(1) Panegíricos e Conferências, pág. 40. |
Orôncio Fineo, professor no Colégio de França, foi um dos aspirantes à glória de resolver, por meio da régua e do compasso, os três famosos problemas da Geometria elementar: trissecção do ângulo, duplicação do cubo e quadratura do círculo.
Notemos a este respeito que os maiores geómetras da antiga Grécia se ocuparam dêstes problemas e deram dêles soluções muito sábias mas que, não podendo resolvê-los por meio da Geometria elementar, isto é, por meio sòmente do traçado de rectas e círculos, consideraram como muito provável a impossibilidade de uma solução desta natureza.
Ora, os métodos de Geometria pura eram impotentes para demonstrar esta impossibilidade. Com efeito, era necessário para isso mostrar que não pode haver combinação de rectas e círculos em número qualquer que dê por determinações sucessivas de pontos de intersecção, um ponto final que divida em três partes iguais o arco da circunferência que mede um ângulo dado, nem um segmento de recta que seja lado de um cubo de volume duplo de outro cubo dado, nem lado de quadrado cuja área seja igual à de um círculo de raio dado. Os métodos de Geometria pura são muito particulares para se resolverem por êles questões tão complexas. Mas, com a fundação da Geometria analítica, transformaram-se os problemas mencionados noutros de Análise matemática, reduzindo-os à resolução de equações do terceiro grau, no caso dos dois primeiros, e a uma equação transcendente, no caso do último, e assim a demonstração da impossibilidade da sua solução por meios elementares reduziu-se à demonstração da impossibilidade de resolver tais equações por meio de raízes quadradas de expressões do segundo grau.
Ora, os progressos feitos pela Álgebra depois dos trabalhos de Abel e Galois permitiram resolver esta questão no caso dos dois primeiros problema e levaram assim Wantzel a demonstrar a impossibilidade de os resolver por meio da régua e do compasso.
Para o problema da quadratura do círculo, a questão era mais difícil. Era ainda necessário mostrar que o número que exprime a razão da circunferência para o diâmetro não pode ser raiz de equação algébrica. Este passo difícil deu-o o grande matemático alemão Lindmann, inspirando-se em uma invenção, verdadeiro milagre de génio, do grande matemático francês Hermite.
Assim, por uma antítese surpreendente, foi necessário subir ao cume de uma montanha escarpada do mundo dos números para se poder resolver uma questão que humildemente aparecera no seu sopé mais de dois mil anos antes.
No tempo em que viveu Orôncio Fineo, não estava ainda demonstrada a impossibilidade de resolver os problemas mencionados pelos métodos da Geometria elementar, mas nenhum matemático experimentado procurava já fazê-lo.
Pedro Nunes no seu escrito põe em evidência os erros em que caíu o professor parisiense, aniquilando-lhe o trabalho. Todavia êste professor publicou depois nova edição da sua obra com outras soluções dos mesmos problemas, cujos erros foram assinalados por um seu compatriota. Morreu quando terminou esta publicação e por isso não continuou a apresentar novas exposições das suas quimeras.
Pode-se estranhar que em uma alta Escola de Paris ensinasse um professor de tão pouco mérito. E que, naquele tempo, o ensino das Matemáticas naquela cidade não estava mais levantado do que na Península Ibérica.
A-pesar-do que acabamos de dizer, há hoje ainda quem procure a imortalidade pretendendo resolver alguns dos problemas mencionados e se queixe da humanidade por não os atender e não lhes dar a glória a que julgam ter direito(2).
(2) Para um estudo desenvolvido da história dos três problemas mencionados, veja-se uma memória extensa que publicámos a êste respeito no volume VII das nossas Obras sôbre Matemática. |
Pretendeu ainda Orôncio Fineo na sua obra resolver algumas questões importantes de Astronomia, mas Pedro Nunes mostrou-lhe que foi na resolução delas tão infeliz como fôra nas de Geometria.
O livro de Pedro Nunes de que acabamos de falar ràpidamente, é de simples crítica, sem resultados originais, mas a sua leitura é instrutiva e atesta mais uma vez a grande erudição do autor nos assuntos de Geometria pura dos Helenos e a habilidade com que os manejava.
Ocupemo-nos agora do Libro de Algebra en Arithmetica y Geometria, de Pedro Nunes, a última obra que publicou.
Dissemos na Introdução, que os Árabes associaram a Álgebra dos Helenos à Álgebra dos Índios e formaram assim uma Álgebra numérica na forma, Geométrica nos fundamentos, que foi introduzida por êles na Espanha e foi ali aplicada à resolução de questões pertencentes ao domínio da Geometria.
Esta união das duas ciências foi notada nos Libros del saber de Afonso X, onde se lê uma passagem escrita em língua castelhana primitiva, que se pode traduzir livremente nos termos seguintes:
«É nobreza da Geometria servir a provar as contas da Aritmética, empregando para isso linhas; mas a Aritmética ajuda em compensação a Geometria, levando o geómetra a propriedades das figuras. Assim os dois saberes, a Aritmética e a Geometria, ajudam-se reciprocamente».
