Parte Segunda

História da cultura das Matemáticas em Portugal no século XVI


Estado de Portugal no século XVI
Álvaro Tomaz e Gaspar Nicolas, aritméticos
Pedro Nunes como cosmógrafo
Pedro Nunes na Física
A Cosmologia na obra de Pedro Nunes
Pedro Nunes na Geometria
Pedro Nunes na Álgebra
Considerações gerais sobre os trabalhos de Pedro Nunes
Vida de Pedro Nunes
Astrónomos e cosmógrafos contemporâneos de Pedro Nunes


Estado de Portugal no século XVI

No segundo período da História da cultura das Matemáticas em Portugal, em que vamos entrar, período que coincide com o século XVI, está êste país no auge da sua glória. O manto dos seus reis, a-pesar-dos defeitos que cobre, deslumbra todo o mundo então conhecido. A semente espalhada pelos seus antecessores do século XV germinara e está produzindo frutos maduros que aqueles estão colhendo. Nenhum país o excede em fama e poderio. E êle um povo de eleição cujos marinheiros navegaram em frágeis caravelas, hàbilmente dirigidas, até à Índia, a Terra para eles da Promissão, que lhe deu a glória de um povo de heróis, e até ao Brasil, que lhe havia de dar no futuro a honra de um povo colonizador.

Demais, a Providência, generosa para êste povo, não lhe deu sòmente heróis na navegação e na guerra, deu-lhe também heróis do pensamento: deu-lhe Camões, o Homero das suas glórias, deu-lhe cronistas insignes, para narrar os feitos na terra e no mar dos seus soldados e marinheiros e, como presente apropriado ao seu papel nos Oceanos, deu-lhe cosmógrafos eminentes, que organizaram a ciência da navegação do seu tempo e prepararam a ciência da navegação do futuro.

Abriu o período D. Manuel, monarca venturoso e vaidoso, que teve a ventura de ver partir e regressar os heróis que primeiro aportaram à Índia e pôde ter a vaidade de ser o chefe supremo de tal gente.

Seguiu-se D. João III, que conservou e mesmo aumentou os domínios que herdou de seu pai, mas que, pelo seu espírito intolerante, ou talvez mal aconselhado, cometeu o êrro nefasto de introduzir em Portugal e proteger a sinistra instituïção do Santo Ofício.

Veio depois D. Sebastião, que, com a sua febre de heroísmos, pretendendo ajuntar aos seus domínios e aos domínios da cristandade as terras da Mauritânia, sucumbiu com o exército português nos areais malditos de Alcácer-Quivir.

Este terrível desastre feriu mortalmente Portugal, a cuja agonia assistiu um velho decrépito, o Cardial D. Henrique, que fechou fùnebremente a dinastia que auspiciosamente abrira D. João I.

Depois as terras de Afonso Henriques, sagradas para os Portugueses, caíram no domínio do ambicioso Filipe II de Castela.

E assim sucumbiu miseramente uma nação que menos de um século antes subira a uma glória épica que fora o assombro do mundo. É que o manto real, quanto mais se estendia, mais e maiores vícios e erros cobria, vícios e erros que começaram a manifestar-se no reinado de D. Manuel, aumentaram no reinado de D. João III e continuaram a aumentar no reinado de D. Sebastião; por isso aquele manto, depois de manchado de sangue na Mauritânia, transformou-se em sudário da dinastia e do reino.

Eis o cenário histórico em que vai passar-se o segundo período da história da cultura das Matemáticas em Portugal.

Álvaro Tomaz e Gaspar Nicolas, aritméticos

No primeiro período da história das Matemáticas em Portugal não apareceu cultor algum destas ciências que se ocupasse de assuntos diferentes da sua aplicação à náutica. Não aconteceu o mesmo no segundo. Aparece logo a abri-lo um aritmético insigne, Álvaro Tomaz.

É êste matemático autor de uma obra intitulada Liber de triplice motu, publicado em Paris em l509, e, pelo que diz no prefácio, sabe-se que nasceu em Lisboa e que foi professor em um colégio da capital da França.

Ainda há bem poucos anos era completamente desconhecido em Portugal, segundo creio, e é ao ilustre professor da Universidade de Madrid Rey-Pastor que devemos a notícia dele, bebida em um excelente livro que em 1926 consagrou à historia dos matemáticos espanhóis do século XVI. Ocupou-se Álvaro Tomaz no livro mencionado do movimento do ponto sôbre o plano e a sua doutrina a êste respeito está estreitamente ligada à que fôra dada por Oresme, no século XIII, no tratado De latitudinibus formarum, onde êste célebre geómetra estudara o movimento do ponto por meio da representação sôbre um plano da relação entre a velocidade e o tempo relativamente a dois eixos de coordenadas. Esta obra foi comentada no século XIV por Biagio de Parma e era muito conhecida nos tempos de Álvaro Tomaz.

No livro do matemático português, a teoria de Oresme é estudada por um método aritmético-geométrico engenhoso e dão-se nêle teoremas notáveis, entre os quais assinalaremos o seguinte: em qualquer movimento variado de um ponto, a linha descrita poderia ser percorrida no mesmo tempo por outro ponto com velocidade constante, compreendida entre a maior e a menor velocidade do primeiro ponto; teorema que, aplicado ao movimento variado, dá um resultado que se tem atribuído a Galileu, mas que, segundo se vê em um excelente trabalho de Marcolongo sôbre Leonardo de Vinci, fora dado antes pelo mencionado matemático Oresme e reproduzido em um manuscrito daquele célebre pintor e sábio.

O livro de Álvaro Tomaz ainda notável pela habilidade com que o autor soma nêle algumas séries numéricas e pelo engenho com que determina limites para o valor de outras que, por dependerem de logaritmos, se não podiam somar naqueles tempos, e ainda de outras que ainda agora se não sabem somar.

A intervenção das séries nas questões de cinemática estudadas no livro considerado explica-se do modo seguinte. No modo de estudar estas questões, divide-se o tempo em intervalos em progressão geométrica, considera-se como constante a velocidade do movimento durante cada intervalo e consideram-se as velocidades correspondentes aos diversos intervalos como ligadas por uma lei. A soma dos espaços percorridos pelo ponto durante os diversos intervalos é uma série com lei determinada que o autor do livro estuda para diversas hipóteses daquela lei. O movimento uniformemente variado corresponde ao caso de velocidades em progressão aritmética.

O livro de Álvaro Tomaz é muito raro; a Biblioteca Nacional de Lisboa possui um exemplar recentemente adquirido. Não nos foi possível obter qualquer informação biográfica a respeito do autor; provavelmente saiu cedo de Portugal, fêz os seus estudos em França, e ali ficou a ensinar.

O livro mais antigo consagrado em Portugal à Aritmética tem por título Tratado da pratica Darismetica, e foi publicado pela primeira vez em 1519 e o seu autor chamava-se Gaspar Nícolas. Diz-se que era natural de Guimarães.

Abre êste tratado por alguns capítulos sôbre as regras para somar, subtrair, multiplicar e dividir números inteiros e fraccionários, para extrair as raízes quadradas dos números inteiros e para somar progressões. Seguem-se depois numerosos problemas de que o autor dá as soluções, empregando para isso a regra de três, a regra de falsa posição, etc. Alguns dêstes problemas são de utilidade na vida, outros são interessantes curiosidades numéricas.

