoimento sobre o chamado “processo de Bolonha” e a formação inicial de professores. Dar-lhe-ei em parte a forma de um testemunho pessoal, remetendo o leitor ocasionalmente para outros textos que redigi ou em que colaborei.
 
A Declaração de Bolonha é de Junho de 1999. Até à Primavera de 2004 creio que não houve iniciativas governamentais especificamente dirigidas à sua concretização no que se refere aos cursos de formação de professores. A tutela do ensino superior entre as duas datas foi exercida por seis ministros diferentes.
 
Nesses anos houve vários encontros e colóquios, bem como iniciativas de instituições de tipo diverso. No que se refere a encontros, recordo em particular o seminário “Reflectir Bolonha: Reformar o Ensino Superior”, organizado em 2003 pela Reitoria da Universidade do Porto, com quatro sessões realizadas entre Abril e Junho e cujas conclusões foram publicadas em livro e CD-ROM. A segunda dessas sessões foi dedicada à formação de professores (o texto respectivo pode ser encontrado em http://www.mat.uc.pt/~jfqueiro/Bolonha-UP.html).
 
Em 2003 já tinha sido extinto o Instituto Nacional de Acreditação da Formação de Professores. Lançado no final da década de 90, na sequência do trabalho realizado em 1997-98 por um grupo de missão criado por Resolução do Conselho de Ministros, de que fiz parte a convite do Ministro da Educação (o relatório respectivo foi publicado em livro e pode ser encontrado em http://www.mat.uc.pt/~jfqueiro/inafop_forum_textos_grupo_missao.pdf), o INAFOP não resistiu à vaga de extinções de institutos públicos levada a cabo pelo governo saído das eleições de Março de 2002.
 
A criação do INAFOP não esteve directamente relacionada com Bolonha, mas foi a última tentativa de regulação da formação de professores em Portugal. Esta continua assim a depender de um ordenamento jurídico já obsoleto, corporizado essencialmente no Decreto-Lei n.º 344/89, de 11 de Outubro.
 
Em 2001, a escola a que pertenço, o Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, levou a cabo uma reestruturação razoavelmente profunda do plano de estudos da licenciatura em Matemática. Esta mudança, concretizada após elaboração de um extenso relatório e respectivo debate interno, tomou já em consideração a Declaração de Bolonha. Referir-me-ei a ela na resposta à questão seguinte.
 
Uma importante iniciativa a nível europeu no quadro de Bolonha, com relevantes documentos produzidos, é o projecto Tuning. Nele estiveram envolvidos, no que se refere à Matemática, os Profs. António Guedes de Oliveira e Rosário Pinto.
 
Em 2004, a anterior responsável pela tutela do Ensino Superior adoptou, para avançar no processo de Bolonha em Portugal, a metodologia que se sabe. As formações superiores foram divididas em pouco mais de duas dezenas de grandes áreas de conhecimento, e para cada uma destas foi designado um coordenador ou relator, com o encargo de, procedendo às consultas adequadas, elaborar um parecer sobre a concretização do processo de Bolonha na respectiva área. A formação de professores foi uma das áreas designadas. Alguns dos coordenadores constituíram grupos de trabalho. Foi o caso da formação de professores, cujo coordenador foi o Prof. João Pedro da Ponte, e também das Ciências Exactas, cujo coordenador foi o Prof. José Ferreira Gomes (o respectivo relatório pode ser visto em http://www.mat.uc.pt/~jfqueiro/Bolonha_Ciencias_Exactas.pdf). Tanto o parecer das Ciências como o das Letras (área cuja coordenadora foi a Profª Cristina Robalo Cordeiro) faziam referência à necessária ligação com a formação de professores.
 
A data-limite para o envio dos pareceres dos coordenadores de área coincidiu praticamente com o anúncio da dissolução da Assembleia da República. Os pareceres ainda estiveram algum tempo online na página do Ministério, mas todo esse trabalho acabou, aparentemente, por se perder.
 
Que eu saiba, na actividade do novo governo relativa à concretização do processo de Bolonha não existiu até agora uma dimensão especificamente dedicada à formação de professores. Vive-se portanto, do ponto de vista político/legislativo, uma situação de um certo vazio nessa matéria. Pensando bem, é o que acontece já há muito tempo. A educação é sempre referida, no discurso político, como um sector de enorme importância para o país. Por sua vez, a centralidade dos professores e da sua formação para a qualidade da educação devia ser óbvia para todos. No entanto, a formação de professores e as áreas conexas têm estado ao abandono em Portugal no que se refere ao enquadramento legislativo e regulamentar e às garantias de qualidade, uma dimensão essencial de Bolonha.
 