Entretanto, como dissemos também na Introdução, a Álgebra dos Árabes entrou na Itália por meio de Leonardo de Pisa, tomou ali uma forma regular e ali subiu até à resolução geral das equações gerais do terceiro e do quarto grau.
Pedro Nunes recebeu os seus conhecimentos desta ciência pela via heleno-árabe directa e por via de Itália, inspirando-se, para compor o seu livro, nas obras mais importantes dos algebristas anteriores ao seu tempo, especialmente na Summa de Arithmetica de Frei Lucas de Burgo, na Practica Arithmeticae de Cardan e na Algebra de Tartaglia, obras que analisou muito judiciosamente e às quais fêz algumas vezes justas censuras e outras vezes louvores e interessantes comentários.
O livro de Nunes foi publicado em língua castelhana em 1567, mas tinha sido composta em português trinta anos antes como o autor diz no prefacio.
Que motivo levaria o nosso matemático a oferecer esta jóia científica à Espanha, publicando-a em língua castelhana ?
Não se sabe e não vale a pena apresentar hipóteses. Notemos apenas a êste respeito que o livro foi publicado na Flandres que naqueles tempos estava em poder dos castelhanos, e que o editor poderia ter imposto a condição de ser impresso em língua espanhola, para ser ali mais fàcilmente acolhido.
A memória de Nunes ganhou com esta tradução, porque assim o livro ficou a figurar simultaneamente na história da Matemática portuguesa e na da Matemática espanhola.
Convém recordar aqui, a respeito do Estado da Aritmética e da Álgebra na Península Ibérica, quando Nunes escreveu o seu livro, que em Portugal tinham sido publicados os tratados, já considerados nesta obra, de Gaspar Nícolas e Bento Fernandes, e na Espanha (segundo a Historia de los Matematicos españoles del seculo XVI de Rey Pastor) os tratados de Ciruelo, Siliceo, Frei João de Ortega, Aurel e Antich Rocha. Três dêstes autores, Nicolas, Bento Fernandes e Aurel, conheciam e mencionaram nos seus livros a obra de Frei Lucas.
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As obras de Frei Lucas, Cardan e Tartaglia que mencionamos, foram inspiradas pela ciência dos Gregos, dos Índios e dos Árabes, e são uma mistura de leis do cálculo e de factos aritméticos, postos em linguagem ordinária ou técnica, com regras, em vez de fórmulas, demonstradas por meio da Geometria elementar, mas com certas anotações que abreviam a exposição das doutrinas. Assim, para designar nas equações a incógnita, empregavam aqueles autores a notação co (coisa), para designar a sua segunda potência, a notação ce (censo), para designar a terceira, a notação cu (cubo), para designar o têrmo independente da incógnita, a notação nu (número), etc.
Mas as notações dos matemáticos italianos têm o inconveniente de dar relações extensas e não expressivas à simples vista. Por isso mais tarde Viète, seguindo na via aberta por Jordano Nemorario e Rudolff, empregou, como aquele, letras do alfabeto para designar os números, e como êste, os sinais hoje usados para representar as operações de adição e subtracção, e pôde, com estas simplificações, criar no seu Isagoge, o cálculo literal moderno, que permite substituir longas regras e demonstrações por fórmulas curtas sucessivas, em que se vêem claramente as relações que ligam as incógnitas aos dados da questão em todo o andamento do cálculo.
A doutrina de Frei Lucas é virtualmente um cálculo algébrico rudimentar que tem o inconveniente de dar expressões longas; a doutrina de Viète é o cálculo algébrico sob forma literal e simbólica com fórmulas curtas e por isso prática.
A Álgebra passou assim por três fases: a fase geométrica, a fase numérica e a fase literal. Na primeira fase, a sua língua foi a da Geometria. A segunda fase durou séculos e a sua língua foi como vagido de criança. No século XVI começou a falar uma língua rudimentar, a língua hoje chamada sincopada, e no século seguinte, tomando a forma literal, começou a falar a sua língua actual.
Antes de Frei Lucas escrever a sua Summa já tinha sido publicada no século XIII a obra De numeris datis, em que Jordano Nemorario representava, como dissemos, os números arbitrários por letras, mas êste célebre matemático, preso à Álgebra heleno-árabe, limitou-se a empregá-las como meio de abreviar a linguagem e não pôde por isso abrir a Álgebra moderna.
Frei Lucas ou não conheceu ou não notou o meio precioso empregado por Jordano para abreviar a exposição das doutrinas. Aproveitou-o Viète e deu assim à Álgebra a sua forma técnica actual, como arte de transformação de operações definidas por combinações de letras, que representam números dados ou procurados, sujeitos a leis que as caracterizam. As equações que ligam os números dados e os desconhecidos, correspondentes a um mesmo problema, podem ser reduzidas por meio destas leis a outras, em cada uma das quais figuram as letras que representam as quantidades dadas e uma só das letras que representam as quantidades procuradas, que elas determinam.