Percorrendo-o com atenção, nota-se que o livro mencionado é um excelente manual de Aritmética prática, muito claro e simples na exposição das doutrinas, sem teorias, que certamente prestou bons serviços no século XVI. Dá-lhe um interêsse especial a circunstância de o autor do livro ter recolhido alguns problemas considerados nas obras de Frei Lucas de Burgo, como êle próprio diz, sendo assim talvez o primeiro a fazer notar na nossa Península o célebre matemático italiano que depois Marco Aurel, na Espanha, e principalmente Pedro Nunes, em Portugal, engrandeceram, ensinando as suas teorias algébricas.

Gaspar Nícolas não deduz no seu tratado as soluções dos problemas que considera, não emprega a arte algébrica; enuncia-os, indica as soluções e verifica-as, sem dizer o modo como as obteve. É pena que o mesmo aritmético não tenha extraído da obra de Frei Lucas a parte relativa à Álgebra, para a fazer conhecer em Portugal.

O livro de que acabamos de falar, foi muito lido em Portugal no século em que foi escrito e nos seguintes, porque, além da edição de 1519, da qual se conhece apenas um exemplar, possuído pela Faculdade de Ciências do Pôrto, teve outras em 1530, 1541, 1573, 1594, 1613, 1679 e 1716.

Na Espanha, antes de aparecer em Portugal o livro de Gaspar Nícolas, tinham sido publicados os tratados de Aritmética de Ciruelo, Frei João de Ortega e Siliceo. Seria interessante comparar com eles os do aritmético português, mas não me foi possível fazê-lo, por não ter podido obter os tratados daqueles autores.

Os livros de Frei Lucas de Burgo e de Gaspar Nícolas inspiraram outro aritmético português, Bento Fernandes, na composição do seu Tratado da arte d'Arismetica, publicado em 1555, para uso dos mercadores, livro que contém, como o de Nícolas, as regras necessárias para executar as operações numéricas e para resolver os problemas que apareciam naqueles tempos no exercício do comércio, e, além disso, as doutrinas de Frei Lucas para a resolução das equações do primeiro e do segundo grau. Este tratado representa pois um grande progresso sôbre o de Nícolas, que não contém estas últimas doutrinas, já então divulgadas na Espanha por Marco Aurel.

Outro escritor dos mesmos tempos que se ocupou de assuntos matemáticos estranhos à náutica foi D. Francisco de Melo, Bispo de Goa. Estudou em França, onde foi discípulo de Brissot, e, depois de voltar a Portugal, compôs comentários em latim às doutrinas de Óptica atribuídas a Euclides e ao tratado De incidentibus in humidis de Arquimedes, que ficaram inéditos.

Pedro Nunes como cosmógrafo

Voltemos à história da Astronomia náutica, interrompida para poder apresentar alguns aritméticos, sem alterar a ordem cronológica. Entra em cena Pedro Nunes e, com êle, a hegemonia das Matemáticas na Península ibérica vai passar da Espanha para Portugal. Não devemos todavia esquecer que no período em que vamos entrar, teve o país vizinho em Frei João de Ortega um aritmético ilustre, cujo valor foi assinalado com elogio pelo sr. Rey-Pastor no seu já mencionado livro sôbre os matemáticos espanhóis do século XVI.

Como dissemos nos Panegíricos e Conferências, Pedro Nunes apareceu na cena do mundo no alvorecer da civilização moderna, quando Portugal estava no período do seu máximo esplendor. Poucos anos antes de nascer, tinha Cristóvão Colombo descoberto a América, Vasco da Gama o caminho marítimo da Índia e Pedro Álvares Cabral o Brasil. No ano em que nasceu, 1502 fêz Vasco da Gama a sua segunda viagem à Índia. Estava em plena juventude quando se realizou a primeira circunnavegação do mundo.

«Foi pois educado a ouvir falar das glórias lusitanas e isto não podia deixar de influir para lhe levantar o espírito, que era por natureza bem dotado, e talvez mesmo para fixar a direcção em que havia de exercer a sua actividade científica.

«De facto, em 1529 foi chamado a desempenhar as funções de Cosmógrafo do Reino. Era nessa ocasião Bacharel em Medicina pela Universidade portuguesa, então instalada em Lisboa, e tinha visitado em romaria de estudo a Universidade de Salamanca, que era naqueles tempos o Santuário da ciência hispânica; mas abandonou logo aquela ciência, então cheia de quimeras astrológicas, que não poderiam satisfazer o seu espírito são, para se entregar completamente aos estudos de assuntos sólidos de Matemática e Física, começando, para cumprir os deveres do seu cargo, por aqueles que interessavam especialmente à Náutica». Como dissemos, também no livro mencionado, .quando foi nomeado Cosmógrafo do Reino, tinham terminado as grandes descobertas geográficas dos portugueses, mas estava em plena actividade a exploração das riquezas das terras por êles descobertas. Estava-se no tempo em que Portugal, para consolidar e utilizar os seus domínios no Oriente, procurava espalhar feitorias e missões religiosas pelos lugares mais apropriados para aquele fim; em que os seus soldados se batiam heroicamente com os árabes, que pretendiam conservar nas suas mãos o comércio da Índia; em que entre Lisboa e Calecute navegavam numerosas naus, que traziam a Lisboa as riquezas do Levante, fazendo desta cidade a rainha dos mares e o centro do comércio do mundo».

Começava-se também na mesma época a prestar atenção ao comércio e navegação do Brasil, cuja civilização havia de ser mais tarde, como já dissemos, honra de um povo de colonizadores, como as conquistas da Índia foram glória de um povo de heróis. Foi com efeito nos primeiros anos depois que Pedro Nunes começou a exercer as funções de cosmógrafo que Martim Afonso de Sousa, fundando no Brasil as primeiras colónias que Portugal teve na América, deu os passos iniciais para a formação do nosso extenso império do Ocidente.

A colonização da África começou mais tarde e dá também honra aos Portugueses. Mas, ao abrir o século XVI, tôda a costa do então misterioso continente, a oriente e ocidente tinha sido visitada por nautas lusos e o tormentoso Cabo da Boa Esperança era já o monumento levantado na história a glória de Bartolomeu Dias, que primeiro o tinha descoberto e nas águas do seu mar perdera a vida.

O que era nesses tempos o império português no oriente di-lo eloqüentemente o grande cosmógrafo em uma das suas obras:

«Não há dúvida que as navegações deste reino, de cem anos a esta parte, são as maiores, mais maravilhosas, de mais altas e mais discretas conjecturas que as de nenhuma outra gente do mundo. Os portugueses ousáram cometer o grande mar Oceano. Entraram por êle sem nenhum receio. Descobriram novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos, e, o que mais é, novo céu e novas estrêlas. E perderam-lhe tanto o medo, que nem a grande quentura da torrada zona, nem o descompassado frio da extrema parte do sul, com que os antigos escritores nos ameaçavam, lhes pôde estorvar que, perdendo a Estrêla do Norte e tornando-a a cobrar, descobrindo e passando o temeroso Cabo da Boa Esperança, o mar da Etiópia, da Arábia e da Pérsia, puderam chegar à Índia. Passaram o rio Ganges, tão nomeado, a grande Trapobana e as ilhas mais orientais. Tiraram-nos muitas ignorâncias e mostraram-nos ser a terra maior do que o mar, e haver antípodas, do que até os santos duvidavam, e que não há região que nem por quente nem por fria se deixe de habitar. E que, em um mesmo clima e a igual distância do Equador há homens brancos e pretos e de mui diferentes qualidades. E fizeram o mar tão chão que não há quem hoje ouse dizer que achasse novamente alguma pequena ilha, alguns baixos ou sequer algum penedo que por nossas navegações não seja já descoberto».