 
2) Quais são os princípios centrais que devem presidir à reorganização curricular nos programas de formação inicial de professores nas ESEs e nas Universidades à luz da Declaração de Bolonha?
 
Referir-me-ei apenas à formação de professores do “perfil 3+4”, isto é, professores habilitados a leccionar nos – actualmente chamados – 3º ciclo e Secundário. Este perfil poderá eventualmente vir a abranger também a leccionação no 2º ciclo do Ensino Básico, dependendo de opções futuras nesta matéria. Mas não é isso o que acontece agora. Em qualquer caso, o 3º ciclo deve ser tratado em conjunto com o Secundário (ver http://www.mat.uc.pt/~jfqueiro/6+6.html).
 
A formação inicial de professores deste perfil – que deve ser exclusivamente universitária – está particularmente adaptada a uma concepção 3+2 dos respectivos cursos. O primeiro ciclo de três anos é disciplinar, sendo, ou podendo ser, comum a cursos nas mesmas áreas mas com outras saídas. O segundo ciclo de dois anos é profissionalizante, incluindo uma componente de iniciação à prática profissional. Esta organização propicia a formação dos futuros profissionais docentes nas várias componentes essenciais que têm de estar presentes nestes cursos.
 
O carácter disciplinar do primeiro ciclo sublinha a separação e a distinção claras, num curso de formação inicial de professores para os níveis indicados, entre a componente de formação na especialidade e as restantes componentes de formação. (Para outras observações sobre este tema veja-se o texto “Formação e contratação de professores”, contido nas actas do seminário “O Ensino da Matemática: Situação e Perspectivas”, Conselho Nacional de Educação, Lisboa, 2003, disponível em http://www.mat.uc.pt/~jfqueiro/CNE.html).
 
O primeiro ciclo de três anos é o início por excelência da formação mental superior, não excessivamente dirigida do ponto de vista das saídas profissionais. Se cumprir a sua missão, a Universidade desempenha um papel crucial na formação de cidadãos que vão um pouco além da “sabedoria de jornal sem raiz nem tempo pessoal verdadeiro” de que fala algures Eduardo Lourenço. Essa formação é lenta, não se compadecendo com pressas oportunistas.
 
É obviamente também neste primeiro ciclo que se adquirem as competências disciplinares de base que permitirão ao futuro professor encarar a sua profissão com à-vontade, sem receio das mudanças e situações novas e inesperadas que são o quotidiano de qualquer docente.
 
Não desejo deixar dúvidas, neste texto, sobre a concepção que tenho relativamente ao papel do professor e da escola. A oposição transmissão de conteúdos – desenvolvimento de competências é um falso dilema, ou então é uma questão velha e trivial. É surpreendente a carga negativa que por vezes se confere à palavra “conteúdos”. Na concepção que perfilho postula-se que o conhecimento existe, que há um património cultural, científico, civilizacional, cuja aquisição pelos jovens é missão da escola e do ensino.
 
O segundo ciclo de dois anos deve ser prático e profissionalizante. Nele é levada a cabo a integração de conhecimentos com a motivação do seu ensino nos níveis para que o curso habilita. E deve ser propiciada uma introdução à realidade escolar nas suas diversas vertentes.
 
O segundo ciclo não deve ser tão “transversal” que possa ser praticamente igual para todas as áreas, e não deve portanto ser oferecido por escolas não ligadas às áreas disciplinares dos futuros professores. As disciplinas de didáctica específica devem ser da responsabilidade de docentes ligados à respectiva área.
 
Do segundo ciclo faz ainda parte a iniciação à prática profissional, que tradicionalmente assume no final do curso a natureza de um estágio de um ano. Apesar de se poderem obviamente conceber diferentes modalidades de organização do estágio, nunca vi proposta uma alternativa satisfatória a este momento fundamental da formação do futuro professor.
 