Pedro Nunes empregou as notações de Frei Lucas e, além disso, empregou letras para representar as operações soma, subtracção e extracção da raiz. Assim designou a soma pela letra p abreviação de plus (mais), a subtracção pela letra m (abreviação de minus menor) e, para designar as raízes, empregou a letra R. Para designar igualdades não empregou sinal algum.
Empregou também letras para designar números arbitrários, mas sòmente em questões em que a Álgebra é simples generalização da Aritmética, como são as que se referem a radicais, proporções, etc. Mas, no que respeita à doutrina das equações, que para êle é a essência da Álgebra, colocou-se no ponto de vista aritmético, considerando, como os algebristas italianos, sòmente equações com coeficientes da incógnita numérica, em vez de considerar equações com coeficientes literais. Para representar a incógnita de uma equação e as suas potências empregou as notações, já mencionadas, de Frei Lucas.
As Matemáticas começaram, como é natural, pelo estudo de questões particulares e foram-se depois desenvolvendo lentamente, mais e mais, sem alteração desta índole, entre os Gregos, na Antiguidade, depois entre os Árabes e os Índios na Idade Média e por fim entre os Latinos na Idade Média e na Renascença, até que, no século XVII, subiram com Viète, Descartes, Newton, etc., a métodos gerais fecundos, a doutrinas extensas e a hipóteses largas, que deslumbram quem as estuda.
Ora, Pedro Nunes estava preso pela tradição, como todos os matemáticos quinhentistas, aos métodos primitivos e a doutrinas particulares e deixou na Álgebra aos matemáticos do século seguinte generalizações de que esteve bem perto. Podemos, porém, acrescentar que nenhum matemático quinhentista se aproximou tanto como Pedro Nunes da Álgebra moderna. Esteve tão perto desta Álgebra que basta substituir no seu livro, segundo regras fixas, as notações usadas pelas notações actuais, conservando as palavras, para se obter uma Álgebra moderna, no que respeita ao cálculo, e só presa à Geometria no que respeita às demonstrações. Da tutela da ciência da extensão só a ciência pura dos números se libertou mais tarde, depois de Descartes fixar a correspondência entre as operações numéricas e geométricas e de se dar no século XIX uma noção aritmética clara de número irracional e uma teoria puramente aritmética dêstes números.
Pedro Nunes recorre à Geometria, como os matemáticos helenos, para demonstrar as suas proposições e o rigor das suas demonstrações faz ver a influência exercida no seu espírito pela leitura dos clássicos da antiga Grécia. Este cuidado com o rigor levou-o a não admitir as quantidades negativas como soluções dos problemas, ficando muito atrás dos Índios, que, como dissemos na Introdução, as aceitaram e interpretaram. Deve todavia notar-se que admitiu no seu livro, como facto inegável, mas inexplicável, que a raiz quadrada de uma expressão algébrica tem em Álgebra dois valores com sinais contrários, mas acrescentou que não sabia explicar o motivo disto. O nosso matemático sentia que havia alguma coisa na Álgebra que não tinha correspondente nem na Aritmética nem na Geometria, mas não a sabia explicar. Esta coisa era a noção de número negativo, por êle repelida, que se apresentava na ciência daqueles tempos de um modo muito obscuro, que só começou a esclarecer-se mais tarde, no século XVII, quando se encontrou, para tal número, uma correspondência em Geometria, e só se esclareceu completamente no século XIX.
O nosso matemático ficou preso às demonstrações geométricas e à linguagem sincopada, mas na sua obra atingiu esta linguagem a sua máxima perfeição.
Assim abre o seu livro com as regras para a resolução das equações do segundo grau, expressas nesta linguagem e demonstradas geomètricamente. Para esta demonstração recorre não só às construções dadas por Euclides, mas ainda a outras novas, inventadas por êle próprio. Em uma Nota, no fim dêste volume, faremos a comparação destas construções.
As doutrinas de Nunes sôbre a resolução das equações do primeiro e do segundo grau, sôbre as operações relativas a monómios, sôbre as transformações das equações com denominadores ou radicais, para as reduzir à forma inteira, e sôbre a redução ao segundo grau de algumas equações de grau superior, sendo modificadas no sentido há pouco indicado, dão um tratado de Álgebra elementar com a forma actual.
Não se encontram na Álgebra do nosso matemático invenções fundamentais, mas é perfeita na forma, clara e metódica na exposição, rigorosa nos raciocínios, original em algumas demonstrações e nos métodos empregados para a resolução de numerosos problemas que encerra. Estes problemas não se referem a questões concretas de prática ordinária, mas sim a questões puramente numéricas ou geométricas.
Entre os problemas de que se ocupa, há alguns que conduzem a equações do primeiro grau a duas ou três incógnitas, que resolve muito hàbilmente, sem a introdução de notações especiais para cada incógnita, por meio de artifícios em que revela grande habilidade. É bem sabido que a eliminação de que depende a solução dêstes problemas, não tomou forma técnica regular antes dos trabalhos de Viète.