Este hino caloroso à gloria dos portugueses foi ouvido por Camões, que, com o alto pensamento que tais palavras exprimem, compôs a grandiosa epopeia dos feitos da gente lusa na terra e no mar.

Passemos agora a considerar as obras em que Pedro Nunes se ocupou da ciência e arte de navegar.

Para cumprir os deveres do seu cargo, começou o nosso cosmógrafo por publicar, em 1537, um livro precioso com os artigos seguintes: 1.º Tratado da Esfera; 2.° Teoria do movimento do Sol e da Lua; 3.° Tratado de Geografia de Ptolomeu; 4.° Tratado de algumas duvidas da navegação; 5.° Tratado em defensam da carta de marear; livro, que por ser hoje muito raro e procurado, foi incluído por Joaquim Bensaúde na sua colecção de documentos foto-gravados para a história das navegações marítimas.

Os três primeiros tratados são traduções do latim em português de obras de Sacrobosco, Purbachio e Ptolomeu.

Já dissemos que João de Sacrobosco tinha composto em latim no século XIII um tratado De sphera. Este livro ainda muito usado no século XVI em tôda a Europa como texto de iniciação para o estudo da Cosmografia, era uma exposição de doutrinas desta ciência, inspirada principalmente pelos livros de Ptolomeu e de alguns astrónomos árabes, insuficiente sob o ponto de vista matemático, mas muito simples, clara e elementar, sob o ponto de vista descritivo, e por isso muito apropriada aos médicos-astrólogos e aos pilotos. Por ser útil aos astrólogos teve muita aceitação, e, por ser útil aos pilotos as passagens que êstes precisavam conhecer, tinham já sido publicadas em tradução portuguesa nas edições do Regimento do astrolabio anteriormente mencionadas e no livro sôbre náutica de Francisco Faleiro, também já mencionado. Pedro Nunes traduziu-a tôda e enriqueceu-a com Notas que a valorizaram muito.

Pode estranhar-se que o nosso cosmógrafo, na sua tradução deste livro não cite o nome do autor e também que o não tenham citado os cosmógrafos portugueses que dêle tinham extraído resumos. Certamente consideravam a obra do célebre monge como simples modêlo clássico, assás espalhado, por ter sido muito divulgado em numerosas edições, cuja redacção aproveitaram, mas cujo pensamento era de Ptolomeu.

Também pelo mesmo motivo no segundo dos tratados mencionados não citou Purbachio.

Entre as Notas juntas por Nunes ao Tratado da esfera há uma, que foi traduzida em latim por Elia Vineto e junta a algumas edições da obra de Sacrobosco que se publicaram depois, Nota em que o nosso matemático revelou pela primeira vez originalidade de espírito e habilidade no emprego dos métodos sintéticos dos geómetras helénicos, demonstrando e generalizando uma observação de Sacrobosco sôbre climas.

Ptolomeu, no Almagesto (Parte II, Cap. VI) e no Tratado de Geografia (Parte I, Cap. X) tinha dividido a parte da Esfera terrestre compreendida entre o Equador e o Círculo polar ártico em zonas tais que nos paralelos que limitam cada zona a diferença de duração do maior dia do ano é de meia hora para as mais próximas do Polo e de um quarto de hora para as outras (procurando com esta distinção evitar zonas excessivamente largas nas vizinhanças do Equador e outras excessivamente estreitas na vizinhança do Círculo polar) e tinha determinado as latitudes dos paralelos que limitam cada zona. Sacrobosco reduziu a doutrina de Ptolomeu considerando sòmente a parte da Terra que no seu tempo se julgava habitável e nela sete zonas tais que a diferença da duração do dia no maior dia do ano era de meia hora e verificou numèricamente que a altura destas zonas diminui quando se aproximam do Polo. Estas sete zonas são as que na Geografia antiga se chamavam climas e a observação que a respeito da variação da sua largura faz Sacrobosco poderia ter sido sugerida pela divisão que, como dissemos, Ptolomeu faz das suas zonas em grupos correspondentes a meia hora e a um quarto de hora de diferença da duração do maior dia do ano nos paralelos que limitam cada uma.

Ora, Pedro Nunes deu forma matemática geral a esta doutrina e obteve assim o teorema seguinte:

A zona compreendida entre dois paralelos terrestres, situados do mesmo lado do Equador, tais que a diferença das durações de um mesmo dia qualquer nestes paralelos tenha um valor arbitràriamente dado diminui em largura, quando a zona se aproxima do Polo correspondente da Terra.

Na Nota consagrada ao teorema de que acabamos de falar, demonstrou ainda o nosso cosmógrafo uma regra geométrica, uma construção gráfica e um método mecânico para determinar a duração de um qualquer dia do ano em um lugar dado da Terra.

Tudo isto merece ser notado, porque é obtido por considerações planimétricas feitas sôbre uma figura que está situada no plano do meridiano e sôbre outra que está situada no plano de um paralelo e é rebatida sôbre aquele plano, oferecendo assim um exemplo interessante de um método clássico de Geometria descritiva moderna.

Convém, todavia, observar que êste método dos rebatimentos tinha já sido empregado em outras questões por Ptolomeu, nos Analemma, e por alguns Geómetras árabes.

Delambre, referindo-se na sua História da Astronomia à Nota que acabamos de assinalar, diz que a demonstração de Pedro Nunes do teorema mencionado não merece ser conservada e substitui-a por uma prova trigonométrica. Nós pensamos, pelo contrário, que aquela demonstração constitui um exemplo interessante de síntese geométrica, com sabor helénico, e que, sendo traduzida em estilo moderno, não é mais complexa do que a de Delambre.

Passemos a considerar os escritos em que Pedro Nunes se ocupou especialmente da ciência e arte da navegação.

Os títulos dêstes escritos são: 1.° Tratado sobre certas duvidas da navegação, já mencionado; 2.° Tratado em defensam da carta de marear, também já mencionado; 3.° De arte atque ratione navigandi.

Diz o autor dêstes escritos no segundo dêles que nenhuma regra que tenha fundamento na parte especulativa ou técnica pode ser bem praticada e entendida sem notícia daqueles princípios em que se funda, porque de outra sorte os que dela usassem fàcilmente se enganariam.

A exposição dêstes princípios, pelo que respeita a Náutica, é o objecto dos tratados cujos títulos acabamos de mencionar.

O último, isto é, o tratado De arte atque ratione navigandi , é o mais importante dêles e mesmo talvez dos que, antes da morte de Nunes, se escreveram sôbre a ciência e arte da navegação.

Algumas das doutrinas expostas neste tratado são a reprodução das que tinha dado nos outros dois, outras são nêle estudadas pela primeira vez; mas aquelas são apresentadas sob forma mais científica. Nos trabalhos primeiramente escritos vê-se o cosmógrafo a ensinar doutrinas de náutica aos pilotos portugueses, no último vê-se o sábio a divulgar as suas investigações entre os homens cultos de todos os países que se interessavam por aquelas doutrinas. Por isso escreveu os primeiros em português e o último em latim. Nos primeiros tratados revelam-se os primeiros alvores do espírito científico do grande cosmógrafo; no último mostra-se êste espírito em todo o seu brilho a constituir a ciência da navegação do seu tempo e a preparar a do futuro.

Vejamos agora as questões principais estudadas nos três livros.