Foram considerações como as indicadas que presidiram à já referida reestruturação da licenciatura em Matemática na Universidade de Coimbra, na parte que se refere à formação de professores, área em que a escola tem uma longa experiência. O “tronco comum” da licenciatura, frequentado por todos os estudantes, passou de dois para três anos, ficando como base para um futuro primeiro ciclo de Bolonha, contemplando as áreas básicas da Matemática fundamental e aplicada e da Computação. No 3º ano deste tronco comum, há já algumas opções, incluindo uma que deve ser obrigatoriamente escolhida fora da Matemática (as preferidas pelos estudantes têm sido Economia e Astronomia, mas são também possíveis disciplinas de Física, Biologia, Antropologia, Engenharia Informática, etc.). Só no final do 3º ano é necessário escolher que rumo se pretende seguir, e é aí que têm início os dois anos que completam a formação inicial dos estudantes que escolhem a via da formação de professores. Estes dois anos seguem o modelo acima descrito como adequado para um segundo ciclo.
 
Há uma dificuldade na concepção de programas de formação inicial de professores no caso de cursos que habilitem para a docência de mais do que uma disciplina. Não analisarei essa questão aqui, notando apenas que ela pode levantar problemas na articulação entre os dois ciclos, seja no que se refere às condições de acesso ao segundo ciclo, seja na necessidade de neste poderem ter de ser completadas exigências de formação disciplinar não satisfeitas no primeiro ciclo.
 
 
3) Que dificuldades têm existido e que dificuldades se pode antecipar relativamente à implementação das orientações da Declaração de Bolonha (especialmente na área da formação inicial de professores)?
 
Uma dificuldade “super-estrutural” já foi mencionada: a instabilidade da tutela do ensino superior em Portugal desde 1999. Essa instabilidade, como também já foi referido, não foi só de pessoas, foi também de políticas. O trabalho desenvolvido em 2004 implicou um elevado número de reuniões, colóquios, consultas públicas, versões de documentos. Quem quer que tenha participado nesse processo, mesmo que não concordasse com um ponto ou outro, não pode senão encarar com perplexidade e cepticismo a “tábua rasa” de que dele depois se fez, e a súbita inflexão de metodologia na concretização do processo de Bolonha em Portugal.
 
Esta nota permite chamar a atenção para um aspecto insuficientemente destacado. Todo este trabalho faz os universitários gastar imenso tempo, e não é óbvio que a análise custo-benefício desse dispêndio de tempo resulte num balanço positivo. Não tenho simpatia pela concepção de universidade como local onde se fazem muitas reuniões.
 
Dir-se-á que nada foi tempo perdido, que mesmo os esforços inconclusivos foram úteis para levar os universitários a melhor “interiorizar” a mudança que aí vem. Naturalmente, quem assim pensa são os mais optimistas quanto à “revolução” que Bolonha supostamente trará ao ensino superior português. Embora o messianismo não seja o meu forte, reconheço que o optimismo é uma característica muito necessária à vida portuguesa em todos os aspectos, e também no ensino superior. Se de Bolonha resultar, por exemplo, que no futuro se trabalhe mais e melhor nas instituições de ensino superior em Portugal, já será muito bom.
 
Há alguns aspectos da nova regulamentação do processo de Bolonha que são positivos, outros que o parecem menos.
 
Entre os primeiros está a afirmação da diferença entre os sistemas universitário e politécnico, objecto de tantas confusões no passado.
 
Positiva também é a ênfase posta, pelo menos teoricamente, nos requisitos de qualidade necessários à organização de formações conducentes aos vários graus.
 
Entre os aspectos menos positivos está uma atitude de indefinição quanto à duração dos ciclos, cuja fixação é deixada às instituições. É surpreendente que se admita que cursos com o mesmo nome e a mesma intenção formativa possam ter durações diferentes. É bom que as instituições exerçam a sua autonomia e tenham iniciativa própria, mas isto é um pouco exagerado. A orientação da lei nesta matéria é uma vaga alusão a formações europeias de referência, o que parece curto em termos de expressão de uma vontade e uma racionalidade nacionais.
 
Outro aspecto negativo é a escolha da designação de “licenciatura” para o diploma do primeiro ciclo. Não analisarei essa questão aqui (podem encontrar-se algumas notas sobre ela no já referido parecer de 2004 sobre as Ciências Exactas).
 
Outro ainda é o adiamento da instituição dos mecanismos de garantia de qualidade. Para quem conhece o passado do assunto em Portugal, tem algo de inquietante que se permita o desfasamento temporal entre a criação de cursos e a inspecção da sua qualidade, aspecto central, repete-se, do processo de Bolonha.
 