Muitos dêstes problemas tinham já sido considerados por Regiomontano, Frei Lucas e Cardan; mas Pedro Nunes dá soluções novas, mais simples ou mais rigorosas do que as dos autores mencionados. Pode-se dizer que na simplicidade e rigor da exposição das doutrinas da Álgebra não foi igualado por geómetra algum do século XVI. E, procurando a simplicidade nunca lhe sacrificou o rigor. «Sem fundamento, diz êle, mal se pode edificar ciência nos discípulos».
Muitos dos problemas que considerou referem-se à Geometria dos triângulos e quadriláteros. A propósito dêstes problemas, é notável o modo como assinala o papel da Álgebra na solução de questões geométricas. Diz êle:
«Quem opera por Álgebra vai fazendo discursos demonstrativos. Porém, o que opera por outras regras não entende logo a razão da obra que vai construindo. Encobrindo o artifício não se produz ciência e por êste motivo convém mais esta arte da Álgebra, a qual, pôsto que seja prática, vêm porém nela as operações seguindo as demonstrações. De maneira que quem sabe por Álgebra sabe cientificamente. Vemos algumas vezes não poder um grande matemático resolver uma questão por meios geométricos e resolvê-la por Álgebra, sendo a mesma Álgebra tirada da Geometria, o que é coisa de admiração» .
A última parte desta passagem precisa de ser explicada. O autor a quem Pedro Nunes se refere é Regiomontano, que, no tratado De triangulis (liv. II, prop. 12), pretendendo resolver o problema em que, dadas a base e a altura de um triângulo e a razão dos outros lados, se procuram os valores dêstes lados, recorre à Álgebra, dizendo que não o pôde resolver por meios puramente geométricos.
Ora, convém aqui observar, a êste respeito, que o problema depende de uma equação do segundo grau que se pode obter e resolver por meio da Álgebra Geométrica euclideana, mas que nem Regiomontano nem Pedro Nunes o souberam estudar por êste meio. Por isso, para o resolver, recorreram à Álgebra numérica de Frei Lucas, representando para isso os dados da questão por números.
Em uma Nota, no fim dêste volume, faremos a comparação, ainda até hoje não feita, das soluções dadas por Regiomontano e Pedro Nunes dos problemas de que ambos se ocuparam. O Padre Bosmans, matemático belga, lastima em um artigo publicado nos Anais da Academia Politécnica do Porto (vol. III 1908), não ter podido fazê-la.
Entre as aplicações da Álgebra à Trigonometria dadas por Pedro Nunes no seu livro encontra-se uma demonstração do teorema clássico, devido a Herão de Alexandria, que determina a área do triângulo em função dos seus lados, que foi sàbiamente analisada por Bosmans no artigo mencionado. Lucas de Burgo tinha dado, na sua Summa de Geometria, uma prova dêste teorema, que Nunes censura, por ser muito obscura, algumas vezes mesmo ininteligível, e substitui-a por outra puramente geométrica, demasiadamente longa, mas irrepreensível sob o ponto de vista lógico. Concorre muito para a grande extensão desta última demonstração a abundância de pormenores dispensáveis a quem esta familiarizado com a geometria helénica.
A demonstração primitiva de Herão(3) é muito mais simples do que a que de Pedro Nunes e a dêste é fundada, como a do célebre geómetra grego, em outra proposição segundo a qual a área do triângulo é igual a metade do produto do perímetro pelo raio do círculo inscrito.
(3) Pode ver-se esta demonstração na História das Matemáticas na Antiguidade, de Fernando de Vasconcelos p. 437. |
Devemos acrescentar que dos problemas 34 e 53 da obra de Nunes resulta outra demonstração simples da referida fórmula de Herão. Estranha-se a longa e complexa demonstração geométrica do teorema de Herão depois de Nunes conhecer uma demonstração simples, mas certamente o nosso matemático só teve em vista mostrar como se pode dar clareza e rigor à demonstração geométrica de Frei Lucas.
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A teoria da proporcionalidade liga a Aritmética e a Geometria e por isso Pedro Nunes lhe deu largo espaço no seu livro.
Esta teoria foi sistematicamente exposta por Euclides nos livros V e VII dos Elementos, considerando naquele a doutrina da proporcionalidade geral das grandezas inventadas por Eudoxo de Cnido, que abrange a doutrina da proporcionalidade das grandezas comensuráveis e das grandezas incomensuráveis, e neste a doutrina da proporcionalidade das grandezas expressas por números racionais.
Pedro Nunes, na obra considerada, estuda profundamente a doutrina de Euclides, esclarece-a em muitos pontos e acompanha-a de observações históricas e críticas de muito interêsse.
Tem-se estranhado que Euclides separe completamente a doutrina da proporcionalidade geométrica da doutrina da proporcionalidade numérica, sem as ligar na exposição, o que dá origem a repetições desnecessárias. Explica-se êste facto pela sua intenção de conservar na exposição das referidas doutrinas, inventadas em épocas diferentes, a feição que a tradição lhes impunha.