Na navegação daquele tempo obrigava-se o navio a seguir na superfície do mar uma trajectória tal que o ângulo da direcção do movimento com o meridiano se conservasse constante. A esta curva dava-se então o nome de linha do rumo e dá-se hoje o nome de loxodromia. A direcção do meridiano era dada aproximadamente pela agulha magnética da bússola.

Julgavam os pilotos e estava mesmo escrito na Arte de marear de Faleiro que as linhas de rumo coincidem com círculos máximos da Esfera terrestre.

Ora, Pedro Nunes mostrou que as linhas de rumo são geralmente espirais esféricas que dão um número infinito de voltas à roda dos Polos da Terra e que as únicas linhas de rumo circulares são os meridianos e os paralelos, que correspondem evidentemente aos ângulos de rumo de zero e de noventa graus. E ajuntou ainda, colocando-se no ponto de vista histórico, que a não coincidência em geral das linhas de rumo com círculos da Esfera terrestre tinha já sido notada por Ptolomeu, apoiando-se para isso em duas passagens do Tratado de Geografia do grande astrónomo de Alexandria.

Na primeira destas passagens, o autor delas, para obter a menor distância, isto é, a distância por círculo máximo entre Corura e Palura, na Índia, abate à distância medida, navegando entre as duas cidades, a têrça parte desta distância, para a corrigir dos rodeios do navio, isto é, segundo Pedro Nunes, do excesso do comprimento do arco da linha de rumo sôbre o arco do círculo máximo cujo comprimento se procurava; na segunda passagem, o mesmo astrónomo, querendo obter o comprimento do arco do paralelo compreendido entre Chersoneso e Zabas, terras situadas na mesma latitude, não faz correcção alguma ao resultado da medida, por serem, diz Nunes, todos os paralelos linhas de rumo.

Esta explicação das referidas passagens é interessante e não improvável, mas a primeira passagem é tão vaga, que não podemos ter a certeza de que tal explicação represente o pensamento de Ptolomeu. Mas se o grande astrónomo alexandrino pensou na natureza da curva de rumo, o seu alto espírito geométrico não a confundiu com círculos.

O que podemos dizer com segurança é que Pedro Nunes trouxe a dita curva do campo da náutica empírica, em que era para os pilotos apenas a rota descrita pelo navio dirigido pela bússola, para o campo da Geometria para onde é a curva descrita por um ponto que corta os meridianos da esfera sob um ângulo constante, que mostrou que não é geralmente circular e que abriu a sua teoria.

Os cosmógrafos portugueses que o precederam, conheciam um processo para determinar a diferença das longitudes de dois pontos da curva com uma aproximação tanto maior quanto menor fôsse a sua distância; e, por meio de aplicações dêste processo a arcos parciais em que decompunham um arco dado da curva, obtinham a diferença de longitudes dos pontos que o limitam com aproximação tão grande quanto queriam.

Este processo equivale ao emprêgo da equação da curva. Esta equação, obtida mais tarde por Leibniz, depende de logaritmos, algoritmo desconhecido no tempo de Nunes, e a vantagem que teria o emprêgo desta equação sôbre o método usado nas nossas antigas navegações para resolver o problema considerado, seria o de reduzir o cálculo numérico que exige ao cálculo por logaritmos.

E acrescentemos ainda que os cosmógrafos mencionados conheciam ainda um modo de obter o comprimento dos arcos da linha de rumo com aproximação tão grande quanto se queira.

Para se aplicarem estas doutrinas à navegação, continham os regulamentos mencionados na Primeira Parte dêste livro duas tábuas numéricas que davam, uma a diferença de longitudes de dois lugares da curva percorrida pelo navio correspondentes à diferença de um grau em latitude, a outra o comprimento dêste arco. Ora, Pedro Nunes refez, na segunda das obras mencionadas, estas tábuas, melhorando-as e inventou um instrumento, a que chamou compasso e que adiante descreveremos, para medir a razão do arco do paralelo terrestre correspondente a uma latitude dada para o raio da Terra, razão que é necessário conhecer para se aplicar a primeira tábua.

Esclareceremos numa Nota, no fim dêste volume, o que acabamos de dizer sôbre a linha de rumo, empregando o simbolismo algébrico.

Convém assinalar aqui, ao terminar esta doutrina, o facto que levou Pedro Nunes a considerar a linha de rumo, facto notado por êle próprio no Tratado sobre certas duvidas da navegação.

Martim Afonso de Sousa, fundador das primeiras colónias que Portugal teve no Brasil, querendo, na sua volta da América, vir do Rio da Prata a Lisboa, tomou e conservou o rumo de leste, julgando que assim seguiria o círculo máximo perpendicular ao meridiano do lugar da partida e que iria encontrar o Equador num dos pontos em que aquele círculo o cortava. Notou porém com surprêsa, passados alguns dias, que, em vez de se aproximar do Equador, ia seguindo o paralelo do lugar da partida. O motivo do êrro do navegador está em admitir que as linhas de rumo coincidem com os círculos máximos da esfera terrestre e o motivo de seguir o paralelo do lugar de partida está na coincidência dos paralelos com as linhas de rumo correspondentes ao ângulo de 90.°.

São estas as explicações que Nunes deu do facto narrado.

Voltou Pedro Nunes a ocupar se da linha de rumo no segundo dos livros mencionados a propósito da sua representação nas cartas náuticas, como veremos, mas só no terceiro tratado se deteve a estudá-la, apresentando nêle algumas propriedades expressas por desigualdades, relativas à variação do comprimento dos seus arcos com as longitudes e latitudes das extremidades, e ocupando-se da sua forma, do seu uso na náutica, do modo de as traçar na esfera, etc.

No tratado De arte atque ratione navigandi, apresentou Pedro Nunes um modo de navegar por arcos de círculo, representável matemàticamente, do qual a navegação pela linha de rumo é um caso limite. A-pesar-dêste método não ter interêsse prático, julgamos dever apresentá-lo aqui, por motivos que depois se verão. Um caso particular tinha já sido considerado pelo seu autor no Tratado de certas duvidas na navegação para explicar o modo de navegar por um paralelo da Terra.

Supõe o autor que o navio segue uma linha formada por uma série de arcos de círculos máximos tais que os ângulos que fazem com os meridianos nas primeiras extremidades sejam iguais e tais que sejam também iguais, mas de grandeza diferente da daqueles, os ângulos que fazem os mesmos arcos com os meridianos nas segundas extremidades.

A curva de rumo é o limite para que tende aquela linha, quando a diferença dos ângulos nas duas extremidades tende para zero.

Para se apreciar êste método, diz o autor, convém notar que um navio não segue no mar rigorosamente uma linha de rumo, porque a agulha magnética vai fazendo pequenos desvios sucessivos para um e outro lado, que o marinheiro que maneja o leme, vai corrigindo. Segue uma série de arcos de círculos máximos que formam uma linha quebrada que se aproxima tanto mais da curva do rumo, quanto menores são aqueles desvios. Nunes, para tratar a questão matemàticamente, supõe todos os desvios iguais e no mesmo sentido.

Por cálculos simples, que não exporemos aqui, mas que serão apresentados em Nota no fim dêste livro, mostra-se que, se um navio parte de um lugar com rumo dado e vai seguindo uma série de arcos de círculo nas condições mencionadas, podem determinar-se pela Trigonometria esférica as coordenadas geográficas das posições que vai ocupando e os comprimentos dos arcos percorridos.