Isto é em particular assim no que se refere à formação de professores, área em que os erros se acumularam nas duas últimas décadas. A avaliação e acreditação dos cursos de formação de professores é matéria absolutamente crucial, e esta é a principal dificuldade que antevejo na concretização do processo de Bolonha em Portugal na área da formação inicial de professores.
 
Quanto à política de recrutamento de professores, a situação actual, de desregulação, injustiça e irresponsabilidade, não pode continuar. Seria vantajoso no futuro utilizar, cumulativamente, mecanismos de avaliação/acreditação e um sistema de exame nacional por área de especialidade para acesso à profissão de docente. Em qualquer caso, deve ficar claro que todas as vias de acesso à profissionalização devem ter a mesma exigência.
 
É espantoso que em Portugal as mais variadas profissões, mesmo algumas que não implicam especiais responsabilidades nem necessidades de formação, estejam submetidas a mecanismos de certificação, enquanto que a estratégica profissão de professor está há muitos anos na situação de desregulação que todos conhecemos.
 
Esta mesma desregulação conduziu à situação a que se chegou no sistema educativo público, com muitos docentes profissionalizados após formações de qualidade lançados no desemprego porque muitos lugares estão ocupados por docentes com formações desajustadas e sem qualidade.
 
Ninguém hoje sabe com precisão como se compõe a população docente das escolas básicas e secundárias portuguesas no que se refere às suas habilitações, e muito menos como se correlacionam as habilitações dos docentes com a qualidade das aprendizagens dos alunos.
 
Uma política educativa corajosa procederia ao reexame das habilitações dos docentes em exercício de funções. Ao leitor interessado sugiro, por exemplo, que se informe sobre a iniciativa que nessa matéria tomou Bill Clinton quando era governador do Arkansas nos anos 80, e que ele tão vividamente recorda na sua recente autobiografia.
 
Como noutras dimensões da vida nacional, também aqui talvez o input europeu possa contribuir para que Portugal faça o que de outra forma – com pena o digo – não se tem disposto a fazer.
 
 
4) Como se relacionam as propostas em discussão, decorrentes da interpretação e tentativa de implementação da Declaração de Bolonha, com os possíveis cenários de desenvolvimento social na Europa?
 
Vejo a Declaração de Bolonha como traduzindo acima de tudo um desígnio político de âmbito europeu: acrescentar à construção e à integração europeias também a dimensão do ensino superior e da sociedade do conhecimento, sem esquecer a preocupação de trazer para dentro da casa comum universitária os países do leste, recém-chegados à liberdade.
 
Está portanto em causa, para começar, um ponto de vista europeu, um interesse europeu. Neste contexto, como se concebe um ponto de vista nacional, um interesse nacional?
 
Uma boa questão-teste é a da mobilidade dos estudantes. Se o governo português adoptar uma política restritiva – por áreas, e não por qualidade – no financiamento dos segundos ciclos, não é impossível que comecemos a ver a formação de nível pós-graduado, em diversos campos, a ser procurada maioritariamente no estrangeiro. Uma mobilidade, portanto, em que podemos perder muitos dos nossos jovens, oferecendo em grau excessivo a outros – países e empresas – o resultado do investimento anterior na formação desses jovens. O entusiasmo acrítico a que por vezes se assiste em matéria de mobilidade faz lembrar o encanto dos perus pelas iluminações festivas quando se aproxima o Natal.
 
Um objectivo de fundo associado a Bolonha é a subida da qualificação da população, através do aumento da frequência do ensino superior, diversificando-o com a oferta de primeiros ciclos curtos terminais, um pouco como nos Estados Unidos da América, que têm taxas elevadas de frequência de formações pós-secundárias.
 
Será positivo que se utilize todo este processo para travar e inverter a deriva académica do ensino politécnico, mediante a consolidação da oferta de formações curtas visando a formação de técnicos (sobre o tema ver por exemplo http://www.mat.uc.pt/~jfqueiro/univ-polit.html).
 
Se dentro de alguns anos estiverem em funcionamento mecanismos incisivos de garantia de qualidade de instituições e cursos, se se observar melhoria sensível do trabalho de professores e estudantes, se se tiver concretizado a consolidação e o aumento da oferta diversificada de formações, então o processo de Bolonha terá valido a pena em Portugal.