Pedro Nunes não faz esta separação, com proveito de economia de pensamento e de clareza para quem as estuda.
O ponto fundamental mais delicado da doutrina geral está nas definições de razão e proporcionalidade de grandezas. A êste respeito, é interessante comparar as definições de razão de duas grandezas adoptadas por Euclides e Nunes.
Euclides dá as definições seguintes, cuja segunda explica e completa a primeira(4):
(4) Elementos de Euclides, Coimbra, 1862. |
Notaremos de passagem que esta segunda definição coincide com a proposição que actualmente se chama postulado de Arquimedes. Analisando estas definições, diz o matemático inglês Morgan, que comentou com profundeza a obra de Euclides(5), que a primeira definição exprime que as grandezas comparadas são de natureza tal que uma pode ser múltipla da outra, e que a segunda tem em vista separar da doutrina da proporcionalidade as grandezas infinitas e infinitamente pequenas, sem excluir as grandezas incomensuráveis.
(5) Ver: T. L. Heath, The thirteen Books of Euclid's Elements, t. II, pág. 116. |
Ora, êste modo de ver a doutrina tinha sido adoptado por Pedro Nunes, que, chamando proporção, o que na tradução portuguesa dos Elementos se chama razão, diz:
Depois acrescenta: «Linhas infinitas não tem proporção com linhas finitas».
Está ligada a estas definições e é exposta de um modo muito interessante por Pedro Nunes a questão seguinte:
O estudo da proposição 16.ª do livro III dos Elementos, onde Euclides se ocupa da tangente à circunferência, levou a considerar-se como possível ser o ângulo desta recta com a circunferência diferente de zero. Ora, Pedro Nunes, fundando-se na segunda definição de razão dada por Euclides, mostra que aquele ângulo não pode formar razão com um ângulo finito e por isso não lhe é aplicável a doutrina de proporcionalidade. Depois faz uma exposição histórico-crítica, muito interessante, do que a êste respeito se tinha escrito antes do seu tempo, discutindo as ideas sôbre tal assunto de Campano, Peletier, Cardan e Jordano Nemorario, que faz intervir o ângulo mencionado na sua teoria da balança. Acrescentemos que o debate sôbre a natureza deste ângulo só terminou quando se teve a noção clara de infinitamente pequeno como limite de uma quantidade essencialmente variável. E acrescentemos ainda que ao ler a interessante notícia que sôbre êle deu Cantor no seu Geschichte der Mathematik se sente pesar por não ter tido o grande historiador das Matemáticas conhecimento da referida passagem da Álgebra do matemático português, passagem que certamente teria citado e aproveitado, se a conhecesse.
Outra definição fundamental na doutrina que estamos considerando, é a de proporcionalidade de quatro grandezas ou igualdade de duas razões. Pedro Nunes adopta a definição de Euclides. Convém notar que a esta definição corresponde em Aritmética a noção de igualdade na teoria dos números irracionais de Dedekind.
Depois destas definições, vem na Álgebra do nosso matemático uma série de teoremas de Euclides, com demonstrações novas, mais simples do que as do grande matemático grego.
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Depois de Pedro Nunes compor a sua obra e antes de a publicar, fêz-se na Itália a descoberta da resolução da equação geral do terceiro grau. O nosso matemático, pretendendo divulgar esta notável descoberta na Península Ibérica, indicou-a no último capítulo da sua Álgebra e comentou-a com profundeza.
Neste capítulo analisa a regra dada por Tartáglia (chamada ordinàriamente regra de Cardan) para a resolução daquela equação e dá exemplos em que por meio desta regra se chega a soluções racionais. Tartáglia não tinha conseguido encontrar exemplo algum nestas condições. Apresenta também no mesmo capítulo algumas equações com raiz racional que não se pode obter directamente pela regra mencionada.
O livro excelente que acabamos de considerar foi de pouco proveito para a ciência portuguesa. Quando apareceu já começava o período de decadência da cultura das Matemáticas cm Portugal, e, quando êste período terminou, já dominava a Álgebra de Viète e a de Frei Lucas passara ao Panteão da história.
O tratado de Álgebra que acabamos de analisar tem sido objecto de muitas menções, e notícias rápidas e de duas apreciações desenvolvidas e profundas do Padre Bosmans, já aqui citado, publicadas, uma na Biblioteca Matemática (Leipzig, 1907-1908) e a outra nos Anais da Academia Politécnica do Porto.
O ilustre autor dêstes artigos analisou cuidadosamente aquele tratado, elogiou-o calorosamente e comparou-o com outros tratados notáveis da mesma ciência publicados no século XVI, que anteriormente tinha estudado. São notáveis as palavras com que fechou o segundo artigo:
«Viète teve precursores; Nunes foi um dêles. Nenhum contemporâneo o excedeu em rigor. Só Maurolico o igualou na abstracção e generalidade do raciocínio, na elegância e feliz escolha do algoritmo.