O nosso cosmógrafo dá-nos pois assim um novo modo de navegar, bem determinado, em que o nauta segue próximo da linha de rumo, quando a distância percorrida não é grande.

Este método foi considerado como inexacto por Simão Stevin e esta apreciação foi reproduzida por Montucla na sua Histoire des Mathématiques e depois em Portugal por Garção Stockler, no seu Ensaio histórico, e Rodolfo Guimaráes, no artigo que, a respeito de Nunes, publicou nos Anais científicos da Academia Politécnica do Pôrto. Nós pensamos que as censuras do célebre geómetra de Bruges não são aplicáveis à doutrina de Pedro Nunes e que esta doutrina é exacta; o que aquele matemático poderia dizer é que não é prática.

Vejamos o que diz Stevin. Este geómetra aplica a doutrina de Nunes ao cálculo do comprimento do arco de uma linha de rumo que parte do Equador com um ângulo de 45º e que termina cêrca de 10° abaixo do Polo e, comparando o número assim obtido com o que dá outro método, especial para êste caso por êle imaginado, conclui que o número obtido pelo método do matemático português dá o comprimento procurado com aproximação insuficiente. Ora, isto não mostra que a doutrina de Pedro Nunes é falsa, mas sim que não é suficientemente aproximada para arcos tão grandes.

Indo mais longe do que Stevin, Stockler diz que certas equações que Nunes empregou, são incompatíveis com outras tiradas da equação leibniteziana da curva de rumo (ver a Nota no fim do livro). Isto é exacto, mas estas últimas equações e as de Nunes correspondem a questões diversas.

As equações de Nunes correspondem a linhas formadas por séries de arcos de círculo convenientemente escolhidos, de que as linhas de rumo são limites, e as outras correspondem a estas últimas linhas.

Ajuntemos que Stevin propôs, para substituir a doutrina de Nunes, uma outra doutrina que não difere essencialmente da que fôra já empregada no século XV pelos pilotos portugueses e se encontra no Regimento do astrolábio, mencionado na Parte Primeira dêste livro, como se verá nas Notas.

Ajuntemos ainda que esta doutrina é aplicada por Stevin de um modo que não convém. Em quanto que na aplicação dela os nautas portugueses fazem depender o cálculo das longitudes do valor das latitudes, que se obtinham fàcilmente por meio do astrolábio, Stevin, invertendo o problema, faz depender o cálculo das latitudes do valor das longitudes, que, antes da invenção dos cronómetros, não eram fáceis de medir.

Pedro Nunes iludiu-se em quanto ao valor da sua doutrina como meio prático de resolver o problema da navegação pela linha de rumo. Qual foi o motivo desta ilusão? Vamos tentar explicá-lo.

Como dissemos, empregava-se na náutica para resolver êste problema um método que equivale a considerar a curva de rumo como um polígono de lados tão pequenos quanto se queira. Ora, provàvelmente o nosso matemático, notando que às linhas rectas do plano correspondem na esfera círculos máximos, entendeu que, substituindo aquele polígono por uma linha composta de arcos dêstes círculos dispostos do modo que apresentou, se aproximava mais da linha de rumo do que por meio daquele polígono. Mas deu-se o contrário porque enquanto que o polígono tem os seus vértices sôbre a curva, os vértices da linha que substitui a esta curva estão fora dela. Abriu pois apenas uma teoria que não teve seguimento porque a descoberta por Leibniz, por meio da antiga teoria da curva, da sua equação esférica, expressa por logaritmos, tornou a nova doutrina inútil.

Ocupou-se também Pedro Nunes nas obras consagradas à náutica da navegação por círculo máximo, dando a relação que deve ligar a latitude com o rumo em cada ponto dêste círculo e dando uma regra prática para se obter o efeito desejado por meio de observações das latitudes tão freqüentes quanto seja possível. As regras que actualmente se empregam neste problema de navegação, isto é, na ciência da navegação ortodrómica, coincidem com as dadas por Pedro Nunes, mas os livros que se ocupam delas não mencionam o nome de quem primeiro estudou o dito problema(l).


(1) Veja-se no fim dêste volume uma Nota, onde são dadas a relação e a regra mencionadas.

Com a doutrina da linha de rumo está estreitamente ligada a da carta náutica, de que Pedro Nunes se ocupou com muito desenvolvimento, ainda que de um modo não completamente satisfatório no Tratado em defensam da carta de marear e no tratado De arte atque ratione navigandi.

O nosso matemático pôs nestes tratados nitidamente as condições a que estas cartas devem satisfazer, para serem um instrumento matemático aplicável à determinação do rumo a seguir de um lugar a outro. Estas condições são: representar por linhas rectas as linhas de rumo; conservar os ângulos que estas linhas fazem com os meridianos.

Como os meridianos e os paralelos são linhas de rumo, resulta em particular destas condições que aqueles círculos devem ser representados nas cartas por dois sistemas de rectas paralelas, sendo as de um sistema perpendiculares as do outro. Está neste caso a carta chamada quadrada, adoptada nas navegações portuguesas, da qual já falámos na Primeira Parte deste livro.

O nosso matemático, aprovando a escolha ocupou-se largamente dela em um dos escritos mencionados, onde deu conselhos aos pilotos para a usarem bem e a defendeu de censuras que alguns lhe faziam, censuras em que algumas vezes tinham razão, porque a carta lhes não dava tôdas as informações de que careciam para dirigir as naus com segurança, e algumas vezes êle próprio mais a atacou do que defendeu.

Esta carta tinha com efeito dois graves defeitos: 1.° deformava excessivamente a superfície da Terra, fazendo todos os paralelos iguais e, representando-a assim como cilíndrica; 2.° não eram nela representadas por linhas rectas as curvas de rumo, exceptuando os meridianos e os paralelos.

Para remediar estes defeitos, o nosso cosmógrafo, imitando o que tinham feito outrora Marino de Tiro e Ptolomeu para os mapas de regiões terrestres, recomenda que se substitua a carta geral da Terra por uma série de cartas de zonas, tomando em cada zona para base da superfície cilíndrica que a substitui, o paralelo médio da zona e dando à zona uma altura maior ou menor, segundo o grau de aproximação com que se queira representá-la. As linhas de rumo da zona são então substituídas no cilindro por hélices, a que correspondem na carta, que é a planificação do cilindro, linhas rectas. Recomenda depois que se reúnam tôdas estas cartas parciais em um livro.

Mas êste remédio tem ainda um grave inconveniente: não dá as ligações entre os lugares das diversas zonas.

O matemático português parou aqui. Não se lembrou de reünir todas as cartas parciais em uma carta única e dar a tôdas a mesma largura, para o que bastaria empregar no traçado relativo a cada zona uma escala especial convenientemente escolhida. Por não se lembrar disto, deixou ao cartógrafo flamengo Gerardo Mercator a honra da descoberta da carta rectangular reduzida, com que se resolveu definitivamente o problema da carta náutica, descoberta de que Nunes esteve bem perto.

O sistema de cartas planas primitivo era imperfeito, e por isso os pilotos tinham dificuldade em o aplicar, e, ao ler-se a defesa que dêle fêz Pedro Nunes, nota-se a imprecisão que ordinàriamente acompanha a explicação de doutrinas imperfeitas.