«Nunes foi um dos algebristas eminentes do século XVI. Entre os grandes matemáticos que separam Stifel e Cardan de Viète brilha no primeiro lugar. É uma glória de Portugal».
Considerações gerais sôbre os trabalhos de Pedro Nunes
Temos terminado a nossa análise das obras de Pedro Nunes. Vamos agora resumir, como conclusão do que expusemos, a nossa opinião a respeito do valor do célebre matemático, reproduzindo o que dissemos dêle no Elogio Histórico publicado nos nossos Panegíricos e Conferências. Nada modificaremos, porque o novo estudo que fizemos das suas obras, para preparar o presente livro, não nos levou a alterar as conclusões a que nos tinha levado o primeiro.
«Percorrendo aquelas obras, nota-se em freqüentes passagens o seu extenso e profundo conhecimento dos trabalhos matemáticos e astronómicos dos Gregos, Judeus e Árabes, principalmente de Ptolomeu, de cujas obras foi um dos grandes comentadores. Admira-se noutras o seu engenho e habilidade como matemático e a sua sagacidade como crítico. Vê-se em muitas o lógico consumado, em outras o pedagogo experimentado. Agora admiramos o aritmético, logo o geómetra, depois o astrónomo e o cosmógrafo. Na apresentação das doutrinas é em geral claro, algumas vezes difuso, a-fim-de ser entendida uma dificuldade pelos leitores pouco preparados, e sempre interessante; no enunciado das regras é preciso. Ao contrário dos geómetras gregos, que, na exposição dos assuntos, procuravam sòmente demonstrar as regras e teoremas, sem fazer conhecer os modos como as tinham obtido, Pedro Nunes, ao mesmo tempo que demonstra, ensina a investigar.
«Nas doutrinas relativas à Náutica não foi um prático, como o foram Duarte Pacheco e D. João de Castro, mas foi uma luz que iluminou os práticos. Contentou-se geralmente com soluções puramente teóricas em problemas técnicos e a ideia inicial das suas invenções nasceu mais vezes da leitura de obras clássicas do que da observação de factos exteriores. Assim as invenções da linha do rumo e do nónio tiveram origem, como vimos, no seu estudo das obras de Ptolomeu.
«Nos livros que consagrou a assuntos náuticos encontram-se obscuridades e faltas de precisão que os prejudicam, pormenores excessivos que os desfeiam, doutrinas para fins de prática da navegação que os não realizam de um modo satisfatório, etc. Mas estas imperfeições não abalam essencialmente o mérito científico dêstes livros, que são jóias preciosas com defeitos de lapidagem, a atestar o génio de quem as imaginou. As obras consagradas à Álgebra, à Geometria e à Cosmologia são mais perfeitas do que aquelas. O seu espírito de teórico eminente voava mais à vontade nas doutrinas de ciência pura do que nos assuntos em que a prática representa um papel essencial.
«Como matemático teórico, não subiu até à criação de métodos gerais de investigação, mas comentou com profundeza teorias clássicas no seu tempo e aplicou com sagacidade e engenho métodos conhecidos à resolução de questões postas por êle próprio ou por sábios que o precederam, algumas de muita dificuldade.
«A sua principal fôrça nas doutrinas de Astronomia pura e a sua aplicação à Náutica estava em parte na facilidade com que manejava a Trigonometria esférica, tanto pelo método directo como pelo método dos rebatimentos de Ptolomeu. Na exposição destas doutrinas era algumas vezes prolixo e confuso. Não devemos censurá-lo por isso. Para o avaliar temos de ler a sua obra com olhos de matemáticos do seu tempo, temos de atender a que a Trigonometria não dispunha ainda do formalismo algébrico, que tanta economia e precisão dá à linguagem, tanto auxílio dá à inteligência e tanta luz dá aos raciocínios.
«Não possuía ainda aquela ciência, pelo menos, regras correspondentes à maior parte das formulas que hoje a enriquecem e não estava ainda vulgarizado o uso das tangentes trigonométricas.
«Nas questões que tinham sido estudadas antes de êle as considerar, prendeu-se com demasiado respeito, próprio dos tempos em que viveu, à autoridade dos mestres, procurando mais explicar as suas doutrinas do que continuá-las, parando onde pararam e deixando a sábios que vieram depois a honra de descobertas de que esteve próximo e que talvez teria feito, se continuasse a pensar nos assuntos a que estas descobertas se referem.
«O século XVI pode ser chamado na história da Matemática ibérica o século de Pedro Nunes. Portugal teve neste século a hegemonia das Matemáticas na nossa Península, não porque tivesse muitos cultores destas ciências, mas porque Pedro Nunes por si só vale por muitos. Nos variados ramos da referida ciência de que tratou, nenhum outro matemático português ou espanhol o igualou».