A-pesar porém dos seus defeitos a velha carta, com o acrescento da representação dos rumos, referidos a várias origens, prestou grandes serviços nas navegações dos séculos XV e XVI. Com efeito, esta carta satisfaz aproximadamente às condições gerais indicadas por Nunes, quando representa uma zona da Terra de pequena altura, de um lado e do outro do Equador; e, quando se estende fora dos limites em que a aproximação é suficiente, para poder representar o papel de instrumento matemático na determinação a seguir pelo navio de um lugar a outro, continua ainda a servir como registo empírico de rumos e latitudes relativos a lugares pertencentes a caminhos directamente percorridos pelos pilotos.

É justo acrescentar que Nunes pôs nitidamente o problema da carta e que, com as suas considerações sôbre ele, preparou a descoberta de Mercator.

Voltaremos a ocupar-nos da carta náutica em uma Nota no fim dêste livro, onde justificaremos matemàticamente o que acabamos de dizer.

Antes de terminar esta doutrina das cartas náuticas, devo observar que Pedro Nunes foi quem primeiro empregou o sistema de representação planimétrica da superfície da esfera atribuída a Sanson e conhecido pela designação de carta de Flamesteed.

Fizemos notar êste facto no nosso Elogio histórico do nosso geómetra publicado nos Panegíricos e Conferências. Neste sistema de representação da Terra, a cada lugar corresponde no plano um ponto cujas coordenadas são o arco que mede no paralelo do lugar, rectificado, a sua longitude e o arco que mede no meridiano, também rectificado, a sua latitude, referidas a dois eixos rectangulares, que representam o Equador e o Primeiro Meridiano.

Ora, êste modo de representação foi indicado por Nunes no Tratado em defensam da carta de marear, onde mostrou também, indirectamente, que neste sistema os meridianos da Terra são representados por curvas que gozam da propriedade que define as curvas actualmente chamadas linhas dos senos, como se verá em uma das Notas da presente obra. Mais tarde Flamesteed reinventou êste sistema de carta e aplicou-o aos mapas geográficos.

Agora, terminada esta notícia dos trabalhos de Pedro Nunes sôbre as cartas náuticas, seria oportuno falar dos cartógrafos mais notáveis do século XVI; mas dispensa-nos dêste trabalho a publicação recente de um precioso livro de Armando Cortesão, intitulado Cartografia e cartógrafos dos séculos XV e XVI, onde êste assunto é estudado com desenvolvimento e documentação abundante.

Quem conhece a história das navegações dos Lusos supõe que nos arquivos portugueses e estrangeiros devem existir muitas cartas náuticas do século XV. Engana-se; são pouquíssimas as que têm sido assinaladas e muitas delas estão perdidas.

Pelo contrário, são numerosas as cartas que se conhecem do século XVI. O erudito autor do livro mencionado enumera as cartas anteriores ao século XVII, classifica-as, examina as que merecem ser examinadas, compara as que convém que sejam comparadas, dá notícia de algumas perdidas que ficaram registradas na história da náutica, biógrafa os cartógrafos que compuseram as principais (os Reineis, os Homens, Vaz Dourado, etc.) e nota, como resultado dos seus estudos, «que a quási totalidade das cartas daqueles tempos, ou são genuinamente portuguesas, ou feitas sôbre dados portugueses».

E agora, antes de terminar, ajuntaremos, recordando o Visconde de Santarém, que o sr. Cortesão actualiza e ordena as indagações daquele ilustre fundador da história da cartografia portuguesa e avança muito no caminho que êle abriu.

O problema da determinação das latitudes, sendo fundamental na aplicação da Astronomia à Náutica, não podia deixar de chamar a atenção de Pedro Nunes.

Começou por examinar as oito regras dadas no Regimento do astrolábio para se obter por meio da altura da Estrêla polar em oito das suas posições à roda do Polo, a latitude do lugar da observação, regras a que já nos referimos. Os números que figuram nestas regras tinham sido obtidos por observações feitas em Lisboa e os cosmógrafos julgavam que eram aplicáveis a todos os lugares. Ora Nunes mostrou no tratado De arte atque ratione navigandi que, quando a Estrêla polar está fora do meridiano do lugar da observação, aqueles números variam com a latitude dêste lugar, e por isso manda abandonar as regras correspondentes às observações extra-meridianas da referida Estrêla e recorrer sòmente às observações das suas passagens pelo meridiano.

Simplificou as regras dadas no mencionado Regimento para a determinação das latitudes por meio da observação da altura meridiana do Sol, modificando para isso o modo de graduar o limbo do astrolábio. Tomava para origem da graduação o ponto mais alto dêste limbo e punha a nonagésima divisão no seu braço horizontal, medindo assim directamente distâncias zenitais do Sol em vez de alturas, e, fazendo as notificações correspondentes nas regras para das observações deduzir as latitudes, obteve outras de aplicação mais simples do que as que tinham dado José Vizinho e Duarte Pacheco, mas menos simples do que as que dera João de Lisboa. Estas últimas correspondem, como já dissemos, a um modo de graduar o limbo do astrolábio que nunca foi adoptado.

Deu, finalmente, um meio de determinar as latitudes por observações da altura e azímute do Sol em qualquer hora do dia.

Este azímute era obtido por meio de um instrumento de sombra, aperfeiçoamento do que dera Francisco Faleiro, instrumento que se reduzia a um prato horizontal quadrado, no centro do qual estava um estilete vertical, e a uma agulha magnética colocada em uma cavidade do prato, circular e graduada, dividida ao meio pelo diâmetro que passa pela origem da divisão.

Determinava-se por meio dêste instrumento primeiramente o azímute do Sol relativamente ao meridiano magnético, dado pela agulha, e corrigindo-o depois da declinação magnética, que o instrumento também dava, obtinha-se o azímute relativo ao meridiano astronómico.

Para determinar depois a latitude do lugar da observação, não recorre o nosso cosmógrafo a cálculos numéricos. Resolve a questão muito engenhosamente por meio de um traçado gráfico feito sôbre uma esfera, onde estão descritos um círculo máximo, que representa o horizonte, e outro, não graduado, que passa pelo ponto que corresponde ao zénite, traçado que determina os pontos da esfera que correspondem aos Polos da Terra. Basta para isso, ajustar sôbre a esfera um anel graduado que gire à roda dos pontos que representam o zénite e o nadir. Tomando sôbre o círculo que representa o horizonte, a partir do círculo vertical traçado na esfera, um arco igual ao azímute do Sol, levando o anel à extremidade dêste arco e marcando por meio dêle no círculo vertical que passa por êste ponto, um arco igual à altura do Sol, medida pelo astrolábio, obtém-se um ponto cuja distância por círculo máximo aos polos deve ser igual ao complemento da declinação do Sol no dia da observação. Tomando pois um compasso de pontas curvas e traçando com uma abertura igual ao arco da esfera que representa êste complemento da declinação, uma circunferência sôbre a esfera, os dois pontos em que corta o círculo nela traçado que passa pelo zénite, determinam os pontos correspondentes aos Polos da Terra. Os arcos que os unem ao ponto que representa aquele zénite podem ser medidos pelo círculo graduado móvel. Um dêstes arcos representa o complemento da latitude do lugar. Para a escolha em cada caso, dêste arco, deu Nunes um Regimento, em que considera as diversas posições relativas do Sol e do observador.

Deu ainda Pedro Nunes outro método para determinar as latitudes por meio de observações da altura e do azímute, referido ao meridiano magnético, em duas posições do Sol, que dispensa o conhecimento da declinação magnética no lugar da observação e um terceiro método para as determinar por meio de três observações dos mesmos elementos em três posições, que dispensa o conhecimento da declinação magnética e da declinação do Sol no dia das observações.

Os métodos dados por Pedro Nunes para determinar as latitudes por meio das alturas extra-meridianas do Sol, a que acabamos de nos referir, foram publicados no Tratado em defensam da carta de marear e no tratado De arte atque ratione navigandi. São todos teòricamente exactos e muito interessantes, mas infelizmente não dão na prática resultados suficientemente aproximados, por motivo de dificuldades da sua aplicação. A sua insuficiência na prática foi reconhecida por D. João de Castro, que os experimentou nas suas viagens no Mar das Índias e no Mar Vermelho, empregando para isso instrumentos que, ao partir de Lisboa lhe foram oferecidos pelo Infante D. Luiz, filho de D. Manuel, seu condiscípulo nas lições dadas por Pedro Nunes no Paço real.

É estranhável que o nosso cosmógrafo não tenha notado que, para os usos da náutica, só são apropriados os métodos que dão a latitude por meio de uma única observação, ràpidamente feita, evitando-se assim os erros provenientes dos movimentos de oscilação e avanço do navio e de um avanço durante as observações. A esta causa de êrro juntavam-se, na aplicação dos métodos mencionados, os defeitos de construção e de funcionamento do instrumento empregado para passar das observações para o valor das latitudes, erros cuja importância só pode ser conhecida depois das aplicações que D. João de Castro fêz dêle. Os métodos de Nunes caíram diante das observações dêste grande navegador, mas na queda salvou-se o engenho do insigne teórico, que primeiro dotou a Astronomia com um método para determinar as latitudes por observações extra-meridianas do Sol.

Mais tarde, depois da invenção dos cronómetros, puderam empregar-se nesta questão os ângulos horários do Sol que estes instrumentos determinam, em vez dos seus azímutes, e assim subiu se, aproveitando os progressos da Trigonometria esférica, até ao método actualmente usado para determinar as latitudes por meio de observações extra-meridianas do Sol.

D. João de Castro foi o maior dos discípulos de Pedro Nunes e foi, como Duarte Pacheco, um cosmógrafo insigne, um navegador notável e um grande capitão. Camões glorificou-o no seu poema e Jacinto Freire de Andrade descreveu a sua vida em linguagem clássica e estilo conceituoso e brilhante.

Nas suas viagens fez o célebre Vice-Rei da Índia numerosas observações de declinação magnética e ainda de desvios da agulha devidos a curvas locais, por meio do instrumento de sombra de Pedro Nunes, continuando assim as observações da mesma natureza que tinham sido feitas por João de Lisboa, como já dissemos, com um aparelho rudimentar.

As observações de declinação magnética feitas por estes dois navegadores formam a primeira contribuïção notável ao problema da distribuïção geográfica das linhas de igual declinação. Por meio das suas observações mostrou ainda D. João de Castro que a declinação magnética e a longitude dos lugares não estão ligadas pela simples relação de proporcionalidade que admitiam João de Lisboa e Rui Faleiro, irmão de Francisco Faleiro.

Os resultados das suas observações foram apresentadas por êle próprio, em três relatórios publicados pela primeira vez no século XIX, sob os títulos: Roteiro de Lisboa à Índia publicado em 1882; Primeiro Roteiro da Costa da Índia desde Goa a Diu, publicado em 1843; Roteiro de Lisboa até Suez publicado em 1833. São três obras importantes para a história da Geografia.

É interessante o capítulo que no tratado De arte atque ratione navigandi Pedro Nunes consagrou às Tábuas de declinação do Sol.

Vimos anteriormente que estas Tábuas são indispensáveis para o cálculo das latitudes por meio da observação da altura do Sol e dissemos que nas navegações portuguesas se construíam por meio do Almanach de Zacuto. Neste Almanach encontram-se, como já dissemos, Tábuas para determinar as longitudes do Sol para todos os dias do ano 1473 e para os três anos seguintes e regras para destas Tábuas tirar as que convêm a outro ano qualquer, e encontra-se ainda outra Tábua, semelhante a uma das Tábuas afonsinas, que dá o valor das declinações dos astros correspondentes às suas longitudes contadas de grau a grau, supondo a obliqüidade da Eclíptica igual a 23° 33'.

Ora, Pedro Nunes substituíu a Tábua das declinações de Zacuto, por outra correspondente à obliquidade da Eclíptica de 23°30’. No Tratado em defensam da carta de marear, tinha dado as Tábuas de longitudes para os anos de 1537 à 1540.

Convém observar que Ptolomeu, seguindo Eratostenes e Hiparco, adoptara para a obliqüidade da Eclíptica o número 23°51’ e que, mais tarde, nos anos 829 e 830 depois de Cristo, os astrónomos de Bagdad, medindo-a de novo cuidadosamente, obtiveram o número 23° 33', que foi adoptado por Zacuto e pelos cosmógrafos portugueses anteriores a Pedro Nunes. É estranhável que Zacuto não tenha adoptado o número 23°32' 30", empregado nas Tábuas afonsinas, que no seu tempo estava mais próximo do verdadeiro do que o número que preferiu.

No século XVI já estes números não convinham e Pedro Nunes adoptou o número 23° 30' empregado por Regiomontano nas suas Efemérides.

Pelo que respeita à variação da linha dos equinócios, aceitou Pedro Nunes a doutrina dos astrónomos de Toledo, segundo a qual esta linha tem ao mesmo tempo o movimento de precessão de Ptolomeu e o movimento de trepidação de Azarquiel. É muito interessante, sob o ponto de vista histórico-crítico, a análise que o nosso douto matemático faz dos trabalhos relativos a esta questão escritos desde o tempo de Ptolomeu, demorando-se principalmente no comentário dos que se devem aos astrónomos de Afonso X.

É estranhável que nesta matéria se não faça menção do Almanach de Zacuto, que tão útil fôra às navegações portuguesas. Eu penso, com o sr. Joaquim Bensaúde, que talvez Pedro Nunes tenha tido receio de afrontar o fanatismo dos cristãos do seu tempo, mencionando um judeu que fôra recentemente expulso de Portugal como rèprobo do verdadeiro Deus. Talvez se refira ao célebre hebreu proscrito uma passagem da obra a que nos estamos referindo, na qual se fala de um varão deligentíssimo (vir deligentissimus) na correcção dos tempos sem lhe mencionar o nome.

Também infelizmente o nosso matemático não fala nas suas obras dos cosmógrafos portugueses do século XV, a-pesar-de elogiar algumas vezes o que até ao seu tempo se tinha feito em Portugal no que respeita à ciência e arte de navegar, e por isso tem responsabilidade na lenda, que correu durante séculos, da intervenção da ciência germânica na náutica portuguesa.

Percorrendo as obras de Pedro Nunes, vê-se, e muitas vezes, o seu engenho manifestar-se na invenção de instrumentos astronómicos e de métodos gráficos ou mecânicos para a resolução de diversos problemas numéricos. Descreveremos nas Notas juntas a êste livro o seu anel graduado, que goza da propriedade notável de bastar dividir os seu quadrantes em quarenta e cinco partes iguais, em vez de noventa, para obter o valor dos ângulos que determina, expressos em graus, o seu instrumento de sombras para a medida da altura do Sol e o seu compasso, já mencionado, para o cálculo dos senos com aproximação suficiente para os usos da náutica. Aqui vamos sòmente considerar a peça que juntou ao astrolábio náutico com o fim de medir fracções do grau, conhecida entre nós pelo nome de Nónio.