O Ensaio histórico de Garção Stockler, o Elogio histórico publicado por António Ribeiro dos Santos nas Memórias de Literatura da Academia das Ciências de Lisboa (t. VII, 1806) e a Notícia sôbre Pedro Nunes de Rodolfo Guimarãáis, publicada nos Anais da Academia Politécnica do Porto (t. X, 1915), são, entre os escritos até agora consagrados ao nosso matemático, os mais abundantes em informações sôbre a sua vida. O último é, a êste respeito, o mais rico e também o é em informações bibliográficas preciosas. Mas, pelo que respeita a apreciações dos seus trabalhos, são todos insuficientes.
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O nosso biografado pertencia à raça judaica e era natural de Alcácer-do-Sal. Já dissemos que nasceu em 1502 e que em 1529 foi nomeado cosmógrafo do Reino, depois de ter ido visitar em romaria de estudo a então muito célebre Universidade de Salamanca. Não sabemos quais foram os mestres que nesta cidade ouvira. É provável que tenha ouvido Sancho de Salaya, que era então Lente de Astronomia, e alguns dos lentes muis insignes em Medicina e Filosofia, para se aperfeiçoar nas doutrinas que aprendeu na Universidade de Lisboa. E; talvez tenha ouvido também as lições do Padre João Silíceo, que naquele tempo era também ali mestre de Ciências naturais, o qual estudara as Matemáticas em Paris, e nesta cidade fôra depois professor destas ciências e publicara, em 1514, um tratado de Aritmética.
No mesmo ano em que foi nomeado cosmógrafo, fêz exame de Licenciatura em Medicina na Universidade de Lisboa e nos anos seguintes ensinou nesta Universidade Filosofia, Moral, Lógica e Estatística.
Mais tarde, em 1544, depois de D. João III ter transferido a Universidade para Coimbra e reorganizado os ensinos, foi nomeado professor de Matemática e Astronomia dêste instituto, cargo que exerceu até 1562, ano em que foi jubilado.
Em 1531 foi convidado por D. João III para mestre de seus irmãos D. Luiz e D. Henrique e foi também mais tarde encarregado de ensinar D. Sebastião.
Como testemunho de gratidão pelos serviços ao país e à Côrte, concederam-lhe os monarcas portugueses pensões, que lhe permitiram entregar-se completamente à ciência, sem pensar nos cuidados materiais da vida, e criou D. João III para êle o lugar de Cosmógrafo-mor do Reino, no qual foi investido em 1547.
Dissemos que Pedro Nunes era médico pela Universidade de Lisboa. Os médicos daqueles tempos estudavam a Astronomia, como já dissemos, para a aplicar à clínica astrológica. Por isso se recrutavam geralmente entre eles os astrónomos para dirigir os trabalhos náuticos. Assim eram médicos Zacuto e José Vizinho, os primeiros organizadores dos Regimentos das navegações portuguesas, Mestre Filipe, o primeiro professor de Astronomia da Universidade de Lisboa e Mestre João, que fêz as observações astronómicas na viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, etc. Zacuto exerceu a astrologia; não sabemos se os outros astrónomos mencionados a exerceram também.
Nas obras de Pedro Nunes, só se fala da Astrologia na introdução ao tratado De Crepusculis, mas é para qualificar os seus prognósticos sôbre a vida e a sorte dos homens como quimeras e como superstições felizmente quasi extintas. São estas as suas próprias palavras.
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Agora, ao terminar esta biografia, permita-se-me que transcreva aqui as palavras com que fechei o Elogio histórico do grande matemático, publicado nos Panegíricos e Conferências:
«A vida de Pedro Nunes não foi como a de muitos sábios que se isolam nos seus gabinetes de estudo, a fazer investigações para honra do espírito humano e proveito da humanidade; foi, sim, a de um patriota, que deu a Portugal todo o seu saber, todo o seu talento e toda a sua actividade, que eram grandes, ensinando pilotos e reis, preparando cartas marítimas, aperfeiçoando regimentos náuticos, e escrevendo livros para uso dos mareantes.
«A trajectória da sua vida assemelha-se à curva representativa do poderio português no século em que viveu. Nasceu quando êste poderio crescia dia a dia no tempo do Rei Venturoso; teve a sorte feliz de assistir ao apogeu da grandeza lusitana, quando Lisboa, radiante de glória e beleza, olhava orgulhosa das colinas em que assenta para as águas do seu rio, coberto de embarcações de variadas formas e grandeza, a descarregar as riquezas vindas do Levante e do Poente; começou a declinar quando aquele poderio começava a decair no tempo do Rei Piedoso; morreu quando a nacionalidade portuguesa caiu, mortalmente ferida, nos areais de Alcácer-Quibir no tempo do Rei Desejado.
«Teve Portugal no seu tempo grandes figuras em tôdas as manifestações da actividade humana. As principais formam três grupos: o primeiro composto por Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Fernão de Magalhãis, etc., os heróis do mar; o segundo formado por Duarte Pacheco, D. Francisco de Almeida, Afonso de Albuquerque, D. João de Castro, etc., os heróis das conquistas; o terceiro formado por Pedro Nunes, João de Barros, Luiz de Camões, etc., os heróis do pensamento.
«Todos estes grandes homens formam um quadro harmónico. Os do segundo grupo, os conquistadores, asseguraram a obra dos do primeiro. os do terceiro grupo concorreram por modos diversos para um mesmo fim: perpetuar pelos séculos dos séculos a memória do saber e dos grandes feitos dos navegadores e dos guerreiros lusitanos. Dos três mencionados no último grupo, o primeiro, o sábio, ensinou aos pilotos meios para navegar longe da terra sem se perderem na amplidão dos oceanos; o segundo, o historiador, traçou com mão de mestre, em estilo que encanta pelo singeleza e elegância, a narração dos feitos gloriosos realizados pelos portugueses nos mares e nas terras por êles encontradas; o génio sublime do terceiro, o poeta, celebrou estes feitos na mais grandiosa das Epopeias. «Foi precisamente quando Portugal entrava na agonia, em II de Agôsto de 1579, pouco depois da lúgubre derrota de D. Sebastião, que Pedro Nunes desapareceu para sempre da cena do Mundo.
«Quási ao mesmo tempo emmudeceu a lira de Camões e parou a pena de João de Barros, o cronista da Índia. A providência levou-os a todos quando a Pátria já não precisava dos cantos do Poeta, nem das crónicas do Historiador, nem dos cálculos do Cosmógrafo.
«Terminou então o período áureo da Matemática portuguesa, que começara a desenvolver-se nos tempos felizes da Dinastia de Aviz, atingira o seu máximo esplendor, quando Portugal subiu ao máximo poderio, e acabou quando êle decaiu, até desaparecer como nação, passando ao domínio de Castela».
Astrónomos e cosmógrafos contemporâneos de Pedro Nunes
O maior dos cosmógrafos contemporâneos de Pedro Nunes foi D. João de Castro, de quem já falámos.
Vamos agora consagrar algumas palavras a Frei Nicolau Coelho, que o substituiu algumas vezes na regência da sua cadeira, a André de Avelar, que lhe sucedeu no cargo de professor na Universidade de Coimbra e a Manuel de Figueiredo, que lhe sucedeu no cargo de cosmógrafo do reino.
Frei Nicolau Coelho deixou um livro, hoje muito raro, intitulado Cronologia dos tempos (Coimbra, 1554), consagrado, como o seu título indica, ao cômputo dos tempos.
André de Avelar escreveu, sob o título de Cronografia ou Reportório dos tempos (Coimbra, 1585), um livro consagrado à descrição da esfera celeste, à cosmografia e à exposição de tôdas as regras para o cômputo dos tempos e para os usos da náutica. É um livro semelhante ao de Valentim Fernandes, de que já aqui falamos. Escreveu ainda um volume consagrado a doutrinas da esfera celeste sob o título Sphaerae utriusque; Tabella ad sphaerae hujus mundi faciliorem enucleationem (Coimbra, 1593).
Manuel de Figueiredo escreveu um tratado de Hidrografia (Lisboa, 1608), para instrução dos pilotos, ao qual juntou alguns roteiros de grandes viagens dos portugueses, que o valorizaram, e escreveu ainda um reportório dos tempos semelhante ao de André de Avelar mas menos interessante e mais imperfeito do que o deste.
Analisando estas obras, vê se que não há nelas pontos de vista originais, que tenhamos de assinalar. São obras escritas em gabinetes de estudo por autores que nem tinham o espírito filosófico de Pedro Nunes, nem a finura de senso prático que possuíam os primitivos cosmógrafos lusitanos. Além disso, em diversas passagens de alguns dêstes escritos, as doutrinas científicas vêm misturadas em amálgama incongruente com textos do Velho Testamento, com fantasias de física peripatética e com abundantes quimeras astrológicas, que as deformam e desfeiam.
Nós pensamos que, de todos os Reportórios dos tempos que se publicaram em Portugal nos séculos XVI e XVII só merecem figurar na história da Matemática em Portugal o de Valentim Fernandes, que foi o primitivo, a fonte dos outros, e o de André de Avelar. Abstraindo do que nêle há de metafísico e astrológico, fica um livro erudito, rico em factos interessantes e instrutivos, e sàbiamente organizado. Notemos, a êste respeito, que o autor atendeu na sua composição às doutrinas expostas por Pedro Nunes nos seus livros. Assim, por exemplo, emquanto que Manuel de Figueiredo, para determinar as latitudes por meio da Estrêla polar, apresentou no seu Reportório os oito modos de fazer o cálculo que se liam nos primitivos Regimentos das navegações portuguesas, Avelar só apresentou os dois que as determinam por observações da Estrêla nas passagens pelo meridiano, dizendo, como Nunes, que as outras são falsas(6).
André de Avelar era filho de cristãos novos e estudou em Valladolid e Salamanca. No fim da vida, com perto de oitenta anos, foi denunciado à Inquisição e condenado a cárcere perpétuo.
(6) Para comparar os Reportórios dos tempos de Avelar e Manuel de Figueiredo, servimo-nos da edição de 1602 do primeiro e da edição de 1603 do segundo. |