A invenção do Nónio foi sugerida a Pedro Nunes por uma passagem do Almagesto pela qual se vê que os antigos astrónomos, medindo o arco do meridiano compreendido entre os trópicos, acharam que êste arco está para a circunferência como 11 para 83, e portanto que metade daquele arco, isto é, a obliqüidade da Eclíptica, é igual a 23° 51’20’’ (2).


(2) Representando por x a obliqüidade da Eclíptica, temos

Para se explicar como se obteve para valor do ângulo medido a fracção 11/83 da circunferência, admitiu Nunes que no astrolábio empregado estava traçada uma circunferência concêntrica com aquela em que eram medidos os graus, que o seu quadrante estava dividido em 83 partes iguais e que a linha de fé da alidade do instrumento passava pela divisão 44.

Explicada assim a passagem considerada do Almagesto, expôs o nosso geómetra, como conseqüência dela, o seguinte modo de obter o valor dos ângulos por meio do astrolábio.

Tracemos no instrumento 44 circunferências concêntricas com a que mede os graus e dividamos o quadrante de cada uma em, respectivamente, 89, 88, 87, . . . partes iguais, sendo as divisões contadas a partir do raio que passa pela origem da divisão da circunferência que determina os graus. Mede-se depois o ângulo dado pela circunferência que dá o seu valor com maior aproximação.

Pedro Nunes não considera a sua doutrina sôbre a medida dos ângulos como invenção própria, mas como uma reconstituïção do método que julga ter sido empregado por Ptolomeu para aquela medida.

O instrumento de Nunes foi notàvelmente simplificado e tornado prático pelo Padre Cristóvão Clávio, discípulo do matemático português, que no seu Astrolabium livro publicado em 1593, substituíu as 44 circunferências de Nunes por um arco auxiliar de uma única, dividido em 61 partes iguais e abrangendo um arco de 60 graus do limbo do astrolábio(3), e depois por


(3) Pode ver-se a passagem do Astrolabium em que Clávio deu a sua doutrina em um artigo de Breusing, publicado no Jornal de Ciências Matemáticas (Coimbra, 1881, tômo III), e que Rodolfo Guimarães transcreveu no Instituto de Coimbra (tômo XLIX, 1902), fazendo acompanhar a referida passagem da tradução do latim para português.

Vernier, que em um livro publicado em 1631, sob o título de Construction du quadrant noveau (4), determinou o movimento do arco auxiliar, ligando-o à alidade do astrolábio, com a qual se desloca. Destas duas invenções resultou o instrumento actualmente conhecido pelo nome de nónio ou vernier.


(4) Este opúsculo é muito raro. Pode ver-se nos Anais da Academia Politécnica do Pôrto (1916, tômo XI) uma notícia bastante desenvolvida de um exemplar que se encontra na Biblioteca Nacional de Paris.

É instrutiva, a êste respeito, uma Nota do Ensaio histórico de Garção Stockler, na qual êste matemático indica um modo de passar do instrumento de Nunes para o de Clávio e Vernier. Mas esta passagem não se faz com tanta evidência que tire aos aperfeiçoamentos dêstes últimos o seu mérito. Explicar uma invenção feita é muito diferente de inventar. E mesmo não é crível que Clávio e Vernier seguissem caminho tão longo para chegar a uma invenção que se lhes apresentou de uma maneira bem simples.

O que podemos dar como certo é que Pedro Nunes, inspirado por Ptolomeu, pôs o problema da avaliação das fracções do grau nas medições feitas com o astrolábio e deu a primeira solução dêle, e que outra solução, simples e prática, foi depois dada por Clávio e Vernier e que ao primeiro dêstes matemáticos pertence a idea essencial desta solução.

A respeito da passagem do tratado De arte atque ratione navigandi em que Pedro Nunes se referiu à invenção do seu instrumento, faremos aqui algumas observações.

Ptolomeu fala da obliqüidade da Eclíptica no Almagesto (pág. 9 da edição de 1515), mas não diz que foi êle quem encontrou a fracção da circunferência, para valor do arco do meridiano compreendido entre os trópicos. Dá o modo de obter êste ângulo e diz que o seu valor está compreendido entre e do grau, isto é, entre 47°40' e 47°45'. Depois acrescenta que a esta condição satisfaz o valor da circunferência obtida por Eratóstenes (que chama Archusiano) e Híparco (que chama Abrachis). Diz ainda que o limbo do instrumento deve ser dividido em graus e cada grau em partes do grau, sem fixar o número delas. A nos parece-nos que uma hipótese possível para explicar os números obtidos para o valor do arco compreendido entre os trópicos é que cada grau do instrumento estava dividido em doze divisões de 5' cada uma e assim obteria que o valor do ângulo considerado está entre 47° mais oito divisões do grau e 47º mais nove divisões do grau. Poderia também cada grau estar dividido em seis partes de 10º cada uma e calcular as meias divisões por aritmética.

Agora vem outra questão: como encontraram Eratóstenes e Híparco o número ?

Segundo Pedro Nunes, que não cita estes autores e o atribui a Ptolomeu, teria sido obtido, como dissemos, por meio de um círculo cujo quadrante estava dividido em 83 partes iguais.

Delambre, na sua Histoire de l'Astronomie, considera a questão e sem mencionar o nosso matemático, apresenta outra explicação. Diz que por meio do instrumento se achou que o ângulo considerado está compreendido entre e do grau, e portanto entre os números

que são aproximadamente iguais a .

Nós, atendendo ao facto de Ptolomeu falar da divisão do limbo do astrolábio em partes de grau, aceitamos a opinião de Delambre, modificando-a de modo a harmonizá-la com os números dados por Ptolomeu para limites entre os quais está o valor do arco de círculo máximo compreendido entre os trópicos. Com efeito, em vez de dizer, com Delambre, que êste valor está compreendido entre e da circunferência, diremos que está compreendido entre e da circunferência e que se pode considerar como igual a com um êrro inferior a

Não sabemos se Pedro Nunes fêz construir o seu instrumento. Segundo uma tradição colhida por Stockler, os instrumentos astronómicos que existiam na Universidade de Coimbra foram fundidos no período de decadência científica que se seguiu à morte de Nunes para se aplicar o seu metal na construção de uma grade. O único exemplar dêste instrumento de que há notícia foi mandado construir por Tycho-Brahe, mas êste astrónomo renunciou em breve ao seu emprêgo por não lhe reconhecer utilidade prática. Mais tarde, Delambre notou na Histoire de l'Astronomie, com o exame de uma série de casos, a dificuldade na escolha do círculo que se deve empregar para medir cada ângulo. Felizmente a invenção do matemático português levou à de Clávio e depois ao precioso instrumento de Vernier.

Tem-se discutido muito se ao instrumento actualmente empregado para medir as sub-divisões do grau se deve dar o nome de nónio ou o de vernier.

A mim não me agrada nem a primeira nem a segunda designação. Quem lhe chama nónio não diz a verdade; quem lhe chama vernier não é justo. Além disso, considero o uso de designar nas ciências um objecto com o nome de um homem como inconveniente para a sua história, por levar muitas vezes a ideas falsas a respeito das invenções. O caso actual é um dêles. Nem é històricamente justa a designação de nónio, nem a de vernier. Eu preferiria chamar aos instrumentos considerados sub-divisores dos ângulos, e então figurariam na história o do nosso matemático com o nome de sub-divisor de Nunes e o actual com o nome de sub-divisor de Clávio e Vernier, porque estes nomes não podem separar-se na invenção dêste sub-divisor.


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PARTE SEGUNDA (II)